Crônicas do Cotidiano

O Abaporu

16 de Setembro de 2016, por Rafael Chaves 0

O Abaporu não é um homem que come gente, conforme possa parecer à primeira vista, pela etimologia da palavra. É um homem aparentemente meditativo sobre sua condição, sentado em uma pedra, porventura tentando, inutilmente, refugiar-se à sombra de um cacto do sol tropical que insiste em arder seu corpo nu e disforme.

O Abaporu é um quadro. Se Tarsila do Amaral o pintou com a intensão de minha descrição, só ela o poderá confirmar. Fato é que a pintura é um ícone do Movimento Antropofágico que sacudiu a arte brasileira na primeira metade do século XX e é considerada a tela brasileira mais valorizada no mundo. Em 1995 foi adquirida em um leilão aberto a todos por um empresário hermano argentino. Então, os brasileiros que quiserem ver de perto o Abaporu terão de ir ao Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires, MALBA, onde é exposto.

Vira e mexe o inconformismo de o quadro ter se tornado propriedade argentina vem à tona. Afinal, como pode uma obra brasileira de tamanha importância e significância ocupar o lugar central de um museu argentino?

Recentemente o quadro nos foi “emprestado” para exibição durante as Olimpíadas. Outra oportunidade de, mais uma vez, o complexo, o recalque e rebeldia brasileiros serem divulgados em notas de jornais e revistas.

Nada contra os hermanos argentinos! Que mal haveria a eles se um empresário brasileiro adquirisse a obra de Astor Piazzolla de tal modo que, para ouvir um tango, tivessem eles que vir ao sambódromo do Rio de Janeiro? Que mal haveria a eles se o Messi se naturalizasse brasileiro e fizesse dupla com Neymar na seleção canarinho? Nenhum! Mas o contrário, que Tom Jobim e a bossa nova se tornassem argentinos e fossem apresentados ao mundo no Teatro Cólon ou Neymar argentino, sendo instruído por Maradona no La Bombonera, isso não! De jeito nenhum!

A origem de toda essa pendenga, por óbvio, foi a aquisição da obra por um empresário argentino. Nas palavras dele, não houve interesse de brasileiro pela obra. Isto me fez pensar: a história poderia ser diferente se um empresário brasileiro tivesse adquirido a tela no leilão, ou ainda se o empresário brasileiro que era proprietário da obra antes do fatídica arrematação a tivesse doado ou cedido a um museu brasileiro. Pensamento seguinte: onde estariam os ricos empresários brasileiros no dia da arrematação ou a quê interesses estariam vocacionados?

Ocorreram-me as seguintes hipóteses de onde estariam os milionários empresários brasileiros: 1) comprando um helicóptero; 2) comprando um jatinho; 3) comprando um iate; 5) comprando uma Ferrari; 5) comprando uma ilha; 6) descansando em um tour por ilhas, entre Maldivas, Mikonos, Santorini, Phi Phi, Ibiza, Maiorca, Taiti, Moorea e por aí afora; 7) abrindo uma conta num paraíso fiscal; 8) privatizando o social; 9) socializando o prejuízo...

Não sei exatamente quais ou se todas essas, ainda que algumas dessas por procuração, mas nada mais a mim lhes acudiu. Ajudem aí: o quê?; aonde?

Exceto por esses raros momentos em que nos emprestam, o jeito agora é ir mesmo até o país vizinho para jantar um bife de chorizo acompanhado de um malbec, de sobremesa um alfajor e, ato contínuo, ir ao MALBA para admirar o Abaporu. O Abaporu verde e amarelo encontrou sombra e água fresca em clima subtropical. O Abaporu, que não é comedor de gente, foi servido de bandeja a um empresário argentino pelos empresários brasileiros, que, ironia, se serviu.

O Álibi

17 de Setembro de 2015, por Rafael Chaves 0

Há coisas que acontecem que até Deus duvida.

Zé Alfredo e Adriano combinaram uma cervejada na quinta-feira, como faziam todas as semanas, para espairecer. Deram notícia de uma festa de igreja num povoado perto da cidade e se mandaram para lá. Em pouco tempo deixaram a barraquinha de víspora e foram dançar, que o forró comia solto no largo da igreja. E se engraçaram com umas meninas fogosas que também se engraçaram com eles. Nem bem terminou a primeira música e já estavam aos beijos e abraços com as assanhadas. E antes que terminasse a segunda dança, decidiram fazer coisa melhor atrás do caminhão que fazia vez de palco para a banda. E se atracaram.

