Galiza (Espanha) quer aumentar acesso da população à língua portuguesa


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José Venâncio de Resende, de Santiago de Compostela/Lisboa 0

fotoCatedral de Santiago de Compostela: fachada em restauração

Uma lei de iniciativa popular - a “Lei para o aproveitamento da língua portuguesa” - está em vigor desde 2013 na Galiza (Espanha). A lei, aprovada por todos os partidos do Parlamento estadual, propõe medidas de ampliação do acesso ao português em três áreas: ensino, meios de comunicação e relacionamentos institucionais.

Trata-se de um avanço, apesar do desinteresse por parte de Madrid na sua implantação, considera Valentim Fagim, linguista, autor de livros, professor de português na Escola de Idiomas de Ferrol (a 100 quilômetros de Santiago de Compostela) e atualmente vice-presidente da Associaçom Galega da Língua (AGAL) (http://www.agal-gz.org/corporativo/). 

Esta lei surgiu de uma ILP (iniciativa legislativa popular), o que exigiu a coleta de 17 mil assinaturas (de um total de 2,3 milhões de pessoas acima de 18 anos aptas a assinar) para ser submetida ao Parlamento da Galiza. Foi uma das duas únicas ILPs que conseguiram tramitar no Parlamento em toda a história da democracia galega (30 anos), comemora Valentim. As assinaturas foram recolhidas por dezenas de pessoas. O grupo promotor era formado por quinze pessoas, sendo que uma delas - o empresário Xosé Morell - foi quem fez a defesa da proposta no Parlamento. 

Na educação, a nova lei propõe introduzir a língua portuguesa no sistema de ensino básico (5 ou 6 aos 18 anos). Mas não define data de início e a medida vem sendo postergada sob o argumento, por parte do governo galego, de que falta dinheiro para investimentos devido à crise econômica europeia. 

Em relação aos meios de comunicação, a lei propõe que a população possa ter acesso a canais de TV em português (emissoras de Brasil e Portugal). Mas a autorização depende de Madrid, que até agora não deu o sinal verde. 

No caso dos relacionamentos institucionais, a iniciativa mais relevante seria o ingresso da Galiza na Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP). Parece que, das três medidas, esta é a que está mais próxima de ser autorizada pelo governo galego. 

Apesar das limitações, Valentim está otimista. “Essa lei deve abrir novas perspectivas pois deixa de ser uma questão apenas privada (entre pessoas e instituições não-governamentais).” Ele lembra que o português é a língua de nove países e de regiões como a Galiza e a Estremadura na Espanha, falada por mais de 250 milhões de pessoas. 

Língua-mãe 

A língua galega, que originou o português, nasceu na atual Galiza e no norte de Portugal, expandiu-se até o Algarve e, a partir de Portugal, a todos os continentes, segundo Valentim. “Mas é impossível marcar precisamente o nascimento de uma língua.” Com o surgimento de diferentes unidades administrativas na Europa ocidental (Gallaecia, Tarraconensis, Aquitania, Lusitania etc), também nasceu a necessidade de escrever o que se falava de uma forma inteligível. “Chegou um momento em que as pessoas que sabiam ler, não sabiam latim. Havia que elaborar documentos como heranças, posses de terras, desterros, leis, poesias, crônicas... E as pessoas necessitavam entender o que liam. Este foi um processo muito gradual.” 

Assim, para que uma língua exista, é preciso que haja uma entidade grupal que a sustente (reino, estado, tribo, nação…), dizem José Ramom Pichel Campos e Valentim Fagim*. “O primeiro reino da história medieval europeia foi fundado pelos suevos no ano 409. Nasceu num canto da península ibérica no que tinha sido a província romana Gallaecia, e a sua capital estava sediada em Braga.” 

Durante vários séculos – prosseguem os autores – a palavra Hispânia passou a definir a zona dominada pelos visigodos e depois pelos muçulmanos, enquanto Gaellecia designava a zona dominada pelos suevos e depois pelos cristãos. “Neste canto do noroeste peninsular, ligado ao poder das suas instituições, surgiu uma língua que foi a de reis e rainhas, poetas, textos administrativos, prosa literária…”. 

