Retalhos Literários

O pastor amoroso

24 de Maio de 2023, por Evaldo Balbino 0

Ouvi desde criancinha, dentro da igreja, que o homem falando à nossa frente é um cooperador. Isso porque ele, pregando diante de todos nós, coopera com a obra de Deus, dando de graça o que a Graça divina de graça lhe concede.

No púlpito da igreja, sempre erguido em simplicidade, uma voz se ouve. Os quatro cantos da igreja e o entorno dela, tudo é atenção às palavras proferidas. Que em muitas vezes, dependendo do lugar e da época, o templo se enche. Pessoas sentadas, outras em pé nos corredores; e muitasdo lado de fora. Na portada da plataforma de madeira, os dizeres EM NOME DO SENHOR JESUS. Mais acima, na parede atrás da tribuna, novamente a inscrição: EM NOME DO SENHOR JESUS.

Diante desse nome, a comunhão de todos, o tom austero de respeito e silêncio. Os louvores, todos eles, calcados em música instrumental sacra, acompanhada por hinos cantados em uníssono, num canto congregacional que nos faz sentir o calor divino.

Se o homem ali diante de nós é o cooperador (assim como as faxineiras, os que trabalham nas construções, a porteira e o porteiro, as irmãs da piedade, os diáconos e anciães, os músicos, os encarregados de orquestra, os escriturários, os auxiliares de jovens e menores), esse homem que fala pregando a palavra, então quem fica sendo o nosso pastor? Diante dessa pergunta, a voz profunda ecoa nos ouvidos de nossas almas: “Eu sou o vosso pastor e nada vos faltará!”.

Frase assim tão meiga, vinda de boca que não admite nenhuma ovelha perdida no campo à mercê de feras, só pode ser mercê de quem ama tanto e incondicionalmente.

Perante a frase EM NOME DO SENHOR JESUS, todos cantamos louvores e fazemos súplicas, contamos feitos de Deus e nos congraçamos numa multidão desejando uma só coisa: apaziguar tudo o que na vida carece de paz.

Com o salmista, vamos dizendo (mental, verbal e gestualmente) que o senhor todo e inteiro é o nosso pastor e que por isso nada nos há de faltar. Nós nos alegramos diante de pastos verdejantes nos quais podemos colocar no chão os fardos pesados, a lã tão emaranhada e cheia de espinhos.

Ainda com o salmista em nossa memória, bebemos água de vida e para a vida e refrigeramos nossas dores. O nosso pastor, o senhor sofrido e vitorioso sobre a morte, leva-nos amorosamente por sendas de justiça e graça. Por amor do seu nome, que é afeto entranhado em nós e por nós, ele nos deixa caminhar pelo vale da sombra da morte, mas dali também nos resgata quando é necessário. Afinal, ele – como ele mesmo que é o pai – nos fere e nos cura.

Diante dos olhos da morte, somos eternos. E por isso não tememos mal nenhum. Vamos, mesmo em dificuldade, seguindo o nosso guia com seu bordão e o seu cajado nos consolando.

Na nossa fome, a graça divina nos prepara lauta mesa para que a luta seja às vezes amena. Na presença dos males que nos atacam, temos nossas cabeças ungidas com óleo e beijo forte: o nosso cálice transborda e não se cala, e o nosso canto pula de alegria.

E a encarnação do sagrado se desdobra em bondade e misericórdia, asquais sem dúvida alguma nos seguem em todos os dias e noites das nossas vidas. Nessa certeza, habitamos eternamente a Casa de Deus. Não o templo de pedras e de outras matérias, mas a eterna geografia espiritual que nos olha e que nos espera.

Nosso pastor é tão amoroso, que ele é capaz de deitar sonolento em nosso colo cansado e pedir carinho. Consola-nos, mas também demanda nossos cuidados. Não é assim que nos diz o guardador de rebanhos do poeta Fernando Pessoa? “Depois ele adormece e eu deito-o. / Levo-o ao colo para dentro de casa / E deito-o, despindo-o lentamente / E como seguindo um ritual muito limpo / E todo materno até ele estar nu. // Ele dorme dentro da minha alma / E às vezes acorda de noite / E brinca com os meus sonhos. / Vira uns de pernas para o ar, / Põe uns em cima dos outros / E bate as palmas sozinho / Sorrindo para o meu sono. // Quando eu morrer, filhinho, / Seja eu a criança, o mais pequeno. / Pega-me tu ao colo / E leva-me para dentro da tua casa. / Despe o meu ser cansado e humano / E deita-me na tua cama. / E conta-me histórias, caso eu acorde, / Para eu tornar a adormecer. / E dá-me sonhos teus para eu brincar / Até que nasça qualquer dia / Que tu sabes qual é”.