Lá pelas tantas, Zé Alfredo e Adriano deram conta de que já era tarde e que suas esposas já deveriam estar nervosas com o atraso deles. Resolveram ir embora, não sem antes voltarem ao largo da igreja para uma última dança com as meninas. “O esporro das dez da noite e o das duas da manhã é o mesmo”, filosofou Zé Alfredo, imaginando o tanto que sua mulher ia esbravejar quando ele chegasse em casa.

Quando entraram no carro, antes que fechassem a porta do carro e a luz do teto se apagasse, Adriano avistou que Zé Alfredo estava com um chupão no pescoço. Zé Alfredo puxou o retrovisor, esticou o pescoço e se deu conta do estrago: uma marca vermelha arroxeada, do tamanho de um ovo bem abaixo da sua orelha. Zé Alfredo ficou branco de pavor, e quanto mais branco ele ficava mais vermelha a desonra se destacava.

- Vamos passar na casa de mamãe! – disse Zé Alfredo.

Zé Alfredo era ferreiro, artesão de dobradiças, ferrolhos, trincos, trancas e toda sorte de artefato de ferro. Moldava, torcia e retorcia o ferro em obras de arte, ardendo na boca da fornalha.

- Fazer o quê na casa da sua mãe a essa hora? – perguntou Adriano.

Foi de seu ofício que Zé Alfredo extraiu seu plano mirabolante. Quando chegaram na casa da sua mãe, Zé Alfredo foi direto à cozinha, acendeu a trempe do fogão, pegou uma colher e a pôs sobre a chama até ela se abrasar e a entregou a Adriano.

- Adriano, passa a colher no meu pescoço.

- Você tá maluco, Zé?! Acha que eu vou fazer isso, cara?

- Adriano, carai, você é meu amigo ou não é? Passa logo essa colher no chupão! – ordenou.

Zé Alfredo berrou de dor. E dolorido bateu à porta de casa, altas horas da madrugada.

A mulher de Zé Alfredo soltou os tamancos pra cima dele. E maldisse a cerveja e praguejou contra Adriano “essa cambada de amigo que você tem” e amaldiçoou todas as quintas-feiras e xingou e esperneou até dar notícia da queimadura no pescoço de Zé Alfredo.

- E o quê é isso aí no seu pescoço? – perguntou a mulher.

- Você não deixa eu falar. Tô tentando tem meia hora, mas você não para de falar...

- O quê é isso no seu pescoço? – insistiu a mulher, tombando o pescoço de Zé Alfredo e examinando de perto a ferida.

- Então, é por isso que atrasei. O cano de descarga do carro do Adriano soltou e eu fui concertar. Entrei debaixo do carro e quando eu estava tentando arrumar, o cano caiu. Tava quente pra caramba e caiu no meu pescoço.

A mulher de Zé Alfredo, condoída e consternada da dor de seu marido, ajeitou pomada e lhe fez curativo. Depois, deitados na cama, a mulher de Zé Alfredo lhe afagou os cabelos:

 

- Zé, faz mais isso não! - E lhe perdoou, pelo menos até a próxima quinta-feira.

Office-boy, Office-mother, Office-old-aged

13 de Agosto de 2015, por Rafael Chaves 0

Outro dia fui ao banco. Dia de pagamento de funcionário público. Entre as coisas mais desgastantes que uma pessoa pode fazer é ir ao banco em dia de “rush”. Só vá mesmo se for indispensável, aconselho. E eu estava obrigado a ir ao banco nesse dia.

Peguei uma senha de atendimento negocial, usando prerrogativas do meu “black card”. Senha S006. Mas, muito infelizmente, tive que enfrentar a fila do caixa. A minha questão tinha que ser resolvida no caixa, enfrentando a fila dos pobres mortais, dos sem “card”. Senha R168. Imaginem sair de sexto na fila para o centésimo sexagésimo oitavo? Sentei no saguão de espera. Atualmente espera-se sentado no banco do banco. Por força de expressão e também literalmente. A TV soou um sinal de aviso: R123. Quarenta e cinco na minha frente!

O atendimento, a princípio, me pareceu até rápido. Logo chamaram o R124, R 125, R126. A alegria durou pouco. Começou uma sequência de P68, P69. “Que P é esse?”, pensei. Não demorou eu me dar conta de que o P era de prioritário. Atendimento Prioritário.

Daí que comecei a reparar nas pessoas em volta. O banco mais parecia uma assembleia da terceira idade! Vários estavam acompanhados de pessoas mais novas, todos com senha P. Pensei: “vovô, hoje é dia de a gente ir passear no banco! Vamos lá, vovô?” E lá ia o velhinho ou a velhinha, capengando, coitados, fazer fila para marmanjo.

Ou parquinho infantil. Nunca vi tanta criança passeando em banco. As mães inventaram essa diversão para as crianças! Pensei: “filhinho, vamos passear, hoje mamãe vai te levar num lugar muito legal!”. Algumas mães pareciam mais avós. Seriam avós levando netinhos para se divertirem no banco? Dava dó mesmo é de ver os recém-nascidos. Tadinhos, todos!

