Reino desunido vai continuar com um pé dentro e outro fora?


Economia

José Venâncio de Resende, de Lisboa0

Um Reino desunido, fraturado, perplexo e sem liderança – movido por uma campanha de medo e desinformação – pouco mais de uma semana depois de os britânicos votarem pela independência ou saída da União Europeia (UE) – o chamado “brexit” (fusão dos termos “britain” e “exit”). O resultado apertado do plebiscito (52% contra 48%) esconde uma realidade. Quem votou pela saída foi o eleitor mais velho, mais pobre e da classe trabalhadora menos qualificada, assinala o professor Antônio Costa Pinto, investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) / Universidade de Lisboa.

No mapa global, a Inglaterra optou por deixar a UE; Escócia (62%) e Irlanda do Norte (56%) preferiram ficar. Já no mapa regional, zonas urbanas como a grande Londres votaram pela permanência; zonas desindustrializadas do norte da Inglaterra – que perderam indústrias tradicionais – e zonas mais rurais, pela saída. “Curioso é que muitas zonas anti-imigração tem pouquíssima imigração”, observa o professor Costa Pinto. Votaram, na crença de que vão ter mais segurança social, mais liberdade...

A campanha pela saída centrou nas questões de imigração e soberania nacional, tendo sido acusada inclusive de ter explorado a ignorância e a desigualdade. Os seus líderes – para não dizer os próprios britânicos - ficaram perplexos com o resultado, diz o investigador em Assuntos Europeus João Pedro Dias, em artigo (“E agora, UK”, 29 de junho) para o jornal Econômico. Soma-se a isso o total despreparo dos vencedores sobre o que fazer com o resultado, acrescenta.

O primeiro ministro demissionário David Cameron apontou o dedo para os líderes europeus, acusando-os de omissão frente à exploração da insegurança e do medo que tomou conta da campanha pelo brexit. "O medo da imigração em massa foi determinante." Porém, como disse o ex-presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, Cameron não tinha credibilidade para liderar a campanha pelo “remain” (permanência) porque vivia criticando a UE.

A tradicional revista The Economist, em sua nova edição (2 a 8 de ulho), diz que o Reino Unido parece “descontroladamente fora dos trilhos”. O primeiro ministro parece que entregou os pontos, o líder da oposição luta para sobreviver a um golpe. A libra esterlina atingiu o nível mais baixo de 31 anos em relação dólar e os bancos perderam um terço do seu valor antes de estabilizarem. E há ainda o discurso na Escócia e na Irlanda do Norte de separação.

Pode acrescentar-se ao que disse a revista a existência de sinais de crescente animosidade (preconceito, discriminação, intolerância etc.) e até mesmo manifestações de ódio racista contra estrangeiros. Dias antes do plebiscito, a jovem deputada trabalhista Jo Cox, defensora do sim à UE, foi assassinada por um fanático nacionalista. Vídeos já começam a circular nas redes sociais com cenas de agressões verbais a imigrantes. Em entrevista por telefone à TV SIC, um imigrante português, taxista autônomo no norte da Inglaterra, atribuiu aos dois lados da campanha a culpa pela radicalização e revelou estar preocupado com o futuro, em especial ao aumento das manifestações de preoconceito.

The Economist é taxativa ao dizer que todas estas calamidades foram previstas e que o país parece paralisado. Por isso, defende que “O país precisa de um novo líder, uma coerente abordagem para negociar com a UE e uma solução justa para com aquelas nações na sua própria união (Escócia e Irlanda do Norte) que votaram pela permanência”.

O Reino Unido não pode ficar “com um pé dentro e outro fora” (da UE), advertiu a chanceler alemã Angela Merkel, o que significa dizer que os britânicos não podem ficar só com os benefícios sem as obrigações do mercado único. À saída das reuniões do Conselho e da Comissão europeus dia 29, os principais líderes europeus pediram pressa ao Reino Unido para dar início ao processo de saída. Mas garantiram que não haverá exceção (caso da Escócia, por exemplo, que quer continuar na UE) nem concessões em relação às exigências para participar do mercado único (respeitar a liberdade de circulação de mercadorias, de serviços, de capitais e de pessoas).

O Reino Unido não está na zona Schengen (tratado de livre circulação de pessoas em 26 países europeus sem passar por controle de passaporte) e na zona do euro. Mas faz parte do mercado único e da política de defesa (Nato-Organização do Tratado do Atlântico Norte). Costa Pinto observa que é nos serviços financeiros que os britânicos poderão sofrer a maior baixa, pois 70% do mercado de euros passa pela City de Londres. “Se mudar para Frankfurt, será uma perda brutal para o Reino Unido.”

Futuro sombrio

O conceituado articulista do Financial Times, Martin Wolf, é pessimista quanto ao futuro da economia britânica pós-brexit. “Esta loucura autoinfligida vai prejudicar milhões de pessoas inocentes. É provável que o arrependimento se instale em breve. Os eleitores poderão chegar à conclusão de que os líderes da campanha pela saída foram tolos e mentirosos.”  Tudo indica que o arrependimento já começou. O ex-prefeito de Londres e principal líder da campanha pela saída, Boris Johnson, surpreendeu todo mundo ao anunciar a desistência de concorrer ao cargo de primeiro ministro em substituição ao demissionário David Cameron.

