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É por ordem de chegada

18 de Agosto de 2016, por José Antônio

A arte é uma negação. Nega certas formas, nega a previsibilidade, nega o corriqueiro. A arte é avessa à mesmice do senso comum. Fazer arte é negar a ordem estabelecida. Não é à toa que criança bagunceira vive fazendo arte. É arteira.

A medicina também é negação. Nega a dor, nega a doença, nega a iminência da morte... até onde aguenta. Por isso há tantos especialistas, cada um deles ministrando a terapêutica do não em seus respectivos órgãos.

Os especialistas ainda não haviam chegado, mas os pacientes já estavam lá. Na sala de espera. Cinco pro cardiologista, oito pro ortopedista e quatro pro oftalmologista. Haja especialista pra tanto doente na pista! Mas é por ordem de chegada.

Não importa quem enfartou primeiro, nem quem partiu o braço antes de todos, muito menos qual o primeiro deles que começou a confundir urubu com avião. É por ordem de chegada.

Enquanto esperam, trocam testemunhos. Um homem enfartado relatou detalhes. No mês passado, tinha acordado no meio da madrugada com dores no peito e falta de ar. Pensou que iria morrer sem ver o dia amanhecer. Na outra ponta, um menino – acompanhado da mãe – ouvia atento, com os dois bracinhos engessados. Um senhor de cabelos brancos mostrou um desvio estranho no osso do cotovelo, o que dificultava o movimento de seu braço. Todos olharam para o cotovelo desviado do homem e comentaram coisas. O menino dos bracinhos engessados aconchegou-se à mãe e a paciente do oftalmologista não viu nada, pois, se confundia urubu com avião, não conseguia ver nem o cotovelo nem o desvio.

É por ordem de chegada. Mas todos já tinham chegado. Faltava a ordem. E como os médicos ainda não tinham chegado, uma medicina clandestina começou a ser compartilhada e chegou primeiro: sugestões alternativas de tratamento, remédios caseiros, simpatias infalíveis...

O telefone tocou e a secretária atendeu. Era o ortopedista engessando a esperança dos seus pacientes: iria se atrasar por mais meia hora. Um dos pacientes do oftalmologista ponderou:

– Se o meu médico se atrasar mais, da miopia eu vou à catarata.

Todos caíram na gargalhada... que também é uma forma de negar o sofrimento. O menino dos bracinhos engessados perguntou à mãe o que era catarata. Ao perceber a expectativa da plateia enferma, a mãe apelou para a sabedoria e respondeu que “depois eu te explico”. E ficou mais imóvel do que o cotovelo desviado do senhor dos cabelos brancos.

Enfim, os médicos chegaram. Cada um dos pacientes ficou mais tenso. Falavam menos. Um por um, começaram a ser atendidos. Por ordem de chegada. Cada um, do seu jeito, buscando negar a sua condição, tentando tapear a dor, brincando de esconde-esconde com a fatalidade.

Porém o destino é artista e arteiro. Faz da ciência uma mesmice corriqueira e, por ela se tornar isso, nega-a. O destino, por ser artista e arteiro, inventa formas – algumas absurdas – de negar a nossa continuidade. Na sua estética tétrica, não é por ordem de chegada.

É por ordem de partida.

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