Sei de outras leituras possíveis para esse menino eterno de Fernando Pessoa. Mas também sei que, lendo esses versos, não há como sairmos do enternecimento, tal a brandura que nos abrange. Meu pastor, pequenino e grande, cuida de mim e me deixa cuidar te ti! Me deixa te abraçar ao enlaçar meu corpo e minha alma frágeis e errantes! Amemo-nos!

As Lajes em revista: tessitura de retalhos e sentidos no jornal

26 de Abril de 2023, por Evaldo Balbino 0

O antigo povoado da Lage nasceu lá nas memórias mineiras dos meados do século XVIII. Depois veio a chamar-se Arraial da Lage e, no início do século XX, Vila Nova da Lage e em seguida Resende Costa. Abrolhou sobre uma enorme laje, com direito a montanhas entregues aos olhos amantes, pores do sol de arrepiar, um mirante para a vida inteira.

Mesmo depois de tornar-se cidade emancipada, essa nossa terra mineira e meu torrão natal, a Lage continuou e continua dando guarida à Tixa (a lagartixa de tantos anos e vidas) e às suas histórias, permaneceu abrigando o tecer de vidas à luz do sol chegando e se indo nos horizontes, persistiu abrindo-se aos nascentes e aos poentes de todos nós.

Ali onde a Tixa sobrevive,há, pois, muita história para se contar e notícias para correr o mundo.

O pequeno réptil gracioso escorrega de pedra em pedra com suas quatro patas cobertas por escamas e com seus dedos pegajosos. Escala as sinuosidades dos penedos, prendendo-se à vida pétrea inabalável. Frio, o seu corpo aparece e some nas reentrâncias porosas dos pedregulhos. Isso mesmo! Cada pedra, como a própria Tixa e todos nós, não deixa de ter seus poros, as vias possíveis de comunicação.

E é comunicando que vamos, a partir dessas vias, criando outras vias, outras vidas escritas a dizerem de nossas vidas em carne e osso e em espírito.

Assim, no ano de 2003, um grupo de resende-costenses, jovens estudantes que desejavam resgatar a memória e a cultura local, arregaçou as mangas e se pôs a produzir o Jornal das Lajes (JL).

Circulando mensalmente em Resende Costa, o periódico, além da versão on-line, também passeia por São João del-Rei, Tiradentes e algumas cidades vizinhas, na região do Campo das Vertentes. Circulando, corporifica o seu nobre objetivo, qual seja: exercer o jornalismo com competência, buscando resgatar e difundir a memória e a cultura da nossa região. Com os olhos voltados para o local, sem deixar de ver o global, as páginas do JL valorizam os potenciais de nosso povo e revelam nossos meandros culturais.

Desde 2003 deambulo pelo jornal. Antes principalmente como leitor e depois de 2009 também como colunista.

Quando convidado a escrever no periódico, pude escolher o nome da coluna que eu assinaria. Reavivaram-se, então, em meu pensamento, as memórias das tessituras da minha cidade. Mergulhei profundamente, como sempre o fiz, na arte de tecer colchas e tapetes que vi minha mãe exercendo a vida inteira tão bem ecom afinco e amor. Não somente ela, mas mulheres, muitas mulheres cuidando de tantas vidas. E, ao depois, muitos homens foram se achegando e emaranhando os fios da existência e contribuindo com o artesanato e com as vidas locais e globais.

Daí o nome da minha coluna: Retalhos Literários. Desde então venho escrevendo nas páginas do JL, cruzando palavras como fiados e tiras de retalhos se cruzam, os pés e as mãos trabalhando, o corpo curvado para frente, os olhos em movimento criativo. Fios, palavras e retalhos se misturam – e tudo é colcha na vida, da vida e para ela. Porque ela, a vida, urge eternamente, palpita em sua beleza, apesar do que a transforma, diversas vezes, em adubo triste sob a terra.

Escrevemos, portanto, tessituras. E tecemos escritas. Buscamos contexturas para que o conjunto se forme, para que os fragmentos se conectem, para que os sentidos do existir aconteçam. Tecer e escrever, arte densa de viver.

