A Teia do Mundo

Vida nova

26 de Janeiro de 2023, por José Antônio 0

Mensagens, abraços... tudo desejando que no Ano Novo os meus sonhos se realizem. Confesso que andei falando isso para algumas pessoas também. Nada de mais em esperar alegrias. Porém, esperar essas coisas somente no último dia do ano é de menos.

E vem toda aquela coisa de certas pessoas ficarem deprimidas nas festas de fim de ano. Fica lá o cara com a taça de champanhe na mão, chorando e abraçando quem aparecer na frente, todo de branco. Típico deprê do fantasminha beberrão.

Essa tristeza, pelo que venho pesquisando em meus arquivos de cotidianidade nas mais cretinas enciclopédias do empirismo, aparece porque o indivíduo assume o seguinte lema no réveillon: Eu TENHO que ser feliz no ano que está começando.

Ano Novo, vida nova!

... mas é agora que você assume isso? No último dia do ano que está acabando? Você teve 364 dias inteirinhos para construir realizações. E aposta na alegria somente no último minuto do último dia?

Não são fogos iluminando o céu que vão trazer a felicidade... Pirotecnia das ilusões coloridas...

Não são beijos na boca que vão buscar a alegria. Ósculos fugidios nos lábios da euforia...

Não são bebedeiras que vão instaurar a tranquilidade. Pobre paz afogada no porre...

Não são pulinhos nas ondas à meia-noite que vão garantir os bons ventos do Ano Novo. Ao final das ondas, o naufrágio das expectativas...

Não são sementes de romã que vão fazer germinar a fartura no ano que começa. O estômago não é terra fértil para esse tipo de plantio...

No réveillon, muitos dos candidatos à felicidade olham para o Ano Velho como se estivessem se livrando de um fardo pesado e inútil: “Xô, Ano Velho! Vá embora, Ano Velho!”

Se mandam o Ano Velho para o lixo é porque nada dele serviu.

Se o ano que passou tivesse sido um espaço e um tempo de construção da alegria, da paz, da saúde e da fartura, então os fogos de artifício, os beijos na boca, os brindes, os pulinhos nas ondas e as sementes de romã seriam consequências felizes de uma consciência tranquila, e não um salto no abismo sádico das esperanças sem raiz.

E não cantaríamos “Adeus, Ano Velho”... e sim “Obrigado, Ano Velho... Feliz Ano Novo!”

Nada de especial no ano que começa. Os dias continuarão com as mesmas horas, a mídia continuará com as mesmas estratégias, alegrias aparecerão, lágrimas rolarão... O que deve ser especial, arrebatador, emocionante e alegre é o meu entusiasmo comigo mesmo, o meu compromisso de sempre fazer de mim uma edição renovada e revisada de acordo com as novas regras do acordo existencial. Esse tipo de comprometimento tem que ser todos os dias.

O réveillon nos lembra essas coisas, porém jamais vai garanti-las.

Cabe-nos escolher: a euforia do momento ou a alegria para além do momento.  

Estrela de Natal

21 de Dezembro de 2022, por José Antônio 0

Quem disse que estrela não fala? 

Um dia, um poeta confessou que ouvia as estrelas e que as pessoas diriam que ele, por causa disso, teria perdido o senso. Até que é um pouco verdade. Concordo que para falar com as estrelas é necessário perder o senso... mas o senso comum. Aí, sim, você poderá encontrar o bom senso.

Falar com as estrelas... ouvir as estrelas... saber quem elas são. Cada uma traz em si a missão do brilho. Até quando já estão mortas, brilham através dos anos-luz. Estrela da manhã, estrela da tarde, estrela do mar, estrela d’alva, estrela cadente, tanta estrela, meu Deus! É só olhar para o céu que a gente vê que toda hora é a hora da estrela.

E eu? Eu sou uma estrela que está falando com você agora. Sou a Estrela de Natal. Você sempre me vê em cima da gruta dos presépios. Alguns me confundem com cometa. E aí, me colocam aquele rabão colorido. Acabo ficando que nem vaga-lume vestido de noiva. Não sou cometa, sou estrela. Estrela de Natal.

Porém, não sou a Estrela do Natal, pois quem realmente brilha nesse dia não sou eu, e sim o Dono da festa. Eu apareço apenas para dar um toque a mais. Sei que tenho uma certa importância, e isso me envaidece um pouco. Por exemplo, sempre quando fazem a árvore de Natal, eu sou a última a ser colocada, com toda pompa, lá em cima. Quando fazem o presépio, lá estou eu indicando o caminho para os Reis Magos.