Lembrei do meu tempo de “office-boy”. Os tempos mudaram. As “office-mother” e os “office-old-aged” tomaram conta do negócio que, um dia, serviu para introduzir os jovens, os aspirantes ao mercado de trabalho.

Antes de deixar o banco, duas horas depois, tive a oportunidade de reencontrar um antigo colega de banco. Eu o questionei sobre os disparates que presenciei. Ele então me contou que identificaram um velhinho que oferecia seus serviços na porta do banco e tentaram impedi-lo de fazer esse serviço. O velhinho foi ao PROCON. No outro dia o banco estava sendo interpelado. O banco nada podia fazer, não tinha o direito de impedir ninguém de exercer seu “direito” de atendimento preferencial, de furar fila.

Atender prioritariamente idosos, gestantes, mães com crianças ao colo e deficientes que realmente necessitem dessa prerrogativa acontece em qualquer país civilizado, naturalmente.  Não há necessidade nem de lei. Mas aqui, um país que se pretende mais civilizado que os outros, está nas leis: na escrita e na de Gerson.

 

Assim como há velhinhos saudáveis e sem ter o que fazer oferecendo seus serviços preferenciais, imagino que não vai demorar e haverá mães alugando seus pimpolhos para uma senha P na porta do banco. Pelo menos até o dia em que, inesperadamente, descobrirem que há mais P que R na fila. Também não demora a acontecer!

Ô viagem que demorou!

16 de Julho de 2015, por Rafael Chaves 0

Eu costumo dar carona. Antes eu nem olhava a quem. Atualmente ando mais seletivo; dou uma analisada no carona antes de parar o carro ou mesmo me permito viajar sozinho para curtir o isolamento, o silêncio, a introspecção. Eu já precisei muito de carona quando era estudante e não tinha dinheiro. É uma forma de eu retribuir aqueles que um dia fizeram por mim.

Quando se pede carona, não se escolhe de quem. Como dizia sempre meu saudoso pai, quem está na garupa não governa a rédea.

Lembro-me do dia em que peguei carona em um fusquinha, lá pelas bandas de Volta Redonda, querendo vir na direção de Juiz de Fora. Estávamos eu e meu irmão. Meu irmão sentou-se na frente e eu atrás. O fusquinha ia pela estrada - como convém a um fusquinha - enquanto tagarelavam o motorista e meu irmão e eu ouvindo. De repente o motorista põe-se mais ao centro da pista, avançando um pouco na faixa e diz:

- Está vendo aquela carreta lá? Vou fazer ela dançar na pista...

Em direção contrária vinha uma carreta cavalo daquelas gigantes e eu “meu Deus, esse cara é louco! ”. Mais que depressa, encolhi-me encostado na lateral oposta do lado que eu imaginava que a carreta colidiria, fechei os olhos e esperei. Alguns segundos depois eu senti o fusquinha dar uma guinada para a direita e, ao mesmo tempo, um vento quente e o som ensurdecedor de uma buzina deslocar o carro.

- Caminhoneiro doido, sô, se eu não saio ele passa por cima da gente – disse o motorista, inconformado com o insucesso do seu plano.

Ô viagem que demorou.

Outra vez, descendo a serra em direção ao mar, época de carnaval, peguei uma carona. O carro estava tão cheio, que o pessoal parecia ter juntado as malas para passar o feriado na praia, mas, solícitos, ajeitaram de modo a me caber.

Depois de alguns poucos quilômetros ladeira abaixo dei-me conta de que a alegre e festiva solicitude vinha de bebidas e lança-perfumes que consumiam sem a menor cerimônia. Pior, o motorista que inicialmente recusara cheirar o lança-perfume resolveu acatar as insistentes sugestões dos passageiros e mergulhou seu nariz num lenço inundado de entorpecente e eu “meu Deus, esse cara é louco! ”, abaixei a cabeça, fechei os olhos e esperei o motorista desmaiar e o carro despencar no precipício.

Ô viagem que demorou.

Inesquecível também foi a vez que parei o carro para dar carona a um sujeito na saída de São Brás do Suaçuí, direção de Belo Horizonte. Desta vez eu era o motorista. Entra um sujeito mal-encarado, de olhar vago e com cicatrizes no rosto e braços.

Geralmente, o assunto nas caronas é introduzido falando-se meteorologicamente “frio hoje, né?”, “parece que vai chover”, essas coisas.  Entretanto, nesse dia o tempo fechou. No que eu falei qualquer coisa, o carona disse que tinha saído da prisão, que não tinha um destino certo e que não sabia direito onde pararia e eu “meu Deus, esse cara é louco!”. Eu não sei aonde arranjei a impassividade, a indiferença e a serenidade com que reagi ao que ele dizia e à presença dele, embora o temor tomasse conta de meu espírito. Suspirei aliviado quando ele resolveu descer logo à frente, em Congonhas.