Irmão Aristides

29 de Marco de 2023, por Evaldo Balbino 0

“Bendito é o nome santo do Senhor!”. Pausada e enfaticamente, num soletrar de fé e visitação do Espírito Santo, essa frase voava do púlpito sobre toda a pequena igreja. E vinha da boca de homem branco, rosto vermelho pelo esforço no empenho das palavras. Suas mãos gesticulavam, ora indo sobre as palavras bíblicas, buscando não se perderem nas linhas ancestrais, ora se levantando para os lados e para o alto, admoestando, confortando e louvando o sagrado.

Era o irmão Aristides, descendente de italianos. A barriga buscando caminhar adiante do homem, sobejando ela no tanto existir e balançar, nas vozes duras e meigas da boca, no cantar altissonante, no dar risadas amorosas e sem fim. Um senhor ítalo-brasileiro, alegre e religioso, brincalhão com tanta meiguice e um olhar de veludo e voz trovejando amorosa nas objurgatórias e execrações diante da igrejinha.

Era o nosso cooperador ou, como muitos conhecem em diversas igrejas, nosso pastor. Porém não dizíamos “pastor”, pois na Congregação Cristã no Brasil, no seguir dos desígnios bíblicos, o nosso único pastor é Jesus Cristo, o deus humanado, o que se fez homem para sentir no corpo a beleza e a dor desta existência, para compreendê-la no seu cerne e para apaziguá-la e libertá-la da Morte Eterna. Precisou morrer para isso: a necessidade nossa de matar nosso deus para crer nele.

As alegrias e brincadeiras do irmão Aristides me tinham como um dos “alvos”. Deixei a chupeta mais ou menos aos dez anos de idade. Não abria mão dela ao me deitar. Na duração da madrugada, a chupeta era um amuleto, openhor de que eu seria sempre criança. Não que a infância seja um puro mar de rosas, um mundo onde tudo é várzea. Sem idealizações aqui. Apenas a chupeta cumpria a função de me garantir ser sempre pequeno e ficar protegido pelos braços imorredouros de minha mãe.

No entanto, carregar o amuleto me dava o desprazer de ouvir adultos mangando de mim, dizendo-me que um cavalão não podia mais ter bico na boca, coisa de criancinhas. Minha mãe só me pedia amorosa que eu largasse o bico. Diante da minha dificuldade em fazê-lo, seus olhos compreendiam tudo, e ela me amava e me aceitava. Até hoje tenho seu olhar sobre mim.

Sabendo da minha mania, o irmão Aristides não perdia tempo. Era só me olhar, e lá vinha sua voz retumbante e macia: “Olá, chupeta! A paz de Deus!”. Eu lhe respondia um “amém” de início meio envergonhado, mas depois fui me acostumando abrandado e contente. Afinal, em cada abordagem, balas para quem tem boca. E ele comprava as jujubas, coisa do outro mundo de tão gostosa. A bala de goma me caía bem, adoçando os cultos: os ouvidos e olhos vendo e ouvindo a voz do irmão Aristides, e a boca sendo enternecida no experimento das canduras da vida.

A mesma voz do homem alto e barrigudo também reboava nos quatro cantos do templo. Eram trovões de amor e de fúria. A respiração ofegante, as pupilas dilatadas, a boca ameaçando espumar como as muitas ondas em fúria de um oceano descomunal.

Olhando para tanto vigor, eu me lembrava de passagens bíblicas. O salmista pregando que a “voz do SENHOR ouve-se sobre as águas; o Deus da glória troveja; o SENHOR está sobre as muitas águas”. O profeta Ezequiel ouvindo a voz do Senhor e dando o testemunho dela: era como a voz de muitas águas! O discípulo João, amado por Cristo e perseguido pelo império romano, profetizando na ilha de Patmos: “Também ouvi uma voz como a de grande multidão, como a voz de muitas águas, e como a voz de fortes trovões, que dizia: Aleluia! Porque já reina o Senhor nosso Deus, o Todo-Poderoso.” Na vulcânica ilha, no fundo da caverna ilhada, no exílio-prisão, o visionário apóstolo enxergando a força sagrada.

O meu corpo inteiro lia e ouvia o que se dizia no púlpito. E do que o irmão Aristides falava, entre narrações, profecias, admoestações, promessas de vida e de bênção, imprecações – de tudo isso resulta o que sempre ecoa em meus ouvidos: quem tem ouvidos ouça o que diz a existência humana carente de Deus!

