O dia de São Nunca
14 de Novembro de 2009, por Rafael Chaves 0
Oh! mês de agosto! Mês de os ventos visitarem os campos das vertentes. Aqui deixam os altos das lajes e dos quatro cantos e visitam também os vales, planícies e grotões da terra. Agosto dos ventos que vêm assobiar em nossos ouvidos que é tempo de soltar a imaginação, de voar junto aos papagaios, pipas, arraias, cafifas e pandorgas que infestam os céus! Papagaios que não falam nem dão o pé. Pipas que não carregam água. Arraias que não nadam. Cafifas que não dão azar. Pandorgas esqueléticas. Já que não temos asas nem conseguimos controlar o voo dos pássaros (e o objeto do homem é querer controlar tudo), voam as pipas e papagaios, em nosso nome, como se olhos tivessem, para nos contar o que se vê do céu.
Fael, garoto esperto, mas ainda experimentando a inocência dos seus 6 anos, deixou na lembrança as bolinhas de gude. Ele havia guardado todas elas no seu armário, escondidas sob as roupas, bem no fundo, descansando até a próxima temporada. Afinal, bolinhas de gude, em tempos de vento, não valiam mais nada. Valeram mais que pérola! Foram motivos de brigas, desavenças e inimizades (que poderiam perdurar por toda vida). Mas em agosto ninguém mais se interessava por elas.
A época era de pipa! Era o tempo de colher bambu no mato, de afiar e lixar as varetas do bambu, até deixá-las, meticulosamente, do mesmo tamanho e com o mesmo peso. E Fael não se fez de rogado. Resgatou do cofrinho algumas moedas, fruto da venda de algumas bolinhas de gude - ainda do tempo em que elas valiam - e partiu em busca do seu intento. Comprou papeis de seda coloridos - das cores do seu time do coração -, e carretel de linha 10, fez grude no fogareiro - que improvisou no quintal -, juntou as varetas e passou a construir seu engenho aeronáutico. Situou as varetas em forma de cruz de Lorena e amarrou as varetas menores à vareta central, passou a linha pelas extremidades das varetas mantendo-as em esquadro perfeito. Recortou o papel na medida, deixando a borda em volta para a cola. Depois da cola seca envergou a vareta superior, aerodinamicamente. Dispôs a linha do tem-tem na medida certa e, finalmente, esticou a linha para fazer a rabiola.
Dia seguinte Fael saiu à rua em contentamento segurando sua obra-pipa. Naquela tarde uns dez guris já tinham posto suas pipas ao vento. Fael desenrolou uns metros de linha da lata de óleo que lhe servia de “tomador de linha” e correu contra o vento até sua pipa alçar voo. E alçou. Entretanto seu contentamento durou pouco; durou até o momento em que viu um sujeito liberando e recolhendo a linha pelo “tomador de linha”. E ele ali, com aquela sua geringonça acessória ineficiente: uma lata de óleo servindo de “tomador de linha”. Fael, apesar da beleza e da funcionalidade de sua pipa, sentiu-se diminuído e desajustado. E “tomador de linha” não tinha como ele construir. Remoeu seus pensamentos e suas angústias até se lembrar de Leo. Leo ia dar um jeito nisso para ele.
Leo era um seu vizinho, uns 10 anos mais velho que Fael e, portanto, já era um doutor em pipas e tudo que se relacionava com elas. No quintal da casa de Leo havia uma coberta com todo tipo de tralha, inclusive uma coleção exuberante de pipas de todos os modelos e para todos os gostos e, lembrou-se, também, de “tomadores de linha”. Leo era equipado, um batman das pipas.
Então recolheu sua pipa enrolando a linha na lata e foi ter com Leo. Quando chegou à casa de Leo, por uma dessas coincidências, Leo estava exatamente preparando seus equipamentos para soltar uma de suas pipas. Fael ficou ali, parado, olho fixo no “tomador de linhas”, maravilhado. Depois do assusto inicial, coisa de peixe fora d’água, estabeleceu-se um palavrório até que Leo pressentiu na sua sapiência de menino mais velho que Fael estava ali por algum motivo.
- Vou te dar um tomador de presente! - disse Leo, adivinhando os desejos de Fael.
Os olhos de Fael não tinham mais de onde tirar brilho da luz do dia, mas tremeluziu a luz de dentro da sua alma cristalina de inocência.
- Vai? Quando? - perguntou Fael.
- Um dia desses eu te dou - completou Leo, nas suas lábias.
- Mas quando?
- Ó, dia de São Nunca, eu te dou.
Fael ficou meio confuso do seu calendário, pois apartava seu tempo em manhãs, tardes e noites, em estações de chuva ou de sol, em temperaturas de frio ou de calor, em épocas de jogar bolinha de gude ou de soltar pipa, em períodos de aula ou de férias, em horas de comer ou de beber. Fael ainda não aprendera a dividir seu calendário em tempos sagrados e tempos profanos.
- Quando é dia de São Nunca? - arriscou Fael, enquanto todos que ali estavam entoavam um riso motejador e malicioso.
