Ieiêta


Jl e Você

Edna Maria Resende1

Ao me deparar a foto da Tia Ieiêta no grupo RC Fotos HIstóricas me senti motivada a prestar-lhe uma homenagem.

Ieiêta

Edna Maria Resende

A Ave-Maria ecoava. O sino badalava. O Ângelus conclamava os habitantes da cidade para elevarem-se aos Céus, suspenderem-se do mundo, transbordarem o divino que está contido em cada um de nós. Nenhum deles, contudo, sentia-se tocado tão profundamente por aquelas preces quanto Marieta.

Tia Ieiêta, como seus inúmeros sobrinhos a chamavam, seguia um ritual cotidiano. Religiosamente, ao findar da tarde, investia-se de suas muletas e punha-se a caminho da Matriz. Apressava-se para a igreja. A missa ainda tardaria, mas era preciso chegar cedo para cumprir suas orações. Tirava do bolso da saia seu véu branco e o terço inseparável. Pais-Nossos, Ave-Marias, Salve-Rainhas desfiavam-se pelas contas do rosário. Contritas orações. Poderosas rezas. Segredava em silêncio com Nossa Senhora, sabidamente sua protetora. Jamais duvidou de seu amparo. Em noites de chuva, grandes perigos havia na volta para casa. Paralelepípedos escorregadios podiam desequilibrar tão frágil corpo. A friagem úmida poderia comprometer seus debilitados pulmões. Temores vãos. Nossa Senhora emprestava-lhe a capa e Tia Ieiêta chegava a sua casa, segura, seca, confiante. Sempre contava essa história. Mas não havia aí arrogância alguma. Nem mesmo sentia-se especial ou favorecida. Seu relato era natural. As coisas se passavam dessa forma porque tinha fé. Simplesmente.

Era uma rica senhora. Sem teres nem haveres. De saúde delicada, vivia modestamente em uma pequena casa, na rua Sete de Setembro. Caçula de uma família de oito irmãos, Marieta era franzina, cabelos curtos, presos por um grampo atrás da orelha, olhos miúdos e muito vivos. Donana, Zizinha, Quinquim, Gugusto, Totonho, Chiquinho e Fafá, seus irmãos, tinham olhos azuis. Era a única que tinha um olho castanho. O outro era azul.

Obediente à tradição da família, desde menina estava às voltas com fios e panos. Tecer, não tecia. Suas pernas não permitiam. Cardava e fiava aquelas lãs tão brancas quanto seus cabelos. Recortava retalhos e enovelava fios. Fazia um biscoito quebra-quebra tão miúdo e perfeito, sem igual.

Sem marido, sem filhos, sem rendas, praticava o milagre da sobrevivência. Nada lhe faltava. Sua casa estava sempre de portas abertas para quem precisava de abrigo e de alimentos. Gabava-se de nunca ter almoçado sozinha. Sempre havia uma visita, um sobrinho, um amigo para compartilhar as refeições. Alimentava a todos e, inexplicavelmente, sua mesa era farta. Compreendia, melhor do que todos, a história da multiplicação dos pães. Compreendia, com certeza, o sentido profundo do acolhimento, da generosidade, da resignação, da devoção e da simplicidade.

Nas minhas memórias de criança, Tia Ieiêta, tia querida, era qual fada boa, que nos presenteava com balas e biscoitos, guardados em latinhas coloridas em seu guarda-louças encantado.

Senhora da sua história, Tia Ieiêta marcou a todos nós que convivemos com ela. Naturalmente, nada fez de heróico. Sua vida cotidiana, quase invisível, não está repleta de grandes feitos, que fazem extrapolar o humano e elevam os homens ao território dos mitos. Mas é inegável que ela compartilhava a devoção e a fé das santas. Ao rememorar sua história, como não se lembrar da convicção de Joana D’arc, da generosidade de Madre Tereza ou do acolhimento de Irmã Dulce? Por outro lado, é exatamente sua vida anônima e simples que a fez profundamente humana, na sua capacidade de crer, de transcender, de aproximar-se do divino.

Comentários

  • Author

    FAÇO MINHAS, SUAS PALAVRAS. PARABÉNS PELO COMENTÁRIO.


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