 

Ô viagem que demorou.

O divã

14 de Maio de 2015, por Rafael Chaves 0

Ele se sentiu incomodado em estar sentado naquele sofá. Tentou ajeitar-se de modo a parecer tranquilo. Acreditou que, pelo menos, pareceria seguro de si, ainda que o seu interlocutor, pelo menos em tese, pudesse lhe desvendar sem que dissesse uma só palavra. O ambiente era austero. Olhou ao entorno, procurando pelo divã. O divã ele conhecia somente de filmes ou de ouvir dizer. “Jamais vou me deitar num divã”, pensou. Tomou essa decisão para que pudesse se sentir inexpugnável. “Eu não estou doente”, pensou.

O interlocutor sentou-se em outro sofá, mais simples e mais austero, que ficava a uns 45 graus à sua esquerda. Apresentaram-se. Por alguns minutos ficaram em silêncio. Ele em razão de sua incredulidade “o que eu vim fazer aqui?”, o interlocutor aguardando que ele dissesse alguma coisa “o que será que o trouxe aqui?”.   

- Estou me separando! Disseram para eu vir aqui...

Dito isto, e após o interlocutor ter também dito algum monossílabo, ele continuou falando de suas angústias, de seus sentimentos, de seus problemas. Enquanto falava, sentia-se ora aliviado, como uma mula que descarrega seu fardo pesado, ora desolado, como um pássaro que se vê diante de um gato faminto. Separar, depois de anos de vida em comum, não era tarefa fácil. Por isso ele se debatia entre as possibilidades e se flagelava com suas contradições.

Semanalmente, ele foi sentar-se no sofá para dizer de sua separação. Recusou-se a chamar o lugar de consultório, pois que para ele era uma visita, um colóquio, não uma consulta. Então, lá pela quarta vez, meio que entediado de seus próprios infortúnios, resolveu perguntar:

- E você, já se separou?

- Oito vezes, respondeu o interlocutor. E respondeu quase insensível, como se  separar fosse natural, fisiológico. Disse como quem diz que o tempo hoje está frio ou que está nublado ou o que seja. Tanto que, nesse instante, o interlocutor se levantou e impassível encheu um copo com água, sentou-se novamente na poltrona e a sorveu.

- Oito vezes?! – desacreditou.

Não, o interlocutor não tinha ficado viúvo oito vezes; o interlocutor não era um serial killer. Simplesmente tinha se separado oito vezes de suas mulheres e deixado cada uma delas a seu tempo para ficar com a subsequente. Então ele se sentiu mais saudável que sempre e se deu alta. Se era simples assim e ele era apenas um calouro em matéria de separação, ele, na verdade, não tinha problema nenhum. Deu-se alta.

Entretanto, como já tinha tido a coragem de estar ali para visitá-lo, resolveu falar de outras coisas, de suas outras dificuldades, de suas idiossincrasias. Disse ao interlocutor, então, que na próxima sessão pudessem falar disso.

Na próxima sessão, como de praxe, sentou-se na cadeira e, do alto de sua racionalidade e ceticismo, perguntou por onde poderiam começar. O interlocutor então sugeriu que ele falasse de sua mãe e de seu pai. Falou de um modo meio suspeito, como se lhe inquirisse sobre suas relações reais ou imaginárias, estrambólicas e inconfessáveis.

- Olha, esse negócio de mãe, de relação de mãe e filho, de pai e mãe etc., sobre isso eu não quero conversar não. Eu não acho que tenha nenhum problema com isso não.

Diante do impasse que se criou, não se sabe se por cauda dele ou do interlocutor, um clima de incerteza dominou o ambiente. Ele ainda assim insistiu, quebrando o silêncio:

- Tem algum outro meio de você saber o que acontece comigo?

- Tenho feito trabalho com sonhos. Dos sonhos se pode saber muito do que acontece a uma pessoa...

- Mas eu não sonho...

- Sonha sim, todo mundo sonha.

- Mas eu não me lembro...

- Faz o seguinte: deixe um caderno com uma caneta ao lado de sua cama, quando acordar, você imediatamente escreve o seu sonho. Desse modo você não vai esquecer.

- Está bem.

Saiu. Quando alcançou a rua, deu poucos passos e quis voltar. “O divã, o divã...”, pensou. Mais uma vez tinha se esquecido de ver onde estava o divã naquela sala. Não voltou mais lá, nem jamais soube como era um divã ao vivo.