Guardião da memória do Brasil na II Guerra e

Mário Pereira sonha com a inclusão do Monumento de Pistoia em roteiros turísticos de grande porte.


Imigrantes & Empreendedores

José Venâncio de Resende0

Mário Pereira, no Monumento Votivo Militar Brasileiro, Pistoia.

O ítalo-brasileiro Mário Pereira, filho do soldado gaúcho Miguel Pereira, é conhecido como o “embaixador da FEB na Itália”, não apenas porque herdou do pai a função de guardião do Monumento Votivo Militar Brasileiro (MVMB), em Pistoia, e da memória da Força Expedicionária Brasileira (FEB), “mas também porque me tornei uma referência na Itália e no Brasil para a manutenção e a divulgação dessa memória”.

Mário nasceu em 11 de Setembro de 1959 em Pistoia, de mãe italiana, e foi registrado no Consulado de Florença. Obteve a nacionalidade italiana com 19 anos por motivos de trabalho. Fez curso de conserto de rádio e TV e chegou a ter uma loja de conserto de aparelhos eletrônicos e de instalação de som em carros. Também trabalhou em iluminação para eventos e shows. “Não cheguei à universidade devido às dificuldades financeiras da minha família, que tornaram necessária minha contribuição financeira em casa.”

Desde 1997, Mário Pereira é o responsável pela condução do Monumento de Pistoia e o criador do Museu da FEB que já tem cerca de 150 objetos – além dos emprestados por colecionadores – e uma biblioteca com cerca de 250 volumes com referências à FEB. Além disso, recebe turistas e os acompanha na visita aos monumentos no itinerário seguido pela FEB na Segunda Guerra Mundial.

Que lembranças que você guarda do seu pai, na sua infância e juventude?

Meu pai era um brasileiro transplantado na Itália, não por escolha mas por ter sido indicado como a pessoa que deveria ficar como responsável pelo cemitério brasileiro de Pistoia. Então, eu me criei, mesmo na Itália, como filho de gaúcho, com toda a tradição que gaúcho tem. Sempre mantive um ótimo relacionamento com meu pai e sempre ajudei nas atividades dele junto ao Monumento. Fazia tudo o que ele precisava de mim e, na minha função de técnico de áudio, instalava o som para as solenidades no Monumento. Além disso, sempre fiquei do lado do meu pai e ajudei em tudo, desde cortar a grama no Monumento até levar as pessoas, quando maior de idade e com carteira de motorista, nos percursos da FEB, com ou sem ele.

Por que ele decidiu não voltar ao Brasil depois da Segunda Guerra?

Ele não decidiu nada! Foi designado pelos comandantes da FEB, com os quais tinha servido (Mascarenhas e Zenóbio). Ele voltou para o Brasil querendo levar a mamãe para viver lá. Depois foi incluído na última guarda que foi designada para cuidar do cemitério. Em seguida, os comandos aliados decidiram retirar todas as unidades militares da Itália e deixar um responsável para cada cemitério de guerra. E meu pai foi escolhido.

Desde que idade você começou a se interessar pelo trabalho do seu pai no cemitério onde estavam sepultados os corpos dos soldados da FEB?

Eu nasci em 1959  e o Monumento (de Pistoia) foi construído pelo governo brasileiro em 65 e inaugurado em 7 de junho de 1966. Daí eu me criei na “sombra” deste Monumento e sempre ficava aqui com meu pai no verão da minha juventude, ajudando cortar grama, fazer os trabalhos que precisava. Ele lutou muito para manter viva a memória dos companheiros da FEB, aqueles heróis falecidos em solo italiano dos quais cuidou até o fim da própria existência. Por sinal, aqui estavam tumulados os 462 mortos da Segunda Guerra Mundial, que foram transladados para o aterro do Flamengo no Rio de Janeiro. Um foi encontrado depois da construção do Monumento em Montese e resgatado pelo meu pai,  que ao longo da vida resgatou nove dados como desaparecidos no fim da guerra. Dois ainda ficam em solo italiano, Deus sabe aonde!

Em que ano o seu pai faleceu? Nesta altura, como estava o trabalho que ele começou?