E prosseguem os autores: “No século XIII, o galego-português era a língua mais avançada da zona cristã da Península Ibérica”.  O galego foi a língua política e da cultura em todos os reinos centro-ocidentais da Península, com Santiago de Compostela como cidade culturalmente hegemônica, acrescenta Camilo Nogueira**. “E, até os finais do século XV ou princípios do século XVI, o galaico-português teve um uso praticamente oficial no território da atual Galiza, como o tinha em Portugal.” 

O galego foi proibido entre 1500 e 1978, não podendo ser utilizado para nada, complementa Camilo Nogueira, engenheiro industrial, licenciado em ciências econômicas, parlamentar três vezes (1981-93 e 1997-99) no Parlamento Galego e um mandato no Parlamento Europeu (1999-2004). “Mas no mundo popular se manteve vivo.” 

Conquistas 

O movimento cultural popular (a língua na poesia, na música etc.), que foi renascendo no século XIX, foi reforçado pelo movimento político em prol da soberania da Galiza, que começou em 1916-18, assinala o presidente da AGAL Miguel Penas. 

Com o fim da ditadura Franco e a restauração da democracia, o galego voltou a ser permitido, lembra Camilo. A constituição espanhola de 1978 define a Galiza, a Catalunha e os Países Bascos como “nacionalidades históricas” porque as três regiões já tinham estatuto de autonomia na etapa republicana (1931-39), complementa Miguel. Na Galiza, cerca de 20 a 25% da população tem um sentimento nacional galego. 

Segundo Miguel, o movimento político nunca chegou a ser majoritário, mas gerou ideias que triunfaram, no campo simbólico, como a criação do Dia Nacional da Galiza (celebrado desde 1919 e oficializado por decreto em 1979); o reconhecimento oficial da língua (que era uma petição dos nacionalistas) e a inclusão da bandeira (que existe há mais de 100 anos) no estatuto da Galiza (espécie de constituição de Estado autônomo) em 1981. 

Camilo Nogueira, que pertenceu ao primeiro Parlamento da Galiza pós-ditadura franquista, foi o autor da proposta de lei em 1981 (aprovada em 1983) que tornou oficial a língua galega. Também é de sua autoria a lei que restaurou a tradição política de adotar o hino e a bandeira galegos. No Parlamento Europeu, Camilo fez seus pronunciamentos em galego. Os textos também eram escritos em galego, “reconhecido como português”. 

Na Galiza, falam-se duas línguas, o galego e o castelhano, observam José Ramom e Valentim. A língua própria – originalmente na atual Galiza e no norte de Portugal – é falada neste momento diariamente por quase 60% da população, sobretudo pelas pessoas que passam dos cinquenta anos. “É uma língua criada por volta do século XII, coincidindo com o esplendor do reino da Galiza. Foi a forma que deram os seus habitantes ao latim.” 

Os mais jovens aprendem na escola que, além da Galiza, a língua era falada no ocidente das Astúrias, O Berzo e Seabra. Também aprendem que é ainda falada pelos mais idosos em algumas zonas da Estremadura, como mostra o documentário “Entre Línguas” de 2009*. Porém, “da visualização deste filme tiramos em claro que o português em contato com o castelhano, sendo este a língua hegemônica, resulta no galego. Por outras palavras, o galego é o português castelhanizado”. 

A segunda – prosseguem os autores - é a língua própria de Castela, falada pela maioria da população na Espanha e que na Galiza é utilizada principalmente pelas pessoas abaixo dos quarenta anos, especialmente nas cidades. “O castelhano foi também uma língua nascida na Idade Média cujo esplendor coincidiu com a hegemonia do Império dos Áustrias e a conquista da América.”  

Reforma ortográfica 

Valentim é partidário de reformas ortográficas que ampliem o acesso à língua. Para ele, o limite de reformar uma ortografia seria aquele em que a reforma fosse boa para as “variedades” (Brasil, Portugal, Angola, Galiza etc.), ou seja, países e regiões. 

“Devemos recuperar a ortografia do galego-português”, complementa Camilo. “Na Galiza, falamos as duas línguas e compreendemos o brasileiro. Oficialmente, na Galiza já se reconhece que galego e português são quase a mesma língua.” 

Mas não é fácil fazer reforma ortográfica porque as pessoas que dominam a língua são resistentes, acreditam que isto significa perda de “valor” e de poder, observa Valentim. “Dominar a língua é ter poder.” 

