“Que a dor de agora nos faça abrir os olhos”


Entrevistas

André Eustáquio1

fotoPoeta e escritor Evaldo Balbino, autor de Inscrição no deserto, seu mais novo livro de poesias (Foto arquivo pessoal)

O poeta e escritor Evaldo Balbino, 44, lançou, no último dia 31, mais um livro. Inscrição no deserto – Cabo Frio (RJ): Helvetia Éditions, 2020, 92 páginas, é o oitavo livro, o quarto de poesias, do escritor resende-costense e membro da Academia de Letras de São João del-Rei. Evaldo vive desde 1995 em Belo Horizonte, leciona português na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde também é pesquisador de literatura.

O livro foi impresso em março deste ano, porém, com o avanço da pandemia do novo coronavírus no Brasil, ficou parado no estoque da editora. “Todos nós ficamos esperando pelo ‘andar da carruagem’. Como sanitariamente o nosso país continua no difícil processo em que se encontra, a editora resolveu fazer um lançamento virtual”, explica o autor.

Nesta entrevista ao JL, Evaldo Balbino fala do seu novo livro de poesias, dos tempos sombrios em que vive a cultura no Brasil e da inspiração poética que o faz refletir sobre os mais áridos e instigantes temas relacionados à existência.

No último dia 31, você lançou seu novo livro de poesias, Inscrição no deserto. O deserto o inspira? O deserto me inspira porque sem ele não existem oásis. Esta parece ser uma lógica binarista, a qual é questionada por muitos pensadores de meados do século 20 para cá: a lógica do binarismo. De fato, as coisas da vida não se resumem a apenas dois lados. A existência é sempre múltipla. Mas é fato que o nosso pensamento – e consequentemente nossa simbologia – funciona tomando como ponto de partida os opostos. Claro que entre os opostos há infinitas possibilidades, assim como, numa reta, entre um ponto e outro há infinitos pontos. Entre o deserto e o oásis há infinitos – ou talvez apenas vários – modos de ser e de estar na vida. O deserto (no seu sentido do que é negativo, nada, ausência, morte etc.) me inspira, pois ele me estimula a criar-lhe substitutos ou formas paralelas. Daí o meu desejo pelo que é positivo, tudo, presença, vida etc.

No livro você trata de temas filosóficos complexos, como a morte, Deus, vida, amor, tempo. Como abordar esses temas através da poesia? O texto poético deve ser, antes de tudo, poesia. E, como tal, ele trata de quaisquer assuntos de modo estético, do nível da beleza erigida em palavras. Nesse sentido, apesar dos contatos, filosofia e poesia se esbarram, mas não são a mesma coisa. A filosofia quer pensar, compreender um fenômeno. A poesia também deseja isso, mas antes de tudo ela deseja produzir beleza. Filosofar sobre a morte ou o amor é busca de compreensão desses fenômenos. Poetar sobre isso é fazê-lo de modo a produzir beleza, porque as palavras, quando organizadas num alto grau de simbologia e de atenção a sua materialidade (visual, fônica, melódica), ofertam-nos a beleza do que na vida muitas vezes não vemos como sendo belo. Pela poesia, deseja-se também o entendimento de tudo, mas antes queremos nela um alimento espiritual, um canto aos nossos sentidos. A filosofia pensa a coisa. A poesia revela a coisa que, muitas vezes, não percebemos.

Em uma de nossas conversas, você disse que considera Inscrição no deserto um livro mais maduro quando comparado aos anteriores de poesia de sua autoria. Por quê? Considero-o mais maduro em termos estéticos e de clareza de tudo o que vejo, ouço, sinto, leio. É claro que tudo o que escrevo hoje já está na seara do meu primeiro livro, Moinho (2006). Só que, de lá para cá, tenho amadurecido mais os meus pensamentos. Isso é questão de experiência, de vivência, de mais leituras. Esteticamente falando, Inscrição no deserto se constrói de um modo mais seguro, com poesia mais destilada, com mais unidade entre os textos, com versos mais incisivos e mais elaborados a meu ver. Mas isso não me faz deixar de amar os meus filhos anteriores não. Pelo contrário, são todos literatura por mercê de Deus. Se não fossem, eu não os teria publicado.

