Os Quatro Cantos


Cidades

Alair Coêlho de Resende/André Eustáquio*0

Foto antiga dos Quatro Cantos, onde hoje é a Avenida Monsenhor Nelson. Detalhe para o automóvel da época, o senado, o Grêmio e a bomba de gasolina, à esquerda da foto.

Um lugar de Resende Costa onde memória, saudade e sentimentos se encontram

 

Os “Quatro Cantos” de Resende Costa, atual cruzamento das avenidas Monsenhor Nélson, Prefeito Ocacyr Alves de Andrade e Rua Assis Resende, não são apenas um ponto na planta da cidade que indica um mero acidente urbano. Este ponto tem alma, tem sentimento e sua energia acumulada pela paixão popular que a impregnou, anos a fio, por gerações de apaixonados resende-costenses, nunca perecerá. Este é um ponto energético que perenemente encantará e dará prazer a todos os filhos desta cidade.

No alvorecer de Resende Costa, quando começavam a surgir pobres casebres ao longo do trecho da estrada real, nascia também a rua do Meio, os Quatro Cantos, com suas casinhas de pau a pique. Na modorra de um tempo, que não passava nunca, começavam a surgir, nos Quatro Cantos, que ainda não tinham recebido este pitoresco nome, as primeiras construções mais sólidas e modernas. Passados muitos anos, esta via pública tomou feições de verdadeira rua. Surgiram belos casarões, inclusive o em que morou o Escrivão do Registro Civil e outras Serventias Públicas, senhor Agenor Gomes, e que ali está até hoje, como testemunha da evolução da vila.              

Em frente à casa do senhor Agenor, um abastado fazendeiro, senhor Agripino Silva, construiu um belo e luxuoso sobrado, que ainda existe com a mesma exuberância. No mesmo quarteirão, tempos depois, os homens cultos de Resende Costa fundaram o famoso Grêmio Literário de Resende Costa e construíram, em terreno doado pelo Cel. João Evangelista de Souza Maia, líder político e mecenas, moderno e belo prédio para sediar a entidade cultural. Nesta casa muitas tertúlias e saraus foram realizados e a cultura resende-costense atingiu um pico nunca dantes sonhado. A fina flor de nossa sociedade dedicava o melhor de sua inventividade ao aprimoramento cultural de nossa gente. Sabe-se que algumas obras de relevante valor foram produzidas sob o pálio do Grêmio e que, depois, mercê, sobretudo, de alguns gremistas terem contraído o mal do século, a temida tuberculose, toda a obra foi incinerada e lá se foi boa parte de nossa cultura. Este prédio, um dos mais belos de Resende Costa, ainda hoje é conhecido como o Grêmio, embora a maioria de nossa população nem saiba a razão.

Do lado esquerdo da casa do senhor Agenor Gomes, onde hoje é a casa número 22, Prudêncio Gomes, hábil sapateiro e homem empreendedor, instalou uma bem montada fábrica de calçados. Prudêncio era o maior empregador de Resende Costa, uma vez que tinha um grande contingente de bons sapateiros. Sua sapataria exportava calçados de qualidade para toda a região

Ao lado deste estabelecimento foi construída uma casa, de um só pavimento, e na frente dela, instalada uma farmácia de um tal senhor Malta. Esta casa foi depois residência do senhor José Maria Chaves, o Juca Chaves, ou Juca do Ozório, que nos deixou uma excelente obra sobre a história de Resende Costa, publicada em 2014 pela Coleção Lageana/Amirco.

Finalmente, após a casa do Juca do Ozório, já na esquina com a rua Assis Resende, erguia-se o sobrado do senhor Ozório, onde estava instalada sua casa comercial, chamada “Ao Nacional” – que vendia de tudo, até material para funerais. À direita, na entrada desta loja, várias placas indicavam que ali funcionavam escritórios correspondentes dos Bancos Hipotecário e Agrícola de Minas Gerais, Crédito Real e Minas Gerais.

Em frente ao “Ao Nacional” havia uma Bomba de Gasolina, operada manualmente, já que nem tínhamos energia elétrica para tanto. Quando algum motorista, desprecavido, chegava a Resende Costa e precisava abastecer seu veículo, acionava a buzina, e o Chiquito Vale vinha fazer o abastecimento. Junto a esta bomba funcionava um ponto de aluguel de bicicletas, de propriedade do futuro professor Geraldo Sebastião Chaves. As bicicletas eram alugadas aos usuários, por hora, ou fração. Vale ressaltar que nunca ninguém furtou uma bicicleta, embora elas ficassem expostas sem nenhuma vigilância. Os usuários sempre as devolviam e pagavam o valor da locação o que, certamente, não ocorreria hoje.

 

O senado

Do outro lado da rua, em frente à loja Ao Nacional, o Cel. João Evangelista de Souza Maia construíra um belo sobrado, onde residia e de onde comandava todos os seus fiéis correligionários. Neste sobrado, no canto direito do segundo pavimento, havia uma imensa sala, onde se reunia a elite da sociedade da vila. Ali, com o Cel. João de Sousa Maia sentado aos fundos, discutia-se de tudo, sobretudo política.

Neste sobrado, ao qual o povo logo deu o nome de Senadinho, até homens públicos de outras cidades vinham para solicitar conselhos, sempre sábios, do Cel. João de Souza Maia. O Senadinho marcou época em Resende Costa.