No caso da Galiza, uma dificuldade adicional é que as decisões políticas estão centralizadas em Madrid. 

Simplificação 

Para que uma língua desenvolva todo o seu potencial, é importante que todos os falantes se reconheçam no resto, ensinam José Ramom e Valentim. “Para isso, é importante que a ortografia seja mais ou menos a mesma. As diferenças podem vir de outras áreas: sotaque, palavras, expressões, frases ou terminologia.”. No caso do português, o acordo ortográfico é um exemplo. 

Valentim apresenta alguns exemplos de simplificação – “só com vontade orientadora” - que abrangem todas as “variedades nacionais da nossa língua”. Assim, consequente passaria a ser consecuente; quando viraria cuando; guerra, gerra; gente, jente; homem, omem; posso, poso; presença, presensa; coisa, coiza. “No caso do ch/x, na Galiza diferenciamos ambos os fonemas e pronunciamos diferentemente cheque e xeque (como de facto ainda se faz em zonas do norte de Portugal e como se fazia na Idade Média em todo Portugal).” 

Algumas reformas beneficiariam Brasil, Portugal, Angola e Galiza. Apesar de considerar que, “pensando no grosso dos falantes de português, simplificar é bom”, Valentim acha que, na Galiza, há outras prioridades “como fazer ver os galegos que a sua língua pode ser escrita com as mesmas convenções que no Brasil e em Portugal. E podes acreditar que é uma tarefa imensa”. 

Autonomia 

Quando este repórter viajou a Santiago de Compostela, em Setembro, Camilo Nogueira acabava de voltar de uma manifestação separatista em Barcelona (Catalunha). Os galegos inspiram-se na Catalunha, no País Basco e na Escócia na sua luta pela independência, revela Camilo. “A Galiza quer separar-se de um império europeu.” 

Miguel Penas vem acompanhando este movimento pela independência da Catalunha, cujo processo de consultas populares foi organizado pela primeira vez há cinco anos (2009) no pequeno concelho de Arenyns de Munt. Em 2011, ele participou do “Barcelona Decideix” – a única consulta popular daquela cidade – como observador internacional (juntamente com o colega Suso Sanmartin) indicado pela comissão organizadora do evento. 

Uma das “sete nações célticas” 

Uma camiseta vendida nas ruas de Santiago de Compostela traz estampados os nomes das “sete nações celtas”, entre elas a Galiza (Gallaecia, em Latim), berço da língua portuguesa. As outras são: Irlanda, Ilha de Man, País de Gales, Bretanha, Cornualha e Escócia. Estas “sete nações” seriam herdeiras diretas dos antigos povos celtas. Mas há um detalhe: a Galiza é um Estado da Espanha, que sonha em um dia se tornar independente. 

Os galaicos (callaeci ou gallaeci, em latim) seriam tribos celtas que habitavam o noroeste da península ibérica.**** O Reino da Galiza (que incluía a atual Galiza e o norte de Portugal) surgiu quando os germânicos-suevos chegaram à região, que era parte do Império Romano. Era então formado por três províncias: Bracarense, com capital em Braga; Lucense, capital Lugo; e Asturicense, capital Astorga. “É a única entidade institucional que mantém o mesmo nome há 2000 anos”, observa Camilo Nogueira. 

A Galiza – cujo nome Galícia é uma imposição do castelhano – nunca foi muçulmana, enfatiza Camilo, embora tenha convivido 400 anos com o mundo muçulmano. E, com a construção da Catedral de Santiago de Compostela (entre 1075 e 1128), época das cruzadas e da reconquista cristã, se tornou um centro cultural-cristão de todo o mundo. Isto explica o surgimento de centenas de caminhos de várias partes do mundo, convergindo para Santiago. 

*O galego é uma oportunidade. AGAL – Associaçom Galega da Língua, Através Editora, 1ª edição, Julho de 2012. 

** O Galego-Português-Brasileiro e a Política Linguística na Galiza. Disponível em: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/08/260929.shtml 

***”Entre Línguas”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=vBiRIKt3g6g). 

****Mais informações em http://centroculturalcelta.wordpress.com/celtas/tribos-celtas/ 

 

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