Cresce na Europa movimento de mães imigrantes pelo português e a cultura brasileira


Especiais

José Venâncio de Resende, especial de Munique0

Andréa e Camila, organizadoras do II SEPOLH, revelam o local do próximo evento

Poucos brasileiros sabem, mas se encontra em ebulição na Europa um movimento de associações não-governamentais (formais ou em fase de organização) de mães (e pais) imigrantes, principalmente brasileiras (os) e lusitanas (os), em prol do ensino do português como língua de herança. Mais do que o bilinguismo, estas mães buscam aproximar seus filhos das raízes culturais de seu país de origem.

Narrativas de experiências, troca de conhecimento e conversas informais, tudo permeado por muita emoção. Assim foi o II Simpósio Europeu sobre o Ensino de Português como Língua de Herança (SEPOLH), que reuniu cerca de 80 representantes de 17 países, no período de 16 a 18 de Outubro em Munique (Alemanha). O evento foi organizado pela Linguarte e pela Mala de Leitura de Munique e abordou temas como formação de professores, currículo e material didático para o ensino do Português como Língua de Herança (POLH), alfabetização bilingue e projetos de incentivo ao POLH na Europa.

Participaram representantes de Dinamarca, Alemanha, Inglaterra, Noruega, Espanha, Portugal, França, Itália, Bélgica, Suíça, Holanda, Aústria, Eslovênia, Emirados Árabes, Brasil, Irlanda e Lichtenstein. Este encontro representou clara evolução em relação ao I SEPOLH, que aconteceu em 2013 em Londres, Reino Unido, tanto em número de pessoas quanto de países.

O evento londrino reunira 57 pessoas da Inglaterra (a maioria), de Suíça (Cantões de Genebra e Zurique), Bélgica, Alemanha, Noruega, Espanha, Portugal e os convidados Edleise Mendes (professora da Universidade Federal da Bahia-UFBA) e Gilvan Müller de Oliveira (presidente do Instituto Internacional da Língua Portuguesa-IILP).

O I SEPOLH foi criado e organizado por voluntários da Associação Brasileira de Iniciativas Educacionais no Reino Unido (ABRIR). Ao final do evento, decidiu-se que o SEPOLH seria itinerante. O conselho diretivo do evento, formado por Ana Souza, Kenya Gonçalves Silva e Fábio Mesquiati, foi ampliado com a inclusão de Camila Lira, da Linguarte de Munique, escolhida para organizar o II SEPOLH.

O II SEPOLH agregou mais nove países. Os Emirados Árabes participaram como convidado especial, numa espécie de “adoção” por parte da rede europeia. A representante do Japão inscreveu-se para conhecer o trabalho, e foi autorizada a apresentar poster sobre as atividades desenvolvidas naquele país.

Segundo Ana Souza, o II SEPOLH foi mais rico em trocas de conhecimento e experiências. Além disso, o evento de Munique consolidou o senso de grupo que trabalha em colaboração e firmou sua identidade visual (modificação e aperfeiçoamento da logomarca).

Ainda assim, o I SEPOLH recebeu apoio financeiro do Ministério das Relações Exteriores (MRE) do Brasil, o que não aconteceu com o evento de Munique. Segundo Camila, o projeto do II SEPOLH, encaminhado por Linguarte e Mala de Leitura, chegou a ser aprovado pelo Departamento de Língua Portuguesa do MRE. A justificativa pelo dinheiro não ter sido liberado foi a crise econômica do Brasil.

Diversidade e universalidade

A relação intrínseca entre língua e cultura, citada em alguns dos trabalhos apresentados no II SEPOLH, como o de Andrea Wünsch, é um dos pilares do projeto da União Europeia (UE), observou Camila Lira, da Linguarte, no encerramento do evento. “ Em seu texto, a UE diz que as línguas definem a identidade de cada pessoa, mas fazem parte igualmente de uma herança comum.”

Camila, que foi uma das organizadoras do evento, destacou ainda a necessidade de se lutar pelo respeito à diversidade cultural e linguística, prevista na Carta dos Direitos Fundamentais da UE. Nesse sentido, citou aspectos como universalidade da Língua de Herança e o fato de ela fazer parte de nossa identidade e sofrer os mesmos obstáculos em qualquer lugar, presentes nas apresentações de Ana Souza e  Andrea Wünsch. Mas a Língua de Herança tem suas especificidades, “associadas a bagagem étnica e cultural bem como ao contexto em que está inserida”.