Estamos vivendo um período atípico devido à pandemia do novo coronavírus. As medidas de distanciamento social impedem encontros interpessoais, eventos com público etc. Inclusive, o seu mais novo livro foi lançado on-line. Enquanto escritor, como você tem vivido o distanciamento social? O trabalho em si do escritor é solitário. O ato de escrever per si é solidão. Mas é lógico que escrevemos recriando a vida. Nesse sentido, o distanciamento social também não deixa de ser um dos acontecimentos da vida. Inclusive, durante esta pandemia, cheguei a escrever alguns poemas e textos em prosa sobre o que estamos vivendo. Penso que ninguém está vivendo esse momento com tranquilidade. Você mesmo coloca em sua pergunta sobre o lançamento on-line do meu livro. Eu, particularmente, gosto do calor humano, de me encontrar com as pessoas. Mas veja: o deserto também não faz parte da vida? Então: atravessamos agora um deserto – um trágico deserto – mas dele podemos erigir flores, aprendizados, reflexões, mudanças de postura, poesia. A pandemia é um deserto, e espero que nessa travessia a humanidade aprenda algo. Apesar de realista, alimento em mim utopias e sonho com um mundo melhor de amor e respeito a todas as vidas em suas diferentes formas.

Como é fazer literatura, especialmente poesia, num momento de tanta tensão, em que todos os dias nos deparamos com notícias tristes a respeito de mortes e de sofrimento? A tristeza, o sofrimento e o medo também inspiram o poeta? Como eu já disse, tenho produzido bastante. Não só a tristeza, o sofrimento e o medo inspiram o poeta. Tudo é matéria de poesia, coisas boas ou ruins. Por isso que muitas vezes, em palestras minhas e bate-papos com leitores sobre o meu trabalho, vira e mexe alguém pergunta por que escrevo sobre coisas tristes, como a morte, por exemplo, ou a passagem do tempo que a tudo leva. E o que respondo é o que Aristóteles já respondia em sua poética: na poesia tudo é belo; o que na vida dói, na poesia se me revela com tanta beleza, que olho para o que leio e penso: “Poxa! Então é isso e eu nem tinha parado pra pensar!”. A poesia me revela as coisas em sua plenitude, me dá a sensação de abarcar o dito como sendo a própria realidade. Por isso que uma denúncia social feita via arte tem mais vigor, já que penetra na memória das pessoas, nos marca a ferro e fogo. Vejamos: ninguém quer ver uma cena de retirantes fugindo da seca e passando fome, mas quando lemos isso em Morte e vida severina, quanta beleza! O sepultamento em precárias condições de um sem-terra, vítima de emboscada de latifundiário, não é coisa bonita de se ver; é sim uma vergonha, um absurdo perante um mundo civilizado. Mas olhe esta maravilha de poesia (e de denúncia) do João Cabral de Melo Neto: “– Essa cova em que estás, / com palmos medida, / é a conta menor / que tiraste em vida. / – E de bom tamanho, / nem largo nem fundo, / é a parte que te cabe / deste latifúndio. / – Não é cova grande, / é cova medida, / é a terra que querias / ver dividida.”. A poesia aí ganha um tom da oração de um terço em velório, porém com dizeres de alto teor simbólico e musical a serviço da beleza do discurso e da denúncia dos males da má distribuição de terra e de poderes no Brasil. Essa “oração poética” de Cabral termina com a imagem da terra (a sepultura) envolvendo o corpo do homem como se ela fosse uma mulher acolhendo-o em seu seio: “Se abre o chão e te envolve, / como mulher com que se dorme.”. Isso tudo não é beleza demais?!

Como você avalia o atual cenário da cultura no Brasil? Avalio-o pessimamente. A literatura é um caso à parte, porque são poucos os escritores que vivem de escrever, mormente num país de poucos leitores de literatura. Eu gosto de dizer que todos os escritores de verdade vivem para a literatura e que alguns, além de viverem para ela, também vivem dela. Mas muitos outros setores das artes, como o teatro, por exemplo, são o ganha-pão dos artistas, e agora esses artistas estão desassistidos.

Qual sua opinião sobre a “politização ideológica” da cultura no Brasil? Na verdade, tudo é político em nossa vida. Mas entendo quando você fala de “politização ideológica” da cultura em nosso país. A política entendida como ciência que estuda os sistemas políticos, as organizações e os processos políticos é algo maior do que os partidos políticos. Todos eles, os partidos, deveriam estar a serviço da democracia, da nação, de todos os indivíduos em suas especificidades. E nos últimos anos, principalmente de 2017 mais ou menos para cá, a cultura tem sido massacrada, pisoteada, e isso num país cujo histórico nunca foi muito favorável a ela. Se nos mais ou menos primeiros 15 anos dos anos 2000 a cultura começou a ganhar fôlego, por parte de fomento governamental, ela tem sido agora abandonada pelo atual governo. E, o que é mais terrível ainda, parte dos próprios discursos oficiais um menosprezo pelas artes. As culturas são várias, mas agora existe uma tentativa, no Brasil, de se amordaçá-las. Estão ressuscitando censuras.