Wolf lembra que o Reino Unido é uma democracia parlamentar, não plebiscitária. Ou seja, o primeiro ministro só poderá invocar o artigo 50 do Tratado de Lisboa e iniciar as discussões dos termos de saída, com autorização do Parlamento. “Segundo a lei, um referendo é apenas consultivo. Somente o Parlamento pode fazer isso, porque só ele pode legislar.” Por isso, “a melhor coisa é não fazer nada. O Reino Unido deve perceber o que quer. A UE deve ponderar se a livre circulação (de pessoas) é inviolável”. The Economist concorda que o melhor a fazer é prolongar o mais possível a decisão de invocar o artigo 50 do Tratado de Lisboa, uma vez que os líderes europeus não estão com humor favorável para negociar com seus vizinhos.

De qualquer forma, a chanceler alemã Angela Merkel já deixou claro que não haverá negociações antes de o Reino Unido enviar a notificação da saída. Mas os líderes europeus querem resolver rapidamente os problemas que desencadearam o referendo britânico, de acordo com a correspondente da Euronews, Isabel Marques da Silva. “Depois de perderem a segunda maior economia da União, os restantes 27 Estados-membros estão agora focados em lutar contra o euroceticismo, especialmente em temas como a migração e os refugiados, segurança e emprego.”

Entre os desdobramentos do brexit nos países europeus, há o temor do recrudescimento da xenofobia (ódio e intolerância). As forças de extrema-direita e de extrema-esquerda, com o seu discurso antieuropeu e antiglobalização - como nos casos de Finlândia, Suécia, Holanda, Grécia e França -, poderão ganhar terreno e mais adeptos, aumentando assim o clima de incerteza sobre o próprio projeto de integração europeia.

Outro desdobramento é a questão dos movimentos separatistas. Dependendo dos rumos do brexit, a Escócia, que chegou a apelar dramaticamente para não ser abandonada pela UE, deverá retomar a campanha do referendo para votar a saída do Reino Unido. Também os líderes políticos da Irlanda do Norte já se manifestaram favoráveis a um referendo pela reunificação com a Irlanda.

Um terceiro desdobramento tem a ver com os acordos bilaterais de livre comércio. O Mercosul, por exemplo, negocia com a UE um acordo de livre comércio, que se arrasta há vários anos. Como ficará esse processo a partir de agora? “Os acordos com países terceiros serão talvez adiados”, diz Costa Pinto, “mas ao mesmo tempo estas crises podem provocar saltos em frente... ou seja, a uma Europa a ´várias velocidades´.” O próprio Reino Unido deve buscar ampliar e diversificar acordos comerciais, nos vários continentes.

Modelo norueguês

Além disso, estimam-se que o Reino Unido, ironicamente, vai perder investimentos (indústrias automobilística e de aviões, bancos etc.) e com isso vai destruir empregos. Por sua vez, a UE também poderá perder muito do vigor, valores e ideias dos britânicos. Como diz The Economist, projetos de ambiciosa expansão para o leste, a estável construção de de um mercado único integrado e o foco no comércio internacional, que melhoraram a vida de milhões de pessoas, foram feitos no Reino Unido.

O professor do ICS acredita que as discussões do Reino Unido com a UE serão difíceis, porque devem envolver tratados e acordos comerciais de todos os tipos, nos quais cada Estado-membro terá uma palavra a dizer. As negociações podem durar cerca de dois anos e, no final, o acordo terá de ser ratificado pelo Parlamento e Conselho europeus.

Costa Pinto acha provável que, no final, esta relação dúbia continue e os britânicos mantenham um pé dentro e outro fora da UE. “Os políticos ingleses vão tentar o modelo do Espaço Econômico Europeu (EEE) adotado pela Noruega, onde ficariam com as vantagens. O Reino Unido sempre teve uma atitude muito singular, pedindo exceções, não aderindo ao euro... Muitos federalistas podem concluir que o De Gaulle (presidente francês) tinha razão quando vetou a Grã-Bretanha na década de 1960. Tudo vai depender do impacto econômico imediato. Se for grande, a UE vai tentar acelerar a saída do Reino Unido. Se não, a tendência será esperar.”

Também The Economist acha provável que, para não ficar isolados, a maioria dos britânicos prefira o EEE, que permite ser parte do mercado único, sem ter de aceitar as políticas comuns, mas torna os vistos obrigatórios entre outras limitações. Porém a revista adverte que, qualquer acordo com Bruxelas, será muito além da ilusão vendida pelos defensores do brexit  durante a campanha (todos os benefícios da UE sem as suas obrigações) e certamente terá de ser submetido aos britânicos outra vez, através de eleições diretas, outro referendo ou ambos.

A questão que fica para os eleitores britânicos é: entre aceitar o modelo norueguês, que ocasiona muito dos custos de pertencer ao mercado único sem ter a palavra nas votações, não seria melhor continuar na UE? Enquanto não se tem a resposta, mais de quatro milhões de pessoas já assinaram uma petição em favor de outro referendo e milhares de pessoas participam de manifestações nas ruas de Londres contra o resultado do brexit.

Link: http://www.tvi24.iol.pt/videos/internacional/brexit-marcha-contra-a-saida-da-ue-junta-milhares-em-londres/5777e1f50cf22f3ce42f2a71

 

 

 

    

 

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