Jessé

01 de Marco de 2023, por Evaldo Balbino 0

Loiro com uma falha nos dentinhos de leite. Seu sorriso meio oriental e meio alemão, as pernas ainda moles no molejo do corpo, andando ele de quatro pelo chão da casa. Chão de azulejo e ladrilho lindos, um corredor imenso pela casa tornando íntimos quartos afáveis. Uma casa bonita de se ver. De fraldinha ainda o garotinho, e eu pequeno menino encantado com guri menor do que eu. Na época, eu achava que ele era bem menor do que eu. Talvez fosse impressão, pois eu tinha uns 7 anos por essa época. Ele, porém, usava fralda; já eu, não. Em compensação, ainda em minha boca a chupeta. O bico de borracha me acompanhando como se aquilo tudo fosse o paraíso. E era.

Mesmo de chupeta, me sentia adulto perto de menininho tão pequeno buscando meus cuidados.

O gurizinho alegre engatinhando tinha um nome de origem hebraica: Jessé. “Filho de Deus”, esse bonito sentido. E de seus olhinhos puxados raiava uma luz. Um menino sansei, cuja avó materna, nissei, sempre tricotava e nos amava a nós meninos fazendo baderna em sua casa e brincando com o seu netinho.

Seu avô era de origem alemã, barriga grande, pele avermelhada de tanta brancura se expondo ao sol. Voz alta, forte e alegre a do avô.

Irmã Leonora e irmão Aristides, os nomes amáveis dos meigos avós.

Jessé era puro riso. Um riso gostoso, uma vontade danada na gente de apertar suas bochechas, de enroscar os nossos dedos no seu cabelo cacheado e amarelinho. Cabelo da cor do sol sem nuvem bem no meio do dia, sem calor e sem frio. Só uma vontade de alegria. Aquele sentir aconchegante de mornidão que nos atravessa e mora dentro da gente.

Minha irmã e eu já andávamos, mas engatinhávamos ali com ele para sermos iguais no existir, para sermos serenos e contentes pelas vidas meninas – a dele e as nossas. Ela já mocinha, mais “adulta” do que eu, me ensinando a vida como lição que se oferece a quem precisa.

Perante o Jessé, o meu sorriso. A alegria de quem travava contato com um anjo, brincando de levitar sob o peso da gravidade. O lúdico da vida tem o poder de atravessar montanhas, de driblar as leis da física, de viajar galáxias tantas e sem fim. Escondíamos um do outro pelos cantos da casa, empurrávamos carrinhos existentes ou não, gritávamos de felicidade pelo chão limpo e brilhante. Nem cera nem luz do sol, mas um fulgor íntimo do chão que nos amparava.

Brincar com o Jessé era um dos modos de existir sem preocupações.

Nos intervalos das brincadeiras, a avó chegando com suco e lanches, suas mãos tricotando guloseimas para bocas gulosas, sua sabedoria nos ensinando o ser criança na fugacidade da existência.

Do avô, também nos intervalos das brincadeiras ou no meio delas, a voz de trovão amoroso, o sorriso largo e companheiro, a barriga balançando e nos sacudindo de leveza e luz.

Hoje já se passaram muitos anos. Do neto sansei nada mais sei. Desde que os avós voltaram para São Paulo, de onde tinham ido para minha cidadezinha com o destino de evangelizar almas, não mais vi nem ouvi o amiguinho. Voltaram os avós para a casa da filha, mãe do Jessé, e por lá permaneceram os genitores até a morte. A notícia de ambos os falecimentos me foi dadamuito tempo depois pela voz de minha mãe.

Uma única vez, eu já morava em Belo Horizonte – e isso já tem tempo –, a irmã Leonora foi de São Paulo para nossa pequena urbe. E esteve lá em casa num domingo. Por um acaso, ou melhor, por uma bênção da vida, eu estava lá. Ela não me reconheceu. O rio era outro, e eu também. Mesmo assim ela me abraçou com afeto, e conversamos um pouco. Não cheguei a lhe perguntar sobre o neto. Não sei, hoje, porque à época não me lembrei de coisa tão importante. Não perguntei e ficou por isso mesmo. Até que a notícia do falecimento de senhora tão boa me chegou, como alguns anos antes já me tinha chegado a informação da morte do seu esposo.

Nas cortinas do tempo, às vezes diáfanas e às vezes não, vejo e entrevejo o menino de dentes de leite falhados. E o seu sorriso não é escravo do velho tempo, o antigo e eterno Chronos que nos devora, mas adorno ofertado por Kairós, a vivência oportuna, especial, memorável, cheia de significância. De lembrança assim não fugimos. Antes nos tornamos seus cultivadores, como um jardineiro amoroso cuida de sua flor.

