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O triste nível da política brasileira

19 de Abril de 2016, por Evaldo Balbino

"Circo" e fundamentalismos norteiam maioria na Câmara dos Deputados no Congresso Nacional

O Brasil e o mundo assistiram nestes últimos dias a uma festa de carnaval, a um teatro cheio de farsas, malícias, hipocrisias e falta de decoro. E tudo isso montado no palco da Câmara dos Deputados do Congresso Nacional. Perdoem-me os que dançam o verdadeiro carnaval das ruas; perdoem-me os artistas verdadeiros dos palcos de teatro. Entendam que aqui tomo as palavras “carnaval” e “teatro” não no sentido nobre que elas têm, mas sim no sentido de atos e comportamentos ridículos encenados por parte significativa dos deputados federais de nossa nação perante os olhos do Brasil e do mundo.

De acordo com decisão do Supremo Tribunal Federal, apenas os dois elementos contidos no relatório de solicitação de impedimento da presidente Dilma Rousseff deveriam ser considerados pelos nossos representantes na casa legislativa para debate e votação: 1) emissão, pela presidente, de seis decretos de crédito suplementar em 2015 e 2) pedalada fiscal naquele mesmo ano. No entanto, o que se viu não foi isso. Assistimos a discussões muitas vezes vazias ou sem foco, atirando para todos os lados, e fazendo isso não como um tiroteio tonto e cego, e sim no intuito de se chover no molhado, fundamentar o que não tem fundamento, para tentar escamotear algo que diversas vezes ficou claro. As intenções partidárias e espúrias se deflagraram o tempo todo sem a mínima preocupação de eufemismos e amenidades.

Durante os debates, as câmeras denunciavam um plenário muitas vezes esvaziado. Na tribuna, oradores falavam para as paredes ou para “gatos pingados” cuja boa parte geralmente nada ouvia, falando aos celulares, conversando uns com os outros, vaiando, gritando, não respeitando a voz e a vez de cada um. A Câmara somente lotou de fato na hora dos votos.

Depois, durante a votação, o circo perigoso (de levar a um riso que é choro e lamento) ficou de fato mais evidente. A oposição, desmantelando a democracia, foi apresentando por boa parte de seus membros comportamentos nada dignos de parlamentares. Risos, gritos, ofensas, homenagens a familiares demonstrando claramente que interesses privados valem mais do que os eleitores deste país, fundamentalismos de dar medo, referências a supostos “ataques à família brasileira perpetrados pelo governo”, elogios à ditadura e a torturadores (vide as palavras fascistas de Jair Bolsonaro), encenação da violência militar (vide Eduardo Bolsonaro que ofereceu aos militares de 1964 seu “sim” pelo impeachment e fez gestos bélicos como se estivesse, em plena Câmara, portando armas de fogo).

Em todos esses discursos, nada de humanismo e tudo de intolerância. Índios, negros, gays, pobres, sem-terras e classes trabalhadoras foram constantemente apontados como protegidos dos “assistencialismos do governo” e as crianças nas escolas como vítimas das “tentativas de perversão” quanto ao sexo por parte de cartilhas escolares dos governistas. O lema “Tchau, querida”, propagandeado pela oposição ao governo, sempre se dirigia à presidente da república. Porém, logo após a fala do deputado Jean Wyllys, homossexual declarado que luta pelos direitos dos grupos LGBT no Brasil, alguém ao seu redor gritou com ele, descaradamente, um “Tchau, querida” que transbordou homofobia pelos poros e desconhecimento do que são de fato as múltiplas representações de gênero. Infelizmente o deputado Wyllys, num enfrentamento com Jair Bolsonaro, acabou perdendo a paciência e dando uma cusparada no defensor das forças ditatoriais sob alegação de ter sido ofendido.

A predominância da bancada evangélica também se comportou de modo triste e equivocado. Usando o nome de Deus em vão, em nome de uma suposta moral e dos bons costumes, alardeou interesses privados e uma intransigência para com as diferenças. Aqui mais uma vez não generalizo, porque há evangélicos no país e deputados evangélicos na própria Câmara que, mesmo não abrindo mão de sua fé religiosa, não misturam Estado e Igreja, reconhecem a laicização do Estado conquistada há tempos e, portanto, não apresentam discursos antidemocráticos e bitolados. O Jornal El País da Espanha ironizou todo o processo e com muita razão. Com a manchete “Deus derruba a presidenta do Brasil”, assinada por María Martín, o periódico afirma, nesta segunda-feira, dia 18/04/2016, que “Deputados justificam seus votos em Deus, na moralidade e a família: o motivo real da votação é esquecido”. Mostrando que estamos com um dos congressos mais conservadores desde 1985, o jornal sugere que “que ninguém leu o relatório com os fundamentos jurídicos que justificariam o crime de responsabilidade para a queda de Dilma – ou, pelo menos, ninguém se esforçou em demonstrá-lo”. E termina com ironia o periódico, numa referência ao fato de que temos um congresso “cheio de fundamentalistas religiosos e que possui o maior percentual de deputados com familiares políticos desde as eleições de 2002”: “Após quase cinco horas de votação, Deus e os netos dos deputados derrubaram a presidenta do Brasil”.