Neste contexto, o POLH começa a ser desenvolvido, “principalmente por pais e mães brasileiros que emigram e possuem a preocupação de deixar um legado linguístico e cultural para seus filhos”, de acordo com a professora brasileira Edleise Mendes citada por Camila. Na Europa, já existem mais de 15 iniciativas em prol do POLH, algumas com mais de 18 anos de experiência como a ABEC (Associação Brasileira de Educação e Cultura) da Suíça.

“A cada ano encontramos ainda a vontade de organizar mais iniciativas como estas”, observa Camila, referindo-se a experiências como a Mala de Leitura (Munique-Alemanha e Tirol-Áustria), Brasileirinhos (Dresden-Alemanha e Dinamarca) e AMBI (Associação das Famílias Brasileiras na Irlanda). “Estas iniciativas podem ter começado através de pais, mas hoje tem uma qualidade extrema baseada no anseio e na vontade de oferecer programas de qualidade à comunidade.”

Camila enfatizou a importância de aceitar as diversidades, para se ter sucesso neste projeto. “É necessário dar importância igual às línguas que a criança fala. Sendo assim, esta ideia de proibir o falar na língua dominante em sala de aula em prol do POLH é desnecessária, pois somos bilíngues o tempo todo.”

Consciência intercultural

Também ressaltou o “sentimento de pertencimento à cultura brasileira e sua língua”, ao qual se referiu Rita Dorneles (da ABRIR). “Isso nos leva a pensar na heterogeneidade de nossos grupos e consequentemente na interculturalidade.”

Daí a importância de o professor ter consciência intercultural, citada por Kenya Gonçalves Silva (ABRIR) e pela professora Maria Luisa Ortiz Alvarez (Universidade de Brasília-UnB), na questão do “construir, reconstruir e descontruir a sua percepção de mundo”. O professor de POLH, alicerçado na sua formação, “deve pensar na apropriação individual de construção do conhecimento profissional dos sujeitos”, alerta Camila. “E ainda não há evidências de transferência dos aprendizados para as práticas de professores.”

Outro desafio é acomodar o tripé professor/aluno/pais, citado por Miriam Müller Vizentini (ABEC), em relação à realidade e ao que é possível ser feito. O professor de POLH é material didático e possuidor/formador de sua cultura, lembra Camila. “Desenvolver o currículo implica pensar em por que estamos fazendo isso, para quem (quem é meu público) e para que serve este currículo (é para aula de línguas, vai entrar no boletim?)”

Neste ponto, o desafio é levar os pais para a escola e se adaptar à realidade onde se está inserido. Não se pode deixar de fazer uso do currículo brasileiro (PCN’s), citado por Martine Scherer, sem esquecer que é preciso oferecer as quatro habilidades linguísticas e também a competência metalinguística, ou seja: alfabetizar (quebrar o mito de a alfabetização simultânea ser prejudicial), (re)pensar, pensar, construir descontruir, reconstruir o material didático e também considerar o trabalho com línguas parecidas. Mas também pensar em interferências e transferências de língua para língua.

Camila propôs, ainda, uma reflexão sobre questões como o papel de uma cartilha no POLH e a necessidade (ou relevância) de se mudar a caligrafia. “Língua de Herança é mesmo alfabetizar ou propiciar momentos para o contato com a língua?”

Outros destaques

Na Suíça, as aulas de português como língua de herança estão integradas na escola, diz a professora Vanessa Pacheco em mensagem aos associados da AMBI (Irlanda). “Os alunos tem aulas todas as quartas-feiras, e as notas vão para a grade escolar desses alunos.”

Vanessa, que participou do II SIPOLH, informou ainda que na Áustria existe uma lei que rege o direito das crianças a ter acesso a língua de herança de seus pais. “Inclusive o Português!” Também destacou a iniciativa britânica de criar o "Assistente Bilíngue", que trabalha nas escolas para garantir a integração cultural e educacional de alunos brasileiros recém-chegados ao sistema educacional de Londres. Kenya Silva ocupa esta função numa escola inglesa.