Um novo ano

26 de Janeiro de 2023, por Evaldo Balbino 0

Calendários são criações humanas. Deus está fora do tempo e não precisa de demarcações. Mesmo assim delimitamos o sagrado, delineamos suas possíveis faces. E como são belas nossas representações, mesmo sendo imperfeitas! Nem passado nem presente nem futuro – nada disso existe para um eterno desde sempre existindo e continuamente vivendo. Nós, no entanto, somos escravos do tempo. Precisamos de organização porque em tudo, mesmo que inconscientemente, vemos apenas um caos, uma ausência de explicação e, portanto, de entendimento. Nada compreendendo, vamos criando formas e fôrmas, formando configurações que possam nos salvar.

Assim é o dia 01 de janeiro de cada ano. Feliz Ano Novo! – dizem. Boas Festas! – as pessoas ao nosso entorno desejam, por mero ritual ou de fato com sentimento verdadeiro. O mundo ao redor é vasto, e tantos são os desejos de vida – longa, apaziguada e com saúde.

Há os que desejam dinheiro, muito dinheiro, para si e/ou para os outros. Como se gosta de brincar: dinheiro não é problema, é solução. Brincadeiras à parte, sabemos muito bem que dinheiro sem saúde e sem paz não adianta. Pode ser a rainha ou o rei de um reino qualquer, cujas vidas são vidinhas mesmo como a de todo mundo, mas não deixando de ser importantes. Toda existência é admirável. Pode ser a vida real, de sangue nobre e tudo o mais, de brasão e ouro guardado a sete chaves em cofre luxuoso. Sabemos, e como bem sabemos, para usar aqui um chavão, que dinheiro não traz felicidade. Outra brincadeira: dinheiro não traz felicidade, manda comprá-la. Que comprar que nada! Temos a consciência de que não é bem assim.

Primeiramente, nos atravessa a certeza de que a felicidade não existe. Não existe como uma permanência, uma constante no existir. O que temos são momentos alegres e tristes, os dois sentimentos coexistindo ou se alternando. Dentro do espectro entre alegria e tristeza, vivemos. Certa vez Tônia Carrero foi indagada, numa entrevista, se era feliz. “Sim, diversas vezes ao dia” – ela respondeu com a profunda convicção do que estou falando.

Em segundo lugar, falemos dos momentos felizes. Eles podem até ser comprados. Mas sem dinheiro, tais momentos podem existir e de fato acontecem. Falo de bastante dinheiro, porque para se ter um pouco de dignidade nesta vida faz falta uma cota decente desse bendito ser monetário. O acontecimento da alegria, pois, não depende de materialidades.

Voltemos aos calendários, ao nosso em específico. Agora um Ano Novo, um eterno recomeçar da existência para quem está neste plano físico. Para além de nossas marcações temporais, vivemos. E vivemos esse para além principalmente quando estamos no plano espiritual. Aqui, ainda, aqui em nossa vida vidinha tão boa, vemos todo ano, na virada do dia 31 de dezembro para o dia 01 de janeiro, a possibilidade do recomeço. Daí almejarmos, para nós e para todos, um ano feliz. Necessitamos sonhar com isso.

O ano de 2022, especificamente no meu caso, foi muito denso. Eivado de perdas, quedou-se bastante vazio. Vazio de seres que eu amava e amarei sempre. Venho aprendendo a caminhar sem minha mãe, sem minha mana caçula e sem meu irmão que contava com 08 anos a mais do que eu. Aprender as perdas é lição difícil, porém inevitável. Mergulhado no vazio, busco encontrar nele o tudo, pois os meus continuam comigo, acredito, e porque fui testemunha de que eles precisavam descansar do fardo que estavam carregando. Todos, em nosso corpo físico, temos o momento certo para deixar o fardo quando ele pesa em demasia.

2022 foi também para mim, no curso que segue, um tempo de conquistas, de avanços, no plano pessoal e social. Estou crescendo, todos nós estamos. Eis, portanto, a prova de que vivemos entre alegrias e tristezas, uma coisa equilibrando-se com a outra, mesmo que às vezes a balança penda mais para um lado e contra a nossa vontade.

Vivamos, então, o nosso tempo! Os nossos tempos sentidos das formas mais variadas e possíveis. Vivamos a porta que se nos abre: este 2023 que nos chega e nos encontra prontos para continuar, apesar de todo o cansaço. Viver é necessário.