Meu pai faleceu em 3 de fevereiro de 2003. O Monumento neste tempo era um lugar pouco visitado pelos brasileiros, menos ainda pelos italianos. Nunca se via algum estrangeiro. Naturalmente, não por vontade dele mas porque o trabalho e a missão dele sempre foram hostilizados por ciúme de muitos que tentaram de toda forma atrapalhar a sua vida.

Quando o seu pai faleceu, você já trabalhava para o governo brasileiro?

Em 2003, eu tinha 43 anos. Trabalhava desde agosto 1977 junto à Embaixada, com a função de auxiliar meu pai e assumir as tarefas.

Desde quando você é o responsável pela sua manutenção e conservação do monumento de Pistoia?

Desde agosto 1997, quando assumi, por concurso publico, a condução do Monumento. Porém, enquanto meu pai viveu ele foi o chefe e eu, auxiliar; ou seja, mesmo cabendo a mim a responsabilidade, sempre deixei que ele conduzisse o Monumento.

Como surgiu a ideia de organizar o museu com documentos e objetos da FEB? Quanto tempo (meses, anos) levou para você recuperar e catalogar o atual acervo do museu? Quantas peças você conseguiu reunir para o museu?

Após o falecimento do meu pai, eu comecei a atuar aqui sozinho, e passei a verificar as deficiências que existiam (falhas, problemas, coisas que poderiam ser feitas de melhor forma), principalmente a pouca coisa que o visitante encontrava no local. O Monumento em si é bonito, mas eu percebia que alguns visitantes esperavam um “algo mais”. Levando turistas às áreas onde a FEB combateu, chamou-me a atenção o fato de os brasileiros gostarem de pequenos museus que existem por lá. Daí comecei a solicitar à Embaixada que conseguisse recursos para juntar o escritório à sala contígua que servia de depósito para os jardineiros. Só após anos, exatamente em 2012, consegui, com a ajuda do Embaixador José Viegas Filho, os recursos. Inauguramos o museu do Monumento em 21 abril de 2012. Quanto à organização do acervo, da biblioteca e de todo o material, estamos ainda trabalhando nisso. O museu tem cerca de 150 objetos, e o acervo vai crescendo à medida que recebo doações de materiais (da época da II Guerra Mundial) ou de dinheiro com os quais eu compro alguns objetos de colecionadores e vendedores. Além disso, o museu tem alguns materiais emprestados por colecionadores, que competem para deixar materiais da FEB expostos aqui. Na biblioteca, tenho cerca de 250 volumes, todos com referências à FEB.

Além do monumento, você tem uma atividade intensa na região onde a FEB lutou na Segunda Guerra Mundial... Organiza eventos na Toscana - e mesmo na Itália -, faz palestras em escolas e universidades, atua como uma espécie de guia turístico etc... Foi por isso que você ganhou o apelido de “embaixador da FEB”?

Talvez seja bem por isso, pois não apenas herdei a função de guardião do Monumento e da Memória da FEB, mas me tornei uma referência na Itália e no Brasil para a manutenção e a divulgação dessa memória. As atividades nas escolas e com as novas gerações são, para mim, prioritárias, pois temos o dever de repassar aos jovens esta parte da história, infelizmente deixada de lado pela grande historiografia mas gravada nos corações dos italianos.

Muitos brasileiros visitam a Toscana?  Tem aumentado o interesse dos brasileiros pela região?

Meu conceito de “muitos brasileiros”, como costumo dizer, seria quando todos os brasileiros que pisam na Itália passassem por aqui, aí sim, seria muitos brasileiros. Temos que trabalhar muito em divulgação e promoção dos roteiros que podem ser realizados. Embora o número seja crescente a cada ano, com algumas flexões nos momentos críticos como o que o Brasil está passando, acredito que um bom trabalho de divulgação nas agências turísticas poderia trazer aqui, e em todo o circuito FEB, um número ainda maior de brasileiros. Atualmente, estamos com uma média de 800/1000 brasileiros por ano. O brasileiro que visita a Itália gosta muito de visitar a Toscana, que tem belezas artísticas, paisagísticas e enogastronômicas de excelência.

Qual é o balanço que você faz do seu trabalho? É gratificante? É verdade que a memória dos expedicionários brasileiros é mais reconhecida na Itália do que no Brasil?