- Ó, marca aí, marca aí dia 30 de fevereiro - emendou Leo dando o assunto por encerrado, enquanto saia sem mais explicações com seus petrechos para soltar pipa, que o vento ventava incitativo naquele agosto.
Para o Leonardo da Dona Ló que agora, muitos anos depois, fabrica aguardente para outros voos e outros “tomadores”.
Fael, garoto esperto, mas ainda experimentando a inocência dos seus 6 anos, deixou na lembrança as bolinhas de gude. Ele havia guardado todas elas no seu armário, escondidas sob as roupas, bem no fundo, descansando até a próxima temporada. Afinal, bolinhas de gude, em tempos de vento, não valiam mais nada. Valeram mais que pérola! Foram motivos de brigas, desavenças e inimizades (que poderiam perdurar por toda vida). Mas em agosto ninguém mais se interessava por elas.
A época era de pipa! Era o tempo de colher bambu no mato, de afiar e lixar as varetas do bambu, até deixá-las, meticulosamente, do mesmo tamanho e com o mesmo peso. E Fael não se fez de rogado. Resgatou do cofrinho algumas moedas, fruto da venda de algumas bolinhas de gude - ainda do tempo em que elas valiam - e partiu em busca do seu intento. Comprou papeis de seda coloridos - das cores do seu time do coração -, e carretel de linha 10, fez grude no fogareiro - que improvisou no quintal -, juntou as varetas e passou a construir seu engenho aeronáutico. Situou as varetas em forma de cruz de Lorena e amarrou as varetas menores à vareta central, passou a linha pelas extremidades das varetas mantendo-as em esquadro perfeito. Recortou o papel na medida, deixando a borda em volta para a cola. Depois da cola seca envergou a vareta superior, aerodinamicamente. Dispôs a linha do tem-tem na medida certa e, finalmente, esticou a linha para fazer a rabiola.
Dia seguinte Fael saiu à rua em contentamento segurando sua obra-pipa. Naquela tarde uns dez guris já tinham posto suas pipas ao vento. Fael desenrolou uns metros de linha da lata de óleo que lhe servia de “tomador de linha” e correu contra o vento até sua pipa alçar voo. E alçou. Entretanto seu contentamento durou pouco; durou até o momento em que viu um sujeito liberando e recolhendo a linha pelo “tomador de linha”. E ele ali, com aquela sua geringonça acessória ineficiente: uma lata de óleo servindo de “tomador de linha”. Fael, apesar da beleza e da funcionalidade de sua pipa, sentiu-se diminuído e desajustado. E “tomador de linha” não tinha como ele construir. Remoeu seus pensamentos e suas angústias até se lembrar de Leo. Leo ia dar um jeito nisso para ele.
Leo era um seu vizinho, uns 10 anos mais velho que Fael e, portanto, já era um doutor em pipas e tudo que se relacionava com elas. No quintal da casa de Leo havia uma coberta com todo tipo de tralha, inclusive uma coleção exuberante de pipas de todos os modelos e para todos os gostos e, lembrou-se, também, de “tomadores de linha”. Leo era equipado, um batman das pipas.
Então recolheu sua pipa enrolando a linha na lata e foi ter com Leo. Quando chegou à casa de Leo, por uma dessas coincidências, Leo estava exatamente preparando seus equipamentos para soltar uma de suas pipas. Fael ficou ali, parado, olho fixo no “tomador de linhas”, maravilhado. Depois do assusto inicial, coisa de peixe fora d’água, estabeleceu-se um palavrório até que Leo pressentiu na sua sapiência de menino mais velho que Fael estava ali por algum motivo.
- Vou te dar um tomador de presente! - disse Leo, adivinhando os desejos de Fael.
Os olhos de Fael não tinham mais de onde tirar brilho da luz do dia, mas tremeluziu a luz de dentro da sua alma cristalina de inocência.
- Vai? Quando? - perguntou Fael.
- Um dia desses eu te dou - completou Leo, nas suas lábias.
- Mas quando?
- Ó, dia de São Nunca, eu te dou.
Fael ficou meio confuso do seu calendário, pois apartava seu tempo em manhãs, tardes e noites, em estações de chuva ou de sol, em temperaturas de frio ou de calor, em épocas de jogar bolinha de gude ou de soltar pipa, em períodos de aula ou de férias, em horas de comer ou de beber. Fael ainda não aprendera a dividir seu calendário em tempos sagrados e tempos profanos.
- Quando é dia de São Nunca? - arriscou Fael, enquanto todos que ali estavam entoavam um riso motejador e malicioso.
- Ó, marca aí, marca aí dia 30 de fevereiro - emendou Leo dando o assunto por encerrado, enquanto saia sem mais explicações com seus petrechos para soltar pipa, que o vento ventava incitativo naquele agosto.
Para o Leonardo da Dona Ló que agora, muitos anos depois, fabrica aguardente para outros voos e outros “tomadores”.