Mas a importância que eu realmente quero ter é fazer você perder o senso... o senso comum... o senso comum do Natal.

O senso comum do Natal é amigo oculto, peru assado, vinho, ceia, nozes, sininho tocando, músicas com harpa paraguaia, abraços, trocas de votos de felicidade, presentes, Papai Noel, roupa nova, brindes, falatório, risos... Isso é bom. Isso faz bem. Mas falta algo aí para que o senso comum se transforme em bom senso.

Quando você vai a uma festa de aniversário, você come, bebe, diverte-se usufruindo de tudo aquilo que o aniversariante preparou para os convidados. E o que você diz ao dono da festa? “Parabéns pelo seu aniversário! Adorei! Está tudo ótimo. Demais a festa! Obrigado!”

Pois é... no Natal, o Dono da festa prepara tanta coisa para os convidados, dos quais você faz parte. Prepara a alegria da família reunida, a música da confraternização, a ceia da saúde, o abraço da amizade, o brinde da paz... tanta coisa para você aproveitar nessa noite. E você, como todo convidado, aproveita. Que continue aproveitando!

No entanto, se não for por uma questão de fé, que seja pelo menos por uma questão de etiqueta: já que você foi convidado para uma festa de aniversário, dê os parabéns ao aniversariante. Diga a ele também que está gostando muito do que ele preparou para você. Agradeça pela família reunida, pela confraternização, pela saúde, pelas amizades que você tem, pela paz que se instalou em seu espírito. Faça um brinde de gratidão ao aniversariante. Desse modo, você estará ouvindo uma estrela e quebrando o senso comum para assumir o bom senso.

Só mais uma coisa, caso você já nem se lembre mais: o nome do aniversariante é Jesus. Você o encontrará no lugar e no momento mais simples da festa.

Casei-me com a garota do telemarketing

23 de Novembro de 2022, por José Antônio 0

No começo, até que era divertido. Ele já não precisava mais ficar fantasiando sobre quem estaria do outro lado da linha. Agora, a garota do telemarketing almoçava em sua mesa e dormia em sua cama. Ele tinha uma garota do telemarketing somente pra ele.

O início do conúbio foi casual. Ela ligou e ele atendeu. O papo foi rápido, com ofertas da parte dela e recusas da parte dele. Numa outra vez, a conversa andou um pouco mais. Ele acabou comprando o que ela oferecia.

Do casual, passou pro comercial. Do comercial a coisa descambou pro pessoal, do pessoal pro emocional, do emocional pro sexual, do sexual pro conjugal. E aí, já estavam amarrados um no outro, mesmo sem fio.

Antes de se juntarem, era aquele “Bom dia, senhor!” pelo telefone. Tão maquinal quanto abraço de político. Pois você acredita que, embora estivessem casados e morando juntos, ela não perdia a entonação? Com aquela melodia irritante de quem quer obrigar a comprar qualquer coisa que não é necessária, a garota dizia pra ele todo dia: “Bom dia, senhor!...” “Te amo, senhor!...” “Vem pra cama, senhor!...” “Estou quase lá, senhor!...”

Ele achava isso a coisa mais sexy do mundo.

No Dia dos Namorados ele dava flores pra ela. E era aquela coisa de sempre:

– Obrigado por ter se lembrado, senhor! Assim que possível, estarei dando o retorno, senhor. Palavras e atos amorosos estarão sendo enviados à sua pessoa, senhor. Caso o senhor queira mais carinhos, pode estar solicitando por aqui mesmo. Os meus sentimentos agradecem a sua atenção. Tenha um bom dia, senhor!

Sua musa era a diva do gerundivo. Uma gerundiva!

Porém, não é só formatura de jardim de infância que enjoa: o casamento já começava a dar alguns sinais de desgaste. Ela ainda mantinha aquela entonação de boneca a pilha. No entanto, as frases... “Agora não, senhor!... Estou com dor de cabeça, senhor!... Aguarde um minuto, senhor!...”

Que saco! Se soubesse, teria se casado com uma boneca inflável versão robô.

– Mais alguma dúvida, senhor? 

O negócio ficou insuportável quando, numa noite, ali deitados um ao lado do outro... De repente, rolou um clima. Ele, então, tratou de investir sobre ela:

– Agora não, senhor. No momento, meus canais estão todos ocupados, senhor.

Assim também não! Se os canais dela estavam ocupados, o negócio era tomar cuidados com os ramais dele. Você sabe, ramais, ramagem, galhada, galhos...

