Lama e Luto


Artigo

Guilherme Rezende* 0

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Nos primeiros dias do mês de fevereiro de 2019, as telas dos vários suportes midiáticos revelaram imagens contraditórias, paradoxais e estarrecedoras da realidade brasileira. Toda a tristeza e horror pelos mais de cem mortos e mais de duzentos desaparecidos em Brumadinho dividiu as atenções com a reabertura dos trabalhos legislativos e a recuperação do Presidente da República de um procedimento cirúrgico. O desastre pavoroso que deveria motivar a decretação oficial de luto, já adotado de fato pela população, parece não sensibilizar devidamente as autoridades e empresários direta ou indiretamente comprometidos com o que aconteceu. 

No parlamento em Brasília, em clima comemorativo, centenas de senhores e senhoras, portando figurinos e adornos exuberantes, movimentavam-se sorridentes pelos salões à espera das solenidades de posse nos cargos de deputados federais e senadores. Nos bastidores, teciam conchavos secretos para eleição da mesa diretora das duas casas parlamentares da União. Em todos os vinte e sete estados da federação, encenação similar ocupava os cenários das assembléias legislativas. A um espectador desavisado tudo poderia ser visto como um indício de um período de tranquilidade, alegria e esperança para o Brasil.

Enquanto isso, centenas de bombeiros e policiais militares, com salários atrasados a receber em várias parcelas, circundados por uma multidão ao mesmo tempo aflita e solidária, trabalhavam sem cessar para o resgate de corpos do inominável incidente de Brumadinho. Nessa narrativa audiovisual com sutis toques de espetacularização, ora se mostravam helicópteros sobrevoando o lamaçal com restos de corpos pendurados, ora se expunham bombeiros rastejando no barro com trajes nada glamurizados. Mal pagos, esbanjavam coragem, dedicação e eficiência em todas as ações, inclusive como porta-vozes serenos, objetivos e precisos das últimas informações.

Os noticiários das emissoras de televisão e as postagens das redes sociais reproduziam à exaustão imagens detalhadas do momento exato que a barragem se rompe, engolfando, além da sirene, tudo o que encontrava pela frente. De tanto se repetir, o avassalador avanço da lama, arrebatando corpos, edifícios, veículos, chega a se confundir com uma sequência de takes de ficção. O processo de reexibições contínuas não acabaria se convertendo em uma forma de soterrar a perplexidade e angústia extrema que cada um de nós assimilou nos últimos dias? Tudo não passaria de uma estratégia perversa para atenuar o impacto de acontecimentos terríveis, um recurso para acomodar aos poucos nossa indignação?

Infelizmente, em um instante de tanta dor, ainda somos convocados a refletir sobre esses questionamentos. A cobertura onipresente dos fatos deixa a sensação de que quanto mais se mostra mais se oculta. Quanto mais se divulgam nomes dos suspeitos de plantão, detalhes de causas, promessas levianas, cenas de horror, mais se escondem as falhas, as omissões e a má fé dos responsáveis pela tragédia. E nada é tão indecoroso do que oferecer a doação de cem mil reais para (a)pagar a existência de vítimas fatais, como se fosse possível e aceitável remunerar a perda de uma vida. Como é indecente tratar um drama de tamanha proporção como uma proposta fria e desumana, típica do capitalismo mais selvagem que se possa imaginar.

Em um desvairado arroubo de revolta, sou tentado a desejar que melhor seria uma simples troca de atores nos cenários da lama e dos salões do parlamento. Tenho certeza de que nos sentimos muito mais sintonizados com o heróico empenho dos bombeiros e de outros milhares de anônimos voluntários do que com parte considerável de nossos representantes políticos agora empossados.

*Jornalista e professor aposentado da UFSJ

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