Este texto que ora escrevo pode ser tomado como carta aberta – e indignada – de um cidadão e cristão brasileiro a boa parte das Excelências da Câmara dos Deputados do Congresso Nacional. Sou cidadão sim, pois vivo numa sociedade de que participo com dignidade, pagando meus impostos, respondendo prontamente às leis do meu país, vivendo nesta nação com civilidade, respeitando a todas as pessoas à minha volta. Cristão também sou, pois nasci e fui criado num lar que me apregoou Cristo e o Deus cristão desde cedo. Do mesmo modo que eu poderia ter nascido em outra cultura e ter aprendido outros nomes de Deus.

Ser cristão de “mente aberta”, antenado com as questões culturais mais amplas, é não seguir estatutos ultrapassados de civilizações que não apresentavam ainda os avanços democráticos que hoje conquistamos. Diversos dos códigos de vigilância e punição atribuídos ao Moisés bíblico e aos arroubos depreciativos de, por exemplo, um Paulo em suas cartas, devem ser lidos em seus tempos e não atualizados de modo fundamentalista como muitos fazem hoje em nome de Deus. Tais leituras descontextualizadas apresentam uma ignorância tamanha, não fazem distinção entre o discurso e a coisa discursada, tomam a palavra pelo fato, confundem o sagrado com suas representações. E nessa confusão, acabam por acreditar que seus dogmas são melhores do que os dogmas alheios. Muitos desses deputados falavam “em nome de todos os cristãos do Brasil”. Eu, cristão, não me sinto representado por falas que ferem um dos princípios basilares do cristianismo: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Se não há respeito pelo próximo, não há amor.

Minha salvação – no sentido espiritual, ético, social, político – foi ter aprendido ao longo da vida que o sagrado e os discursos que tentam representá-lo não se confundem. Daí o meu respeito, inclusive, por todos os tipos de religião. Quando se respeita a vida, todas as formas de vida que não oprimem outras possibilidades de existência, aí sim estamos libertos, estamos salvos; aí sim demonstramos respeito e ética.

Diversos deputados, inclusive o próprio Eduardo Cunha com seu sarcasmo e cinismo, disseram várias vezes: “Que Deus tenha misericórdia deste país”. De fato, precisamos mesmo da misericórdia divina. Não podemos aceitar uma Câmara presidida por um réu da Lava Jato, uma Câmara composta em sua grande parte por muitos fazedores de pantomima demagoga e patética, uma Câmara que se constrói (também em sua grande parte) em bases fundamentalistas e antidemocráticas. Nada mais nos resta em termos de sonho, num país onde boa parte dos membros da instituição legislativa federal não sabe nos representar com decoro e dignidade, mas fazendo apenas carnaval e partidarismo sórdido.

Encaremos a dura realidade, peçamos mesmo misericórdia a Deus (sem falsidades) e lutemos contra os golpes à democracia. Lutemos nas ruas, nos movimentos sociais, votando e educando as pessoas para não votarem em fundamentalistas e corruptos. Muitas vezes merecemos os governantes que temos: votamos por escusos interesses econômicos, por valores religiosos, partidários e familiares. Votamos em quem é da nossa cidade ou da nossa região, simplesmente por apego (interessado ou afetivo) aos ditames da conterraneidade. E não buscamos informações, e não analisamos as ideologias que guiam os discursos dos candidatos. Se a maioria da população fizesse o contrário de tudo isso, aí sim faríamos valer a democracia e não permitiríamos que uma elite economicamente minoritária transformasse a Câmara dos Deputados e o Brasil num espaço de cooptação da maioria, de lavagem cerebral dos muitos que não constroem a própria opinião ou que a constroem guiando-se por interesses próprios e não coletivos.

Diz o velho ditado, em si preconceituoso, mas com certa verdade: “Na terra de cegos, quem tem um olho é rei”. Por enquanto, pelo visto, ainda poucos têm o olho para enxergar.

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