 

Música, footing e flertes

Nos Quatro Cantos ficou estabelecido, pela ordem natural da vida social dominante, que do lado da loja Ao Nacional circulariam os habitantes que, supostamente, fossem descendentes de europeus e, do outro lado, o lado do Grêmio, os afro-brasileiros, assim entendidos nossos contingentes de rapazes e moças. Havia uma linha imaginária que separava os grupos, mas isto não significava que havia discriminação, já que os dois grupos se entendiam às mil maravilhas e todos eram amigos e até muitos casamentos inter-raciais aconteceram com frequência entre nossa gente.

As tardes nos Quatro Cantos eram uma celebração da vida. Meninas pulavam corda, saltavam maré, jogavam diabolô (ou jabolô, em linguagem popular), jogavam peteca, brincavam de pique, enquanto os meninos, na outra ponta da rua, rodavam piorras, piões, giravam berra-bois, jogavam bolinhas de gude, jogavam futebol ou apostavam corridas de carrinhos de quatro rodas. E as famílias, atentas, a tudo acompanhavam assentadas em frente às casas, ou em pé nos passeios. Tudo cessava quando os sinos da matriz tocavam as Ave Marias e as luzes dos postes se acendiam. Todos se recolhiam, e o faziam felizes.

Resende Costa tinha duas Bandas de Música, uma conhecida como Banda do Sô Quinzinho (maestro Joaquim Pinto Lara) e a outra do Cristóvão Gonçalves Pinto. Esta última banda foi extinta quando seu maestro se mudou para Carandaí e, aí, as duas se fundiram na Banda Santa Cecília.

Aos domingos, as Bandas (ora uma, ora outra) promoviam retretas em vários pontos da vila, sempre muito frequentes na Laje de Cima, o que fazia um espetáculo sem igual, de puro encantamento. As duas corporações musicais também faziam retretas nos Quatro Cantos, sempre entre a casa do senhor Jesus de Melo e a casa do Juca do Ozório. Os moradores colocavam cadeiras e bancos corrediços no passeio, os músicos tomavam assento diante das estantes, onde se postavam as pautas musicais, e a banda se punha a tocar. Enquanto as crianças, inocentemente, brincavam, os adultos desfrutavam das belas e encantadoras tardes musicais. Assim eram os Quatro Cantos: verdadeiramente um conto de fadas.

 

O preço do progresso

 

Mas o progresso tem seu preço e cobra alto. Os Quatro Cantos, com tanta poesia, já era também o ponto de partida e chegada da “jardineira” que nos unia “ao resto do mundo”, via São João del-Rei. A via recebeu o necessário calçamento de paralelepípedos. Fato marcante é que os calceteiros, sem intenção, mas apenas por razões estéticas, ao fazerem o calçamento, implantaram uma linha de paralelepípedos, longitudinalmente, como uma fita, em toda a extensão, separando as duas faixas de piso convencionais, mantendo a velha tradição separadora, não discriminatória, entre os moradores das duas comunidades raciais, amigas e de boa convivência.

De par com alegrias, a tristeza às vezes nos visitava. Foi o caso, por exemplo, da entrada do Brasil na II Grande Guerra. Em 22 de agosto de1942, o Brasil formalizou sua Declaração de Guerra à Alemanha e Itália. Um frêmito coletivo de ira e patriotismo correu por toda nossa população e, à noite, na famosa esquina do Sô Miguel Turco, a população se reuniu e então se ouviu em sepulcral silêncio a vibrante oração do senhor Prefeito Municipal, doutor José Vilela da Costa Pinto. Seguindo-o falaram o padre Oscar, que substituíra o padre Heitor de Assis, que fora convocado para o Serviço Militar (já que era sargento da reserva do Exército Brasileiro, e servia em Fenando de Noronha, como Capitão Capelão). A seguir, falaram outros cidadãos indignados, como o senhor Miguel Alderico Roman e outros membros de nossa sociedade. Nesta noite a cidade estava triste e tristes estavam os Quatro Cantos.

Correu o tempo e em 2 de maio de 1945, à noite, o Repórter Esso, da Rádio Nacional, que se identificava por conhecidíssima característica musical e se intitulava “Testemunha Ocular da História”, com invulgar vigor e fundo musical beligerante anuncia: “A Alemanha depõe armas na Itália. É finda a Guerra”. Toda a população foi para os Quatro Cantos e ali, ao som de sinos, espocar de foguetes, marchas marciais executadas pela Banda de Música Santa Cecília, habilmente regida pelo maestro, o nosso inesquecível Sô Quinzinho, com o povo aos gritos de VIVAS, celebrava-se a vitória de nossos expedicionários. Alguns reservistas presentes formaram um pelotão e este “grupamento militar” se pôs a fazer evoluções em ordem unida. Ninguém dormiu nesta noite e o povo viu o sol raiar. Foi épico!

Em 1948, no andar térreo do Grêmio, no Bar do Dico, de maneira não planejada, houve em Resende Costa a primeira transmissão radiofônica e o locutor, Tércio Rosas, anunciou a emissão dizendo: “Aqui Rádio Resende Costa falando para Resende Costa, Minas Gerais, o Brasil e o Mundo!” Era uma locução pretensiosa, mas como os radiouvintes gostaram!

Onde havia gente e crianças brincando, hoje vemos apenas automóveis, trânsito confuso, imóveis comerciais e residenciais. Não há mais espaço para a convivência lúdica entre as pessoas. O progresso frio e desenfreado transformou o bucólico Quatro Cantos de Resende Costa numa via pública comum e sem alma.

 

 

*Membros da Academia de Letras de São João del-Rei, MG.

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