The book is on the table
09 de Outubro de 2009, por Rafael Chaves 0
Não dá! Não dá mais! O mundo virou uma bolinha e não há inquisição no mundo que mude isso. Galileu Galilei que o diga “deve estar a essa hora remexendo o que sobrou dele, lá em que túmulo estiver”. Ninguém mais fala que vai viajar para São João del-Rei. Isso lá é viagem?! Que nada, definitivamente isso não é mais uma viagem! Viajar hoje é viagem pra mais de 200 quilômetros e olhe lá se não for mais. Sabe quanto custa uma passagem de avião, ida e volta, de Belo Horizonte para São Paulo? Não? Pois custa R$150,00, o mesmo preço de uma passagem de ônibus. Não tem jeito, só não viaja quem não quiser. E por um pouco mais você visita o nordeste, toma um banho de mar e come camarão VG, quiçá uma lagosta. Mais um pouquinho e você atravessa fronteiras, mares e oceanos. Aí você come bacalhau em Lisboa, toma champagne em Paris, saboreia uma paella na Espanha, desfruta uma massa suculenta na Itália e por aí vai... Além do mais, paga sua passagem e seu hotel em dez vezes sem juros, tempo suficiente para você trabalhar até ter direito às suas próximas férias e, aproveite, viajar de novo.
E sabe o que você vai encontrar aonde for? Vai encontrar alguém falando inglês. Porque a bolinha fala uma língua universal: o inglês. Não adianta querer escapar. Todo mundo fala inglês. Essa história de que a língua mais falada do mundo é o mandarim é coisa que funciona lá na China, é coisa de quantidade, só quantidade, que é o que chinês sabe fazer! E ainda que você viaje para a China, se falar inglês vai se safar.
Diz-se que há quatro coisas boas para se fazer na vida: comer e viajar. E como é que você vai aproveitar tudo que essas maravilhas podem lhe oferecer, em toda sua plenitude, se você não souber falar inglês? Lamente, “tea with me, I book your face!” não tem jeito mais não! Se vira! E você não vai querer se virar somente com hamburguer e cheeseburguer, vai? Lembre-se de que comer é, também, um dos prazeres dessa vida.
Está chegando num ponto em que se você não souber falar inglês não vai conseguir nem vender seu artesanato. Qual atendente de loja em Resende Costa ainda não teve a oportunidade de ouvir um “How much is it?”? Quantos estrangeiros dão uma passadinha em Resende Costa para ver/comprar artesanato? Sabe dar seu preço em dólares americanos? Em Euros? Ih... Pois é, as pessoas estão viajando, o mundo tá girando e, inclusive, de vez em quando, dá um stop em Resende Costa!
A primeira lição de Inglês, pelo menos há algum tempo nas escolas era assim: “It is a book”, fala o professor, mostrando um livro. Ato contínuo põe o livro sobre a mesa e diz “the book is on the table”. Ainda é assim? Talvez coubesse ao professor hoje em dia apontar uma representação do globo terrestre e dizer “It is the world”, depois pegar esse mesmo globo com as mãos e dizer “the world is in our hand”. Sim, o mundo está em nossas mãos, de acordo com nossas possibilidades, é obvio.
Mas não vale colocar a culpa na possibilidade. Se de todo não der para ir aonde você quer pessoalmente, por qualquer que seja o motivo, você ainda tem a internet. Digite lá aonde você desejaria ir e ela lhe mostrará, com certeza, imagens e sensações. Não é a mesma coisa, mas não deixa de ser uma viagem.
Concorda? Não! Então deleta. Mas “the book isn’t on the table anymore. There is a world and people waiting for you and you decide what you will do.”
E sabe o que você vai encontrar aonde for? Vai encontrar alguém falando inglês. Porque a bolinha fala uma língua universal: o inglês. Não adianta querer escapar. Todo mundo fala inglês. Essa história de que a língua mais falada do mundo é o mandarim é coisa que funciona lá na China, é coisa de quantidade, só quantidade, que é o que chinês sabe fazer! E ainda que você viaje para a China, se falar inglês vai se safar.
Diz-se que há quatro coisas boas para se fazer na vida: comer e viajar. E como é que você vai aproveitar tudo que essas maravilhas podem lhe oferecer, em toda sua plenitude, se você não souber falar inglês? Lamente, “tea with me, I book your face!” não tem jeito mais não! Se vira! E você não vai querer se virar somente com hamburguer e cheeseburguer, vai? Lembre-se de que comer é, também, um dos prazeres dessa vida.
Está chegando num ponto em que se você não souber falar inglês não vai conseguir nem vender seu artesanato. Qual atendente de loja em Resende Costa ainda não teve a oportunidade de ouvir um “How much is it?”? Quantos estrangeiros dão uma passadinha em Resende Costa para ver/comprar artesanato? Sabe dar seu preço em dólares americanos? Em Euros? Ih... Pois é, as pessoas estão viajando, o mundo tá girando e, inclusive, de vez em quando, dá um stop em Resende Costa!
A primeira lição de Inglês, pelo menos há algum tempo nas escolas era assim: “It is a book”, fala o professor, mostrando um livro. Ato contínuo põe o livro sobre a mesa e diz “the book is on the table”. Ainda é assim? Talvez coubesse ao professor hoje em dia apontar uma representação do globo terrestre e dizer “It is the world”, depois pegar esse mesmo globo com as mãos e dizer “the world is in our hand”. Sim, o mundo está em nossas mãos, de acordo com nossas possibilidades, é obvio.