Estão separados. Já pensou se o conúbio virasse cornúbio?

A mulher é líquida

25 de Outubro de 2022, por José Antônio 0

Se a humanidade é de barro, o homem é pó e a mulher é líquida.

 

Mulher é água nascente. Forma oceanos e rios dentro de si. Marés e redemoinhos que ameaçam tragar e, ao mesmo tempo, refletem o firmamento.

 

Mulher é água de chuva. Revela apenas a cortina das nuvens... mas fica com os segredos do céu.

 

Mulher é água de lágrima. Às vezes doce... quando se encanta; às vezes ácida... quando argumenta; às vezes inebriante... quando se permite; às vezes amarga... quando agredida.

 

Mulher é líquida no sangue que flui, mostrando que ela pode gerar. Mas mulher também é líquida no sangue que borbulha, fervendo a revolta de milhares delas assassinadas, estupradas, esbofeteadas... Mulher é líquida nesse hematoma social, pois é sangue que não coagula: invade nossas veias e artérias numa transfusão que clama por justiça e respeito.

 

Mulher é líquida no leite que sustenta. Seios inesgotáveis que não deixam a humanidade perecer. Seios que mantêm a temperatura e o equilíbrio de seu leite na energia constante e mágica de um coração que pulsa bem perto deles.

 

Mulher é líquida no suor que sai de seus poros na luta para se manter, na luta para educar, na luta contra o preconceito, na luta para a conquista de seu lugar, na luta contra o desrespeito, na luta contra o luto.

 

Mulher escorre, percorre, concorre, socorre, discorre, recorre... Mulher só não corre... da raia.

 

Por sua natureza, a mulher consegue ser gasosa, sólida e líquida. Gasosa, quando algo não lhe interessa mais. Ela vira vapor e desaparece como bruma que se esvai. Sólida, quando seus sentimentos são traídos e ela se condensa toda no bloco resistente de sua dignidade. Líquida, pois, sem ela, nós homens seríamos a triste areia da ampulheta, que se distrai monotonamente com a sua própria secura.

Canção de amor

21 de Setembro de 2022, por José Antônio 0

Foi uma canção simples, poucos acordes. Nela couberam os sonhos que mais doem, aqueles que são sonhados sabendo que serão sempre sonhos. Sussurros doces e sádicos que toda ilusão sibila do jeito que só ela sabe fazer.

Como toda garota que se assusta com uma alegria inesperada, teu coração saltou do peito para dançar nos olhos. E aceitaste a canção que te ofertei. E sorriste. E foste para casa levando a certeza de que a primavera fora criada somente para ti. E foste.

O tempo passou, os dias não ficaram.

De tanto cantar, acabei decorando aquela canção, assim como decorei cada centímetro de tua lembrança. Cantei para contar... para contar a mim mesmo que é possível imorrer as coisas que não vivem mais.

Aos poucos, as circunstâncias nos levaram para trilhas diferentes. De longe, ainda pude te ver algumas vezes; não perto, pude ouvir em raros momentos a tua voz.

Os teus encantamentos já eram por outros motivos. Tuas alegrias de menina sapeca não eram mais para a minha canção. Em teu jorro de vida, eu não navegava mais.

Eras outra.

Muitas outras noites e dias vieram, fazendo do calendário uma constelação formada por estrelas de fumaça que se apagam com o sopro do inevitável.

A noite estava fria, era noite de inverno, igual àquelas em que tantas vezes conversamos e rimos, loucos para o dia seguinte chegar rapidinho para de novo nos vermos. Foi numa noite de inverno. Do meu discreto lugar, convidado sem muita importância, observei-te subir para o altar. Deslumbrante noiva!

O mesmo olhar daqueles tempos, o mesmo sorriso das tuas alegrias.

Caminhavas feliz para o teu par.

E o meu par de olhos sem par moveu-se para dentro de mim. Uma suave canção impregnava a igreja de emoção e paz. Uma flauta sublimava meu coração em forma de prece que reza o passado.

Na cadência melíflua da flauta, eu me retirei sutilmente, como o instrumento que se cala quando já não mais deve soar na partitura do concerto.  

Eu já estava a alguma distância da igreja, mas ainda podia ouvir, apesar do vento frio, os sons dos acordes da flauta suave que iam sumindo aos poucos.

Silêncio.

Apenas o vento.

Apenas o frio.

Apenas eu.

Cantei baixinho, pela rua solitária, aquela canção que um dia eu fiz e que te entreguei.

Depois não cantei mais.

Ela se despediu e se recolheu... lá onde morrem as canções de amor.