A injustiça grita na cultura do silêncio


Editorial

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A onda de protestos que correu diversos países do mundo devido ao assassinato covarde do afro-americano George Floyd, no último 25 de maio, em Minneapolis (EUA), pelo policial branco Derek Chauvin, despertou diversos sentimentos e reações em milhares de pessoas que, indignadas, lotaram as ruas das principais metrópoles do planeta reivindicando justiça e clamando basta a todas as formas de opressão e discriminação.

Imobilizado, deitado de bruços sobre o asfalto de uma rua na cidade americana de Minneapolis e com o pescoço submisso ao joelho avassalador e cirurgicamente mortal de Chauvin, Floyd suplicava: “não consigo respirar”. Essa frase breve, quase rouca, inaudível e ofegante, tornar-se-ia um hino contra a discriminação, a covardia e a injustiça. 

O policial Derek Chauvin – que teve outros companheiros de farda como testemunhas – talvez tivesse imaginado que a sua covarde ação não causaria nenhuma repercussão além do pequeno círculo que se formou em torno da viatura policial que ostenta o nome da cidade americana. Na concepção do policial branco, Floyd seria mais um negro infrator da ordem a ser exemplarmente silenciado. Mas só que não. A cena foi gravada e as imagens chegaram imediatamente aos quatro cantos do planeta.

O episódio de Minneapolis acendeu também a reação das pessoas contra a inércia das autoridades e instituições ante as diversas formas de preconceito e discriminação. As multidões que saíram às ruas nos Estados Unidos e em diversos países do mundo – ignorando, inclusive, a pandemia e os altos riscos de contaminação pelo coronavírus – abriram um grande portfólio de reivindicações em seus protestos. Sob o lema “vidas negras importam”, o coro de vozes quis dizer que todas as vidas são importantes e preciosas, independentemente da cor da pele ou dos olhos. A sociedade que se levantou raivosa, derrubando estátuas de escravagistas e de colonizadores do passado e que hoje ornamentam, heroicas e gloriosas, jardins, museus e praças das nossas metrópoles, mandou um recado claro: chega de opressão, de submissão e injustiça.

A sensação é visceral: covardia e injustiça despertam em nós um sentimento primitivo e reativo de indignação. Quando somos vítimas ou assistimos a outras pessoas sofrerem passivamente os efeitos de atitudes covardes e injustas, sentimos náusea e tendemos a cobrar das instituições os princípios elementares da ética que rege a vida numa sociedade organizada. Se isso não acontecer, voltaremos (ou não sairemos) do estado de barbárie no qual somente elites privilegiadas encontram voz, oportunidades e amparo.

Por detrás da covardia e da injustiça sempre se esconde a cultura do silêncio. Ditadores agem protegidos pelas paredes dos porões da cumplicidade; patrões autoritários demitem impiedosamente seus funcionários cercados pelo silêncio obsequioso e interesseiro do seu séquito de bajuladores. É essa a infame engrenagem da qual aproveitam os vocacionados ao autoritarismo. O silêncio e a falta de transparência, sobretudo em instituições que regem a vida social, azeitam a engrenagem que move e faz circular ininterruptamente o carrossel da covardia e da injustiça.

Mesmo que sufocado pelo joelho do policial branco, o negro George Floyd encontrou forças para balbuciar uma súplica que pode mudar para sempre a engrenagem da cultura do silêncio que ainda impera na índole de muitas pessoas e rege instituições, famílias e nações. A frase “Não consigo respirar” abriu os pulmões de centenas de milhares de pessoas no mundo inteiro que, com sangue nos olhos, reagiram contra a injustiça, gritando basta à sociedade opressora.

Na era da tecnologia e da informação rápida, não há mais espaço para a cultura do silêncio. O policial Derek Chauvin pensou que esconderia sua ação criminosa sob seu joelho e por trás de uma viatura da polícia de Minneapolis. Seu intento, no entanto, foi desvelado por minúsculas câmeras de celulares que captaram também o áudio baixo, porém revolucionário, de uma voz que, já quase sucumbida pelo peso da morte, encontrou forças para, quem sabe, sepultar para sempre a infame cultura do silêncio que encobre e protege a covardia, a injustiça e a discriminação.

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