Mas não vale colocar a culpa na possibilidade. Se de todo não der para ir aonde você quer pessoalmente, por qualquer que seja o motivo, você ainda tem a internet. Digite lá aonde você desejaria ir e ela lhe mostrará, com certeza, imagens e sensações. Não é a mesma coisa, mas não deixa de ser uma viagem.
Concorda? Não! Então deleta. Mas “the book isn’t on the table anymore. There is a world and people waiting for you and you decide what you will do.”
Ulmo
16 de Agosto de 2009, por Rafael Chaves 0
A minha relação com cavalos foi meio às avessas, meio anormal, invertida. Assim que cheguei, vindo de Belo Horizonte, para morar em Resende Costa, comprei uma sela porque sabia que teria um cavalo. Depois comprei um potro porque sabia que teria um sitiozinho. Somente algum tempo depois comprei minha terrinha.
Penso que essa minha “cachaça” veio dos tempos de minha infância, quando um padrinho meu me prometeu de presente levar a um lugar onde havia inúmeros cavalos selvagens e disse que eu poderia pegar qualquer um deles, desde que conseguisse laçar algum. Era só escolher! Então eu me vi e me senti, cá em Minas Gerais, como um caubói daqueles filmes e seriados de faroeste americano. Por causa dessa promessa sonhei com isso durante anos. Mentira descarada: nunca me levou a esse lugar! Lembro-me de quando passava férias nas fazendas de tios, parentes e amigos (minha mãe nos mandava - eu e meu irmão - para bem longe dela durante as férias escolares, para seu merecido descanso e nossa alegria), e ficava admirando os cavalos sem poder montar neles. Para nossa desilusão e frustração, os fazendeiros sempre diziam que os cavalos eram bravos!
Já adulto e homem feito, e porque a gente tem que realizar nossos sonhos, comprei o Ulmo do Kikinger, um potro Mangalarga Marchador, lá na criação da fazenda da Esperança do meu amigo João Carlos. Logo em seguida, sentado nas lajes de cima, notei aos pés das pedras um pasto tão verdinho que decidi: “esse é o lugar paraíso em que meu potro vai viver!”. Combinei com o Bacarini do Nhozinho da Filomena o aluguel do pasto e fiz lá um cocho para o trato verde, sal e ração. Mal sabia eu que cavalos não gostam de capim braquiária. E o pasto era pura braquiária. E, para piorar, o Bacarini, sob a alegação de que o potro não estava gostando da ração, engordava seus porcos com a ração que eu comprava para o potro. O potro emagrecia a olhos vistos para alegria dos porcos do Bacarini, e do próprio Bacarini.
Todavia, apesar do Bacarini e graças ao Júlio do Benevides, Ulmo foi salvo. Júlio cuidou dele quase até ele se tornar cavalo, quando eu, finalmente, comprei meu pedacinho de terra. Todo final de semana ia eu lá no sítio do Júlio para ver o potro correr pelo piquete ou dar guia nele.
Quando Ulmo virou cavalo e foi montado correspondeu a tudo que lhe dediquei. Digo, sem falsa modéstia, que foi durante muitos anos, o mais bonito cavalo da Cavalgada Bolívar de Andrade. O danado chamava mesmo a atenção. Sua cor castanha reluzia naquele corpanzil musculoso, sua cabeça alta e majestosa fazia-o parecer mais alto do que realmente era, suas orelhas dirigidas para cima giravam sobre seu eixo prestando atenção em tudo, seus olhos esbugalhados soltavam faíscas.
Ulmo era um cavalo esperto, altivo, majestoso, imponente. Apesar de castrado, tinha o nervosismo de um cavalo inteiro. Do mesmo jeito que saia, chegava no destino, qualquer que fosse a distância da cavalgada: jamais baixava sua cabeça, jamais se entregava. Os campos, vales, montanhas e rios pareciam pequenos para ele, que queria abraçar o mundo com suas quatro patas.
Depois de algum tempo afastado das cavalgadas, retornou triunfante, recebendo elogios por onde passava. Ao Fabinho do Pimpa coube fazer a última apresentação do Ulmo nesta Cavalgada Bolívar de Andrade. Na sexta-feira, logo após a cavalgada, foi encontrado morto, seu corpo estendido no campo, aos vinte anos, não tão jovem, mas também não tão idoso. Talvez quisesse fazer jus à sua história morrendo no auge e reconhecido, talvez não quisesse morrer aposentado e sem função num pasto qualquer: Ulmo nasceu para brilhar, para ser notado.
Quero dizer, em homenagem a ele e mais uma vez deixando a modéstia de lado, que a história do cavalo em Resende Costa pode ser dividida em AU e DU: antes do Ulmo e depois do Ulmo. Creio que ele legou aos cavaleiros e amazonas amantes do cavalo a perspectiva de se sonhar e almejar ter também um bom cavalo de sela e isso mudou definitivamente a tropa de Resende Costa.
