Santa Maria e as lições para o futuro


Artigo

Renato Ruas Pinto*0

A tragédia da cidade de Santa Maria (RS), na madrugada do dia 27 de janeiro, abalou o Brasil. A saída de cerca de mil jovens para se divertirem numa típica noite de sábado terminou de forma desastrosa: 238 vidas perdidas e inúmeros jovens ainda em estado grave. Essas vidas poderiam ser salvas se alguns erros tivessem sido evitados. Nada que for dito e provado trará essas vidas de volta, ainda que a justiça seja aplicada aos culpados. Mas o que se pode aprender com esse episódio evitará que pais e irmãos, no futuro, chorem pela perda de seus entes queridos.

À semelhança de um acidente aeronáutico, a tragédia não teve uma causa única e sim uma sucessão de erros. Se ao menos um fosse evitado, as consequências seriam menores ou, quem sabe, tudo não passaria de um susto. Se o sinalizador não fosse aceso, não haveria fogo. Se o material do isolamento acústico não fosse inflamável ou não emitisse gases tóxicos, haveria algum pânico, mas nada de mais sério. Se a casa não estivesse superlotada ou se tivesse saídas de emergências adequadas – ou se a única saída não fosse bloqueada pelos seguranças – mais pessoas teriam se salvado. E podemos listar outros tantos “se”, mas não mudaríamos o rumo da tragédia.

Entretanto, se observarmos o acontecido com o “olhar da aeronáutica”, talvez possamos evitar desgraças desse tipo no futuro.

Todos sabem que hoje o avião é o meio de transporte mais seguro e com as menores taxas de acidentes. Também sabemos que os níveis de segurança atuais são decorrentes de um aprendizado lento e doloroso, cujo preço foi cobrado muitas vezes em centenas de vidas. Pode-se dizer que a segurança da aviação se apoia em um tripé composto de produto, manutenção e operação. E tudo isso cercado por uma regulamentação rigorosa, que atua em cada uma dessas três pernas.

O produto é a aeronave. Para voar, ela e seus componentes precisam atender a regras rígidas, que são demonstradas em longos ensaios de laboratório e inúmeras provas de voo antes de se voar com passageiros. Além disso, há um controle de qualidade rigoroso na fabricação. A manutenção são as ações preventivas e corretivas feitas ao longo da vida do avião, para garantir que todos os componentes estejam sempre em boas condições. Todos sabemos, por exemplo, do risco que corremos ao viajar sem fazer uma revisão dos freios. Por fim, a operação diz respeito aos procedimentos, rotineiros ou de emergência, desde o embarque dos passageiros até à decisão de se prosseguir ou abortar um pouso ou uma decolagem, em função das condições meteorológicas ou do próprio estado do avião.

Um problema em qualquer uma dessas pernas é suficiente para se derrubar o avião. Infelizmente, na história da aviação, muitas vezes os regulamentos e procedimentos que regem esse tripé só evoluíram após a perda de vidas. Como no caso da proibição de fumar nos banheiros (operação) e do uso de materiais que não emitem gases tóxicos (produto), que só se tornaram “regra” após o desastre, em 1973, do voo RG-830 da Varig, na rota Rio/Paris. A tripulação fez um pouso forçado em uma plantação de cebola nas cercanias de Paris, por causa da fumaça a bordo. Estavam a 5 km (ou um minuto) da cabeceira da pista de Orly. Morreram 123 pessoas, intoxicadas com a fumaça de um incêndio causado por um cigarro jogado no lixo da toalete. A aviação, porém, sempre tenta aprender com os seus erros e temos certeza de que, para cada vida perdida, muitas outras foram poupadas.

Em Santa Maria parece que se errou nos três quesitos acima. Usou-se um isolamento acústico que emitia gases tóxicos e o número de saídas de emergência não era adequado (produto). Extintores de incêndio não funcionaram e a suposta reforma deixou a casa fora de condições (manutenção). Em termos de “operação”, foram diversos erros: boate superlotada, saídas bloqueadas por seguranças, uso de fogos de artifício proibidos em um espaço fechado, além do fato de os bombeiros deixarem pessoas não treinadas e sem equipamentos participar do resgate.

Espera-se agora por uma correta investigação, para que todas as causas sejam apontadas e os envolvidos responsabilizados, sejam eles da banda, da boate ou mesmo do poder público, responsável pela fiscalização. O mais importante é adequar nossas leis sobre o funcionamento de casas de show para evitar que algo parecido se repita. Que se pense sempre em todos os aspectos de segurança: do projeto e construção do ambiente ao treinamento para funcionários sobre como agir em situações de emergência. Custa caro, sim, mas nenhum dinheiro pagará por uma vida perdida em acidentes que podem ser evitados.

*Engenheiro aeronáutico

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