Eu posso me considerar muito satisfeito pelo que já fiz, e pelo que tenho como programa para os próximos anos. Gratificante é conscientizar os brasileiros que aqui chegam, levá-los às áreas onde a FEB combateu, fazer com que eles consigam conhecer de perto, tocar com as mãos os lugares por onde nossos soldados andaram. Aí eu percebo que o visitante fica admirado com nossos soldados. Ouvir os contos que eu repasso, ver os lugares é significativo para entender os esforços dos nossos heróis. Os italianos apreciam mais a memória da FEB porque eles viram, com os próprios olhos, o que os pracinhas fizeram aqui. Além de lutar contra o inimigo, eles trouxeram um sorriso, alimentos, novas esperanças. Eles, os pracinhas, foram os verdadeiros libertadores!!!

Como tem sido o apoio do governo brasileiro ao seu trabalho na Toscana?

A Embaixada apoia as atividades, porém sem envolvimento de pessoas da própria estrutura que poderiam ajudar, e muito, o processo de promoção e divulgação da nosssa história. Afinal, nosso País foi excelente na atuação na II Guerra Mundial e isto devia ser levado na devida consideração.

Que personalidades brasileiras, entre presidentes, ministros etc., você lembra de ter recebido nestes anos todos?

Meu pai recebeu o presidente da Republica do Brasil Fernando Collor de Melo, em 1992. Ano passado, a presidenta devia ter comparecido aqui, mas por causa do impeachment que estava se iniciando ela desistiu. Aí veio o ministro da Defesa. Já recebi vários ministros, entre eles a Marina Silva e o Nelson Jobim. Muitas personalidades passaram por aqui. O Lula tinha prometido passar por aqui se ganhasse as eleições para presidente. Eu encontrei com ele em 2002, em Campo Grande, no Encontro Nacional dos Veteranos daquele ano. A gente estava no mesmo hotel e ele tirou fotos conosco, eu e os veteranos, prometendo que se tornasse presidente viria prestar homenagem ao túmulo do Soldado Desconhecido em Pistoia. Alguns anos depois, 2007 ou 2008 se não me engano, ele veio em visita oficial à Itália e foi prestar homenagem ao Soldado Desconhecido em Roma, o “desconhecido italiano”. E não veio aqui!!! Isso me indignou muito e, no fundo, retrata muito bem a atitude do Governo em querer manter calada esta história dos nossos heróis. Recebi dois chefes do Exército, o general Enzo Martins Peri e, no ano passado, o general Vilas Bôas, atual comandante do Exército. Além disso, já recebi vários repórteres de jornais e revistas  e equipes de algumas televisões brasileiras, como RPC TV, RBS e TV Globo, que fizeram matérias a respeito da Força Expedicionária Brasileira. Sempre os atendi da melhor maneira possível, além mesmo das minhas funções, enxergando nisso uma divulgação no nosso País, o que já rendeu alguns frutos, mas não o tanto quanto eu esperava.

Quais os seus planos daqui pra frente? O que você acha que ainda falta fazer?

Meus planos são de ainda fazer mais divulgação, com a produção de mais um documentário - já fiz um que estou levando na Itália inteira e também no Brasil -, e manter viva e fervente a memória dos nossos heróis. Em tempos de crise ética como a que o mundo está passando nestes anos, acredito que a conscientização da nossa população seja de primeira importância, e é neste sentido que vou atuar. O próprio Monumento e todo o percurso da FEB poderiam ser mais e melhor divulgados, principalmente no Brasil, e valorizados pelo feito extraordinário que representaram e representam para o mundo inteiro.

Como fazer isso?

A inclusão, por exemplo, do Monumento em roteiros turísticos de grande porte e a divulgação dos roteiros que podem ser realizados na área da FEB são algumas das medidas que poderiam (e devem) ser tomadas para ampliar o número de visitantes.

Você é casado? Tem filhos?

Depois de devorciado do meu primeiro casamento, agora vivo com Annalisa e temos dois filhos dos casamentos anteriores de cada um. Martina, minha filha brasileira, está finalizando a faculdade de ensino infantil. A Martina foi adotada por mim e minha esposa quando ainda estávamos casados em Belo Horizonte. Eu tenho uma neta, a Aurora, que também tem dupla cidadania. Annalisa tem um filho, o Luca, do precedente casamento, cursando faculdade para assistente social. Vivemos em Pistoia, juntos, há 13 anos.

 

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