Na Escola Europeia Estadual Bilingue (Português/Alemão), de Berlim, as crianças são alfabetizadas simultaneamente nas duas línguas e recebem aulas nas duas línguas dentro do Currículo escolar. “Algumas aulas são em português e outras aulas são em alemão”, assinala Vanessa.

Ela citou também o projeto Mala de Leitura, de Munique (Alemanha), que já começa a chegar a outros países. “Trata-se de uma biblioteca itinerante que ´cabe´ numa mala.” Neste projeto, a Andréa Menescal Heath  leva os livros a um certo local, as pessoas fazem a inscrição e recebem um "passaporte" da leitura e uma bolsa. “Podem assim emprestar os livros, devolvendo no dia indicado do próximo encontro.”

Também merecem ser destacados projetos apresentados no II SEPOLH, como Canta Nenê (Alemanha), Hora do Conto (Dubai, Emirados Árabes), Raízes (Suíça), Casa do Brasil (Florença, Itália), Brasileirinhos (Holanda) e Sementeira (Liubliana, capital da Eslovênia).

Chamou a atenção o projeto Mala de Leitura criado este ano em Tirol, na Áustria – país federativo que política pública progressista de promoção de língua de herança (cerca de 20 idiomas são ensinados). Apesar disso, havia escassez de informações em Tirol (região montanhosa onde as pessoas estão dispersas), o que levou Julliane Rüdisser a criar uma plataforma no Facebook para localizar brasileiros. A plataforma não apenas viabilizou o projeto como se tornou fonte de informações.

No final do evento, a plataforma denominada “Elo Europeu de Educadores de Português como Língua de Herança” foi apresentada por sua coordenadora, Maria José Maciel. O objetivo desta plataforma é o de fomentar, promover o intercâmbio e servir de fonte de informações.
Um fenômeno observado no II SEPOLH foi a maior presença de acadêmicos (professores, pesquisadores e alunos de doutorado e mestrado) interessados no assunto. Está crescendo o interesse por pesquisas nesta área, a partir da realidade, do contexto onde as pessoas atuam, observa a professora Maria Luisa Ortiz (UnB).

Pesquisas em português, como Língua de Herança, estão aumentado na Europa. Começaram com Ana Souza no Reino Unido e passam por Cristina Flores e Sílvia Melo-Pfeifer (Universidade de Aveiro e, agora, Hamburgo), que já defenderam tese de doutorado. Inclusive, algumas participantes do II SEPOLH são doutoras. Atualmente, existem mais de três doutorandos na Alemanha, entre eles Camila Lira em Munique, e três doutorados em andamento na Espanha, além de uma mestranda na Áustria (Juliana Rüdisser).

Carta ao MEC

O plenário do II SEPOLH aprovou o envio de “Carta aberta sobre o Ensino do Português como Língua de Herança” ao ministro da Educação, Aloizio Mercadante, e outras autoridades brasileiras, solicitando maior contribuição do poder público na missão de “tornar ainda mais expressivos os resultados do ensino do POLH no exterior”. Segundo o documento, estimativas do Ministério das Relações Exteriores apontam a existência de mais de 850 mil brasileiros residentes na Europa e a frequente necessidade de suporte para os pais transmitirem o POLH e a cultura brasileira para seus filhos.

“Em consonância com o "Plano de Ação-2014", resultado da IV Conferência de Brasileiros no Mundo (promovida pelo MRE, em Brasília, no mês de novembro de 2013), as principais solicitações apresentadas pelo Grupo são as seguintes: previsão de doação periódica de livros didáticos e paradidáticos, bem como de filmes brasileiros, para instituições que tenham alunos brasileiros na rede pública de ensino no exterior; apoio financeiro a projetos desenvolvidos pelas instituições de POLH, bem como a disponibilização de estrutura que permita o intercâmbio das iniciativas já existentes; elaboração e distribuição de material comum de POLH; incentivo a pesquisas e intercâmbio acadêmico sobre o POLH ; e apoio financeiro à realização de cursos de formação de professores em POLH organizados pelas iniciativas.
Cópia da Carta foi encaminhada à coordenação geral do Conselho de Representantes Brasileiros no Exterior (CRBE), do qual Andréa Menescal e Ana Lúcia Lico são responsáveis pelo grupo temático de educação, e entregue à Cônsul-Geral do Brasil em Munique, Carmen Lídia Richter Ribeiro Moura.