A polarização política tem afetado a vida cultural no país? Com certeza. A vida cultural está sendo afetada e muito. Como todos os demais setores sociais. No caso da vida cultural, mordaças ideológicas são venenos mortais. Arte precisa de liberdade de expressão. E lembro que liberdade de expressão não é desrespeito ao outro. Tem havido controvérsias com relação a artistas humorísticos. Ora, o que as forças ideológico-opressoras não entendem é que o humor é justamente um discurso que caminha num fio de equilibrista, por tratar de brincar com (e de modo sério quando é bom humor) coisas muito melindrosas. Ora, fazer isso perante fanatismos, principalmente quando os fanatismos estão no âmago do poder, é oferecer o peito à bala, para usar aqui metáfora tão real e concreta num momento em que se defendem cegamente as armas. A literatura também apresenta discursos proscritos como os desses grupos de humor. O que acontece é que ela, a literatura, não tem visibilidade midiática como tais grupos. Reforço aqui as “flores” de Geraldo Vandré contra os canhões ideológicos e reais que estão sendo ressuscitados hoje no Brasil.

O distanciamento social tem exigido de todos nós adaptações no estilo de vida. As novas tecnologias, especialmente as redes sociais, têm encurtado distâncias e se tornaram ferramentas de trabalho. Qual o impacto disso na educação e na atividade literária? Penso que as tecnologias – fenômeno que já vem caminhando conosco há mais tempo – estão agora mostrando seu poder de socialização. Mas acredito que a sociabilidade do ser humano ainda carece do corpo. Precisamos estar uns com os outros, e todos, ou quase todos nós, estamos desejosos de que esta tempestade passe e voltemos a nos encontrar. Mas isto é fato sim: as distâncias são encurtadas pelas novas tecnologias. Até mesmo em se tratando de educação ou de literatura. Hoje se tem notícia de um autor ou de um livro pelas redes sociais. Aulas virtuais, bem ou mal, estão acontecendo. Resta saber se “ter notícia” é o mesmo que acessar de fato tal autor e tal obra e se, pelas aulas virtuais, crianças, adolescentes e jovens caminharão pela seara dos saberes com autonomia e com frutos.

Muitas pessoas preveem que as tecnologias digitais poderão substituir definitivamente o livro impresso, os jornais e revistas. Estamos vivendo uma revolução cultural digital? Os impactos dos meios digitais são inegáveis. Mas ainda fico com o pensamento do historiador francês Roger Chartier: os livros resistirão às tecnologias digitais. Para esse especialista na história da leitura, as tecnologias digitais podem se transformar em aliadas dos textos físicos por permitirem sua divulgação em grande escala. Veja bem: divulgar é uma coisa; substituir é outra. Ainda acredito que o prazer de se ter um livro nas mãos, de folheá-lo, de sentir sua materialidade – acredito que esse erotismo é muito caro a todos nós. E dificilmente os amantes de livros abandonarão essa experiência erótica.

O que você espera do mundo pós-pandemia? Espero um mundo melhor. Um mundo em que as pessoas enxerguem mais o nosso planeta, amando a ele e a tudo o que nele está: minerais, vegetais, animais, o ar e a água que nos são dádiva de valor incalculável. No meio desta pandemia fui convidado a escrever uma carta aberta à humanidade, texto esse que vai sair num livro cujo título é 2020 – Tempo partido. Para essa carta já escrita fiz uma pequena “pesquisa” sobre guerras, epidemias, pandemias e desastres/crimes socioambientais que já acometeram a humanidade. Tudo, quase sempre, é culpa nossa, culpa do modo como vivemos o mundo e com ele interagimos. No trato cotidiano, mesmo entre nós humanos, há muita coisa também para se melhorar. Que a dor de agora nos faça abrir os olhos. Ainda quero plantar e alimentar essa esperança, apesar de a história da humanidade mostrar-me o contrário desse meu sonho.

Comentários

  • Author

    Parabéns pela entrevista e pelo livro, confrade Evaldo. E viva o binarismo de "Inscrição no Deserto"!


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