Ao ser enterrado mereceu nossas lágrimas! Estará sempre na memória daqueles que o conheceram. Ulmo justifica toda “cachaça” que bebi e ainda vou beber!
Em nome do Ulmo, agradeço ao Júlio do Benevides, ao Fabinho do Pimpa, que dele cuidaram no início e no fim de sua vida, e a todos que participaram de sua história.
Penso que essa minha “cachaça” veio dos tempos de minha infância, quando um padrinho meu me prometeu de presente levar a um lugar onde havia inúmeros cavalos selvagens e disse que eu poderia pegar qualquer um deles, desde que conseguisse laçar algum. Era só escolher! Então eu me vi e me senti, cá em Minas Gerais, como um caubói daqueles filmes e seriados de faroeste americano. Por causa dessa promessa sonhei com isso durante anos. Mentira descarada: nunca me levou a esse lugar! Lembro-me de quando passava férias nas fazendas de tios, parentes e amigos (minha mãe nos mandava - eu e meu irmão - para bem longe dela durante as férias escolares, para seu merecido descanso e nossa alegria), e ficava admirando os cavalos sem poder montar neles. Para nossa desilusão e frustração, os fazendeiros sempre diziam que os cavalos eram bravos!
Já adulto e homem feito, e porque a gente tem que realizar nossos sonhos, comprei o Ulmo do Kikinger, um potro Mangalarga Marchador, lá na criação da fazenda da Esperança do meu amigo João Carlos. Logo em seguida, sentado nas lajes de cima, notei aos pés das pedras um pasto tão verdinho que decidi: “esse é o lugar paraíso em que meu potro vai viver!”. Combinei com o Bacarini do Nhozinho da Filomena o aluguel do pasto e fiz lá um cocho para o trato verde, sal e ração. Mal sabia eu que cavalos não gostam de capim braquiária. E o pasto era pura braquiária. E, para piorar, o Bacarini, sob a alegação de que o potro não estava gostando da ração, engordava seus porcos com a ração que eu comprava para o potro. O potro emagrecia a olhos vistos para alegria dos porcos do Bacarini, e do próprio Bacarini.
Todavia, apesar do Bacarini e graças ao Júlio do Benevides, Ulmo foi salvo. Júlio cuidou dele quase até ele se tornar cavalo, quando eu, finalmente, comprei meu pedacinho de terra. Todo final de semana ia eu lá no sítio do Júlio para ver o potro correr pelo piquete ou dar guia nele.
Quando Ulmo virou cavalo e foi montado correspondeu a tudo que lhe dediquei. Digo, sem falsa modéstia, que foi durante muitos anos, o mais bonito cavalo da Cavalgada Bolívar de Andrade. O danado chamava mesmo a atenção. Sua cor castanha reluzia naquele corpanzil musculoso, sua cabeça alta e majestosa fazia-o parecer mais alto do que realmente era, suas orelhas dirigidas para cima giravam sobre seu eixo prestando atenção em tudo, seus olhos esbugalhados soltavam faíscas.
Ulmo era um cavalo esperto, altivo, majestoso, imponente. Apesar de castrado, tinha o nervosismo de um cavalo inteiro. Do mesmo jeito que saia, chegava no destino, qualquer que fosse a distância da cavalgada: jamais baixava sua cabeça, jamais se entregava. Os campos, vales, montanhas e rios pareciam pequenos para ele, que queria abraçar o mundo com suas quatro patas.
Depois de algum tempo afastado das cavalgadas, retornou triunfante, recebendo elogios por onde passava. Ao Fabinho do Pimpa coube fazer a última apresentação do Ulmo nesta Cavalgada Bolívar de Andrade. Na sexta-feira, logo após a cavalgada, foi encontrado morto, seu corpo estendido no campo, aos vinte anos, não tão jovem, mas também não tão idoso. Talvez quisesse fazer jus à sua história morrendo no auge e reconhecido, talvez não quisesse morrer aposentado e sem função num pasto qualquer: Ulmo nasceu para brilhar, para ser notado.
Quero dizer, em homenagem a ele e mais uma vez deixando a modéstia de lado, que a história do cavalo em Resende Costa pode ser dividida em AU e DU: antes do Ulmo e depois do Ulmo. Creio que ele legou aos cavaleiros e amazonas amantes do cavalo a perspectiva de se sonhar e almejar ter também um bom cavalo de sela e isso mudou definitivamente a tropa de Resende Costa.
Ao ser enterrado mereceu nossas lágrimas! Estará sempre na memória daqueles que o conheceram. Ulmo justifica toda “cachaça” que bebi e ainda vou beber!
Em nome do Ulmo, agradeço ao Júlio do Benevides, ao Fabinho do Pimpa, que dele cuidaram no início e no fim de sua vida, e a todos que participaram de sua história.
Deus é testemunha!
13 de Julho de 2009, por Rafael Chaves 0
Ninguém jamais conseguirá dar a conhecer um fato pelas palavras. Pelo menos não exatamente, fielmente. As palavras, por mais que o Aurélio e o Houaiss tenham procurado por elas, são limitadas. Já as possibilidades dos fatos e das circunstâncias são incalculáveis. Entretanto ninguém é tão capaz de contar um caso com tamanha verossimilhança e certeza quanto um mentiroso. O mentiroso acredita que o acontecimento que narra tem um único e irrefutável ponto de vista, o dele. Até porque, na maioria dos casos, ele, o mentiroso, é mesmo a única testemunha do fenômeno e, portanto, tem o benefício e a vantagem da dúvida. Quem vai contradizê-lo, senão ele próprio? Pois pode ficar tranquilo, ele não se denunciará nem sob tortura!
Sei de uns casos que me contaram, de ouvir dizer, faz muito tempo, do Toninho. Não sei se é mentira ou verdade. Quando me disseram, afirmaram, com todas as letras que a palavra há de ter, terem ouvido tudo dele, da boca dele, que um dia a terra há de comer! Eu também não fui atrás para confirmar se sim ou se não.
Certa feita o Toninho ia pela estrada dirigindo tranquilamente quando viu uma roda de carro rolando sozinha pela estrada, à sua esquerda e a ultrapassá-lo. E a roda ia mesmo passar na frente do seu carro quando ele resolveu acelerar “onde já se viu uma roda me ultrapassar?” – pensou. E afundou o pé no acelerador até que a roda, alguns quilômetros e curvas adiante, foi diminuindo a velocidade até tombar no asfalto. Toninho então parou ao lado da roda e sentiu seu carro também derribar ligeiramente para a esquerda, no chão. Desceu do carro e “uai, não é que a roda é a do meu carro!” – espantou-se.
De outra, dirigindo por uma estrada de terra, viu no meio da estrada uma cobra de um tamanho e uma grossura tão grande que não soube nem dimensionar. Disse que sentiu um baque quando passou em cima dela “pior que passar chutado por quebra-molas”. Contou que sua cabeça bateu no teto do carro, tal a violência do impacto. Afirmou que olhou de esguelha, mas não conseguiu ver mais a cobra pelo retrovisor “eu é que não vou parar pra ver!” Algum tempo depois sentiu o carro meio desestabilizado e a direção tremer, assim feito carro desalinhado e desbalanceado. Resolveu parar “e não era que o pneu estava vazio e com dois furos feitos pelas presas da cobra!” – contou.
E teve o dia em que o carro dele quebrou na estrada, lá pros lados onde Judas perdeu as botas. Todas, mas todas as marchas para a frente pararam de funcionar! Toninho não se fez de rogado, engatou a ré “pois num é que eu não vou ficar parado nessa estrada esperando o Daniel do Laudinor chegar sei lá quando, nem morto!”. E de ré veio de lá de onde estava até Resende Costa. E a certa altura “afundei o pé no acelerador” tanto, tanto que o velocímetro marcou 120 km por hora “foi num instantinho que eu cheguei.”
Mentira? Que isso!? Eu sou apenas um modesto intermediário dos casos que me contaram! Jamais diria que é mentira, ainda mais num veículo público e notório como este Jornal das Lajes. Deixo a cargo de cada um investigar e confirmar se quiser, ou não, essas histórias. Creio até que ele, se procurado, terá a maior boa vontade de explicar e esclarecer tudo isso, nos mínimos detalhes.
Afinal, outro dia, estava eu vagueando sozinho e Deus pelos campos lá na minha roça, bem pra lá de onde a vista alcança a minha casinha, quando começaram a cair uns pingos de chuva. Eu desembestei morro abaixo num ziguezague desvairado para desviar da chuva e a chuva caindo... Não é que quando eu me dei conta de mim, estirado na varanda, ainda com meu cigarrinho de palha no canto da boca – aceso, diga-se –, mais ofegante que corredor de maratona em final de corrida, a chuva caindo feito dilúvio e passei os olhos pela minha roupa, percebi que não tinha caído nem uma gota nela: tava mais seca que roupa estendida em varal no deserto do Atacama.
E tenho Deus por testemunha!
Sei de uns casos que me contaram, de ouvir dizer, faz muito tempo, do Toninho. Não sei se é mentira ou verdade. Quando me disseram, afirmaram, com todas as letras que a palavra há de ter, terem ouvido tudo dele, da boca dele, que um dia a terra há de comer! Eu também não fui atrás para confirmar se sim ou se não.
Certa feita o Toninho ia pela estrada dirigindo tranquilamente quando viu uma roda de carro rolando sozinha pela estrada, à sua esquerda e a ultrapassá-lo. E a roda ia mesmo passar na frente do seu carro quando ele resolveu acelerar “onde já se viu uma roda me ultrapassar?” – pensou. E afundou o pé no acelerador até que a roda, alguns quilômetros e curvas adiante, foi diminuindo a velocidade até tombar no asfalto. Toninho então parou ao lado da roda e sentiu seu carro também derribar ligeiramente para a esquerda, no chão. Desceu do carro e “uai, não é que a roda é a do meu carro!” – espantou-se.
De outra, dirigindo por uma estrada de terra, viu no meio da estrada uma cobra de um tamanho e uma grossura tão grande que não soube nem dimensionar. Disse que sentiu um baque quando passou em cima dela “pior que passar chutado por quebra-molas”. Contou que sua cabeça bateu no teto do carro, tal a violência do impacto. Afirmou que olhou de esguelha, mas não conseguiu ver mais a cobra pelo retrovisor “eu é que não vou parar pra ver!” Algum tempo depois sentiu o carro meio desestabilizado e a direção tremer, assim feito carro desalinhado e desbalanceado. Resolveu parar “e não era que o pneu estava vazio e com dois furos feitos pelas presas da cobra!” – contou.
E teve o dia em que o carro dele quebrou na estrada, lá pros lados onde Judas perdeu as botas. Todas, mas todas as marchas para a frente pararam de funcionar! Toninho não se fez de rogado, engatou a ré “pois num é que eu não vou ficar parado nessa estrada esperando o Daniel do Laudinor chegar sei lá quando, nem morto!”. E de ré veio de lá de onde estava até Resende Costa. E a certa altura “afundei o pé no acelerador” tanto, tanto que o velocímetro marcou 120 km por hora “foi num instantinho que eu cheguei.”
Mentira? Que isso!? Eu sou apenas um modesto intermediário dos casos que me contaram! Jamais diria que é mentira, ainda mais num veículo público e notório como este Jornal das Lajes. Deixo a cargo de cada um investigar e confirmar se quiser, ou não, essas histórias. Creio até que ele, se procurado, terá a maior boa vontade de explicar e esclarecer tudo isso, nos mínimos detalhes.
Afinal, outro dia, estava eu vagueando sozinho e Deus pelos campos lá na minha roça, bem pra lá de onde a vista alcança a minha casinha, quando começaram a cair uns pingos de chuva. Eu desembestei morro abaixo num ziguezague desvairado para desviar da chuva e a chuva caindo... Não é que quando eu me dei conta de mim, estirado na varanda, ainda com meu cigarrinho de palha no canto da boca – aceso, diga-se –, mais ofegante que corredor de maratona em final de corrida, a chuva caindo feito dilúvio e passei os olhos pela minha roupa, percebi que não tinha caído nem uma gota nela: tava mais seca que roupa estendida em varal no deserto do Atacama.
E tenho Deus por testemunha!
Adivinhem quem vem para o almoço de domingo?
13 de Junho de 2009, por Rafael Chaves 1
Domingo é dia de frango. Domingo é dia de frango bronzeado, bonito, requintado, enfeitado, adornado, ensopado, inteiro, repartido ou o que seja, na mesa. Por isso frango, ao contrário dos humanos, deve abominar domingo. Domingo é um dia de frango às avessas, apesar de ser o dia dele.
Frango foi feito por Deus para ser devorado aos domingos, a família reunida, sem dó nem piedade, nem educação. Minha mãe adora dizer - e adora frango também - que não é falta de educação comer frango utilizando as mãos. Mal acaba de se justificar, agarra uma coxa de frango e dá-lhe uma dentada de puro êxtase e satisfação. Se limpasse os beiços com a manga da camisa - assim como muitos de nós fazemos - a cena estaria completa.
Frango na mesa em dia de domingo vem desde tempos imemoriais. Meu pai, com 89 anos, ainda se lembra dos almoços de domingo da sua infância, cujo prato principal era quase invariavelmente um frango - ou mais, dependendo da freguesia - caneludo, atlético e esguio, apanhado de última hora no galinheiro da fazenda. Minha avó materna, lembro, tinha uma coleção deles no seu quintal. Frangos daqueles de canelas amarelinhas - que ela fazia questão da cor das canelas - só para os almoços de domingo.
Cavalgada de domingo sem encomenda de frango no destino é defeituosa. Pode ser cavalgada pro povoado do Barracão, do Ribeirão ou da Restinga, não interessa o lugar, só vai ser perfeita se tiver frango, de preferência ao molho pardo, servido acompanhado de angu e couve.
Dia de domingo você sai pela cidade e a cidade transpira e exala aroma de frango. Ou o frango está sendo preparado em casa ou estará atuando como protagonista nas televisões de cachorro espalhadas pela cidade, à espera do seu resgate. Isso mesmo, televisões de cachorro, que são aquelas assadeiras de frango – que os cachorros, auto-adestrados, adoram assistir sentados – todas elas viradas para a rua só para lembrar que hoje, domingo, é dia de frango. E tome frango!
E frango tem uma qualidade que pode até legitimar a sua escolha como prato principal de domingo: raramente dá briga entre os consortes. Reparte-se o frango em pedaços e cada um avança no seu. No final cada um está com o pedaço que o satisfaz. Porque quem gosta de peito não gosta de asa, quem gosta de coxa não gosta das costelas, e vice-versa. Se alguém já pegou a coxa, come-se a sobrecoxa, que é quase a mesma coisa. Eu então não tenho motivo nenhum para discutir com ninguém: eu gosto e avanço é no pescoço, pra comer com as mãos e lamber os beiços.
E tem outra peculiaridade: sempre está na medida certa. Frango não falta nem sobra. Pode-se dividi-lo em tantos pedaços quantos sejam os comensais. Frango tem um só peito, mas que, milagrosamente, pode ser dividido em tantos peitos: que delícia! Somente os ossos sobram, para a felicidade e delírio dos cachorros - aqueles mesmos cachorros que há pouco assistiram o frango assando na tv de cachorro - que esperaram pacientemente a sua vez e que, por fim, não deixam o menor vestígio da existência daquela vida. Frango pode até ter o tamanho que se precisar. Em certos lugares ainda há o hábito de se criar o frango capão. Castra-se o frango e o confina até o ponto de abate, aos 7, 8 meses, com cerca de 4 ou 5 quilos. O frango se transforma quase num peru.
E uma última, é barato! Baratinho! Todo mundo hoje em dia pode comprar um frango aos domingos, daqueles transgênicos que nascem do ovo, crescem e são abatidos aos quarenta e poucos dias. Coitados! Felizes são aqueles frangos caipiras que ciscam a terra em busca de minhoca! E felizes também aqueles que podem se dar ao luxo de comer um desses! Que nos digam os frequentadores do sítio do Dr. Luiz, mas aí já é outro caso, que o frango não é o de domingo e sim, o da segunda-feira.
Esse mistério interminável de quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha, já desisti de desvendar. Para mim não tem discussão, nem me interessa outra solução: o frango em primeiro lugar (pelo menos no domingo)!
Frango foi feito por Deus para ser devorado aos domingos, a família reunida, sem dó nem piedade, nem educação. Minha mãe adora dizer - e adora frango também - que não é falta de educação comer frango utilizando as mãos. Mal acaba de se justificar, agarra uma coxa de frango e dá-lhe uma dentada de puro êxtase e satisfação. Se limpasse os beiços com a manga da camisa - assim como muitos de nós fazemos - a cena estaria completa.
Frango na mesa em dia de domingo vem desde tempos imemoriais. Meu pai, com 89 anos, ainda se lembra dos almoços de domingo da sua infância, cujo prato principal era quase invariavelmente um frango - ou mais, dependendo da freguesia - caneludo, atlético e esguio, apanhado de última hora no galinheiro da fazenda. Minha avó materna, lembro, tinha uma coleção deles no seu quintal. Frangos daqueles de canelas amarelinhas - que ela fazia questão da cor das canelas - só para os almoços de domingo.
Cavalgada de domingo sem encomenda de frango no destino é defeituosa. Pode ser cavalgada pro povoado do Barracão, do Ribeirão ou da Restinga, não interessa o lugar, só vai ser perfeita se tiver frango, de preferência ao molho pardo, servido acompanhado de angu e couve.
Dia de domingo você sai pela cidade e a cidade transpira e exala aroma de frango. Ou o frango está sendo preparado em casa ou estará atuando como protagonista nas televisões de cachorro espalhadas pela cidade, à espera do seu resgate. Isso mesmo, televisões de cachorro, que são aquelas assadeiras de frango – que os cachorros, auto-adestrados, adoram assistir sentados – todas elas viradas para a rua só para lembrar que hoje, domingo, é dia de frango. E tome frango!
E frango tem uma qualidade que pode até legitimar a sua escolha como prato principal de domingo: raramente dá briga entre os consortes. Reparte-se o frango em pedaços e cada um avança no seu. No final cada um está com o pedaço que o satisfaz. Porque quem gosta de peito não gosta de asa, quem gosta de coxa não gosta das costelas, e vice-versa. Se alguém já pegou a coxa, come-se a sobrecoxa, que é quase a mesma coisa. Eu então não tenho motivo nenhum para discutir com ninguém: eu gosto e avanço é no pescoço, pra comer com as mãos e lamber os beiços.
E tem outra peculiaridade: sempre está na medida certa. Frango não falta nem sobra. Pode-se dividi-lo em tantos pedaços quantos sejam os comensais. Frango tem um só peito, mas que, milagrosamente, pode ser dividido em tantos peitos: que delícia! Somente os ossos sobram, para a felicidade e delírio dos cachorros - aqueles mesmos cachorros que há pouco assistiram o frango assando na tv de cachorro - que esperaram pacientemente a sua vez e que, por fim, não deixam o menor vestígio da existência daquela vida. Frango pode até ter o tamanho que se precisar. Em certos lugares ainda há o hábito de se criar o frango capão. Castra-se o frango e o confina até o ponto de abate, aos 7, 8 meses, com cerca de 4 ou 5 quilos. O frango se transforma quase num peru.
E uma última, é barato! Baratinho! Todo mundo hoje em dia pode comprar um frango aos domingos, daqueles transgênicos que nascem do ovo, crescem e são abatidos aos quarenta e poucos dias. Coitados! Felizes são aqueles frangos caipiras que ciscam a terra em busca de minhoca! E felizes também aqueles que podem se dar ao luxo de comer um desses! Que nos digam os frequentadores do sítio do Dr. Luiz, mas aí já é outro caso, que o frango não é o de domingo e sim, o da segunda-feira.
Esse mistério interminável de quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha, já desisti de desvendar. Para mim não tem discussão, nem me interessa outra solução: o frango em primeiro lugar (pelo menos no domingo)!