Agenda

Uma das iniciativas do II SEPOLH é a realização em 2016 de um curso (online e presencial) de formação de professores em português como Língua de Herança. A diferença para os cursos oferecidos pelo MRE é que o novo curso terá supervisão pedagógica e um formato com abordagem de temas mais específicos. Dessa forma, será possível influir nos temas a serem abordados, diferente do modelo anterior que é de cunho mais geral, explica Camila Lira.

A professora Maria Luisa Ortiz elogia a iniciativa das associações no sentido de dar este passo adiante, ao lançar um curso independente. Para ela, o mérito do MRE foi ter criado um curso para dar base mais metodológica (convergência entre as teorias contemporâneas sobre o ensino de línguas e a prática da língua de herança dos professores). O primeiro curso do MRE na Europa foi realizado em 2012 em Zurique (Suíça) pela ABEC, no qual foram professoras Maria Luisa e Cristiane Moises (UnB). O último curso foi em Madri, em Novembro do ano passado.

Também em 2016 a professora Maria Luisa pretende organizar em Brasília (DF), provavelmente em Agosto, o primeiro Congresso Internacional de Ensino de Língua de Herança.

No final do simpósio de Munique, Camila Lira anunciou que o III SEPOLH será em Outubro de 2017, em Genebra (Suíça), organizado pela Raízes com o apoio da ABEC-Zurique.

Histórico

Antes do lançamento oficial da  ABRIR em Novembro de 2008, houve três escolas de ensino de língua portuguesa de herança na Inglaterra, das quais duas, respectivamente, no começo e final da década de 1990, que fecharam suas portas. A terceira foi fundada em 1997 por Júlia Felmanas e um grupo de mães, numa época em que a comunidade brasileira ainda era pequena.

A escola cresceu, estruturou-se e se tornou uma organização não governamental (ONG), à qual Ana Souza se juntou em 1999 como voluntária. De professora assistente, Ana chegou a coordenadora pedagógica em 2000, devido a sua experiência em bilinguismo. A outra coordenadora pedagógica, Aline Belisário, levava na bagagem a atuação em escola primária no Brasil. Elas uniram-se e desenvolveram um projeto pedagógico, bem como um manual do professor (como elaborar perfil linguístico da criança, planejamento de aulas, escolha de material e acompanhamento das aulas).

Em paralelo, Ana Souza dava aulas de inglês para falantes de outras línguas (preparatório para a universidade e cursos vocacionais e comunitários) num college de Londres. Nesse período, iniciou o doutorado em sócio-linguística na Universidade de Southampton. Depois de seis anos, deixou o trabalho voluntário (2004) e logo em seguida (2006) concluiu o curso de doutorado.

Aliou-se a um grupo de quatro pessoas para fundar a ABRIR com o objetivo de apoiar as escolas brasileiras complementares e as famílias de imigrantes ou de casamentos mistos. A Associação começou com três escolas, numa média de 20 alunos.

Em 2012, Ana Souza participou do primeiro curso de formação de professores em POLH, em Zurique (Suíça). Na oportunidade, conheceu pessoas que desenvolviam trabalhos semelhantes em outros países europeus.

Ao voltar à Inglaterra, fez buscas na internet (em especial no site “brasileiros no mundo”) com o intuito de localizar pessoas e organizações na Europa. Começava, assim, ganhar forma o I SEPOLH, organizado por ela e outros voluntários da ABRIR.

LINKS DE REFERÊNCIA:

SEPOLH Europa http://www.sepolh.eu/

ELO Europeu http://www.eloeuropeu.org/

ABRIR Reino Unido http://www.abrirweb.com/

ABEC Zurique http://www.abec.ch/index.php/pt/

Linguarte Munique http://www.linguarte.de/

AMBI Irlanda http://ambirlanda.org/

"Uma língua como herança - documentário educativo sobre o ensino de POLHna Inglaterra" https://www.youtube.com/watch?v=OAmHgBFwDf8

 



 
    
          



Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário