Saúde mental em meio à pandemia

“O ano de 2020 veio como um bom exemplo de que é impossível ter controle de tudo. Em nossa condição humana, somos limitados.” (Mariana Resende)


Entrevistas

Vanuza Resende/André Eustáquio0

fotoA psicóloga Mariana Resende (foto arquivo pessoal)

Marcado por incertezas e perdas devido à pandemia do novo coronavírus, 2020 chegou ao fim. Um fim que deixa feridas abertas e também compromissos e metas a serem cumpridos. Para muitas famílias, o ano velho foi tristemente marcado por perdas e despedidas dolorosas de entes queridos vitimados por um vírus letal que mudou os rumos do ano e de centenas de milhares de pessoas em todo o planeta.

O Ano Novo chegou. É tempo de renovar esperanças de “vida nova”, de fortalecer expectativas e sonhar de novo. Mas será mesmo possível estabelecer metas e traçar objetivos para um ano tão imprevisível? Como lidar com possíveis frustações no decorrer de 2021?

JL conversou com a psicóloga resende-costense Mariana Resende sobre as perspectivas para 2021 e como superar as dores que herdamos de 2020 – um ano difícil e desafiador. Mariana é especialista em neuropsicopedagogia e tem aperfeiçoamento em avaliação e intervenção neuropsicológica.

 

O ano de 2020 foi atípico. Além das preocupações rotineiras com a saúde física, a saúde mental também demandou de nós muitos cuidados. Como você avalia o ano que terminou? O ano de 2020 ficará marcado na história, especialmente pela pandemia de Covid-19, que veio de forma inesperada e impactante para todo mundo. Foi um ano marcado por muitos desafios e perdas na perspectiva biopsicossocial. Tivemos dificuldades financeiras, de saúde física e mental. Muitas pessoas experienciaram o contato com as sensações de impotência, de ansiedade, medo, frustração e angústia. Grande parte da humanidade viveu o luto da perda de pessoas queridas, das quais nem puderam se despedir. Muitos projetos foram adiados e cancelados. Houve perda da credibilidade do ser humano diante de posturas oportunistas e individualistas, que se contrapuseram à solidariedade em relação ao sofrimento e à vida do próximo. Todavia, foi também um ano marcado por ganhos. Pudemos ver, por exemplo, muitas pessoas contaminadas vencerem o vírus e se recuperarem, a mobilização de profissionais de diferentes áreas a fim de disponibilizarem recursos para o enfrentamento da pandemia e para o bem-estar das pessoas, a união para reverter as perdas financeiras, o empenho das comunidades científicas de diferentes áreas com o objetivo de oferecer sua contribuição em prol do desenvolvimento da saúde coletiva. Muitas pessoas tiveram que reinventar suas atitudes nos âmbitos profissional e pessoal, descobrindo forças internas que acreditavam não possuírem. Foi um ano que nos permitiu perceber que uma andorinha sozinha não faz verão e que somos partes de uma sociedade. Por menor que seja nossa ação, pode ser de grande valia para a propagação do respeito e do cuidado com a vida.

 

Sentimentos são necessariamente experiências individuais. Cada pessoa lida com problemas e adversidades de forma particular. Diante, porém, da pandemia que atingiu todos, podemos falar de sentimentos coletivos? Em geral, quase todas as pessoas envolvidas em circunstâncias de fragilidade e imprevisibilidade em diferentes esferas, como as que a pandemia nos trouxe, experimentam algum tipo de alteração emocional. É possível que ocorram limitações para se adaptar ao novo contexto de vida e aos desafios trazidos por ele. Sentimentos de frustração, de tristeza, de medo e insegurança estão sendo frequentemente relatados pelas pessoas. Entretanto, o espírito de coletividade, que também foi eliciado pelas circunstâncias da pandemia, parece estar fazendo aflorar a solidariedade nas pessoas, contribuindo para o fortalecimento da empatia, da compaixão, da gratidão e da esperança. Mas como você bem disse, os sentimentos são muito individuais, cada pessoa tem experienciado de sua maneira os contextos trazidos pela pandemia de Covid-19.

 

É comum ouvirmos das pessoas que “tudo tem um lado bom”. É possível garimpar bons sentimentos de uma situação tão triste e desafiadora como uma pandemia? Acredito ser uma questão de perspectiva. A humanidade não conhecia o vírus que causa a Covid-19. Houve, portanto, necessidade de lidar com a imprevisibilidade e com a carência de adaptações para a rotina no trabalho, nos estudos, nos projetos de vida, nos eventos e no lazer. Também tivemos que elaborar estratégias para a promoção da saúde física e mental. As dificuldades podem, sim, nos fazer elaborar alternativas criativas de adaptação a um novo contexto. Nesse processo, ganhamos conhecimento de vida e passamos a valorizar o que é de fato importante para nós, como: dar valor à companhia de pessoas que amamos, à liberdade de ir e vir, à saúde... Enfim, valorizarmos pequenas coisas que em outro contexto poderiam passar despercebidas. Sentimentos como gratidão, esperança, autoconfiança, motivação e alegria podem nascer a partir da visualização de nossas conquistas em lidar com os desafios experienciados com a pandemia.

 

Já se tornou tradição na chegada de um novo ano as pessoas fazerem “listas” com seus planejamentos. Como elaborar projetos para 2021, se grande parte do que planejamos para 2020 não conseguimos fazer devido à pandemia? Dou relevância à reflexão que cada pessoa tem acerca do seu processo e do seu tempo. Respeitar isso é de suma importância para o estabelecimento de objetivos de vida. Momentos como esse, de contexto pandêmico, pedem priorização e foco no que pode ser feito no agora. Nada adianta gastarmos nossas energias em projetos futuros que não terão como ser implantados em nossas vidas neste momento. Por diversas razões isso pode levar ao esgotamento emocional. Imprevistos em planejamentos acontecem e, para lidar com eles, é importante a elaboração de metas conscientes, conectadas à realidade. Esse panorama contribui para um direcionamento sobre o que desejamos alcançar. Refletir sobre o que está dentro da nossa capacidade de controle e o que não está pode ajudar na elaboração de novas metas frente ao período de incertezas.

 

Como fazer planos e ao mesmo tempo evitar futuras frustações? A elaboração de um planejamento envolve perceber os recursos que temos, o que podemos gerenciar, quais são as necessidades, prioridades e desafios para a realização de um projeto. Através dessa construção, podemos ter uma visibilidade mínima do que pode dar errado. Entretanto, o ano de 2020 veio como um bom exemplo de que é impossível ter controle de tudo. Em nossa condição humana, somos limitados. Não temos, em minha perspectiva, como evitar a frustração, ela faz parte da vida. Mas podemos gerenciar o efeito nocivo para nossa saúde do excesso dela, reavaliando nossa postura frente à vida e nossas relações. Com a pandemia vieram dificuldades que não imaginávamos que iríamos vivenciar. É natural fazermos experiências de respostas emocionais, como ansiedades, medos, frustrações e tristezas quando percebemos algum risco e perdas, ou que alguma coisa não aconteceu da forma como gostaríamos que ocorresse. Essas respostas emocionais nos auxiliam a termos atitude de defesa e reação frente aos imprevistos, bem como a percebermos determinadas situações que não estão confortáveis para nós. Ou seja, aquilo que gostaríamos de modificar. Portanto, as emoções que não gostamos de sentir, como a frustração, são também importantes para nossa sobrevivência no mundo e em sociedade. Maior tolerância à frustração nos permite desenvolver capacidade de flexibilidade e de persistência, dando-nos oportunidade de nos adaptar a novos contextos e a também de lidarmos, da melhor maneira possível, com expectativas não correspondidas. Isso fortalece o nosso repertório de gerenciamento das respostas emocionais e a emissão de atitudes mais assertivas em nossa vida.

 

Em 2020, muitas famílias tiveram que se despedir, a distância, de familiares e amigos que não conseguiram vencer a Covid-19. Como lidar com esse luto? Acolher a dor sentida pela perda, especialmente em um momento em que o contato físico não é permitido, é muito importante. Diante desse contexto, o luto surge como uma reação necessária, normal, esperada e que cada um vivencia da sua própria maneira. O luto possibilita à pessoa elaborar o seu sentir para seguir com sua vida. É um processo que necessita de tempo para a pessoa se adaptar à perda e a todas as mudanças que vêm com ela. Para lidar com o processo de luto, é importante que se busque aceitar a nova realidade. Para isso, os rituais de despedida são de suma importância. No entanto, nesse momento alguns rituais não estão sendo possíveis. Mas é possível repensar alguns rituais de despedida, como, por exemplo, através da escrita de uma carta para a pessoa que faleceu. Fazendo isso, promove-se um “fechamento” do ciclo vivido junto a quem faleceu, expressando sentimentos que possam, de alguma forma, estar influenciando na dificuldade da elaboração do luto. Para ajudar uma pessoa enlutada, podemos ter algumas atitudes de primeiros socorros psicológicos. Por exemplo: buscar ter empatia sem julgar a dor do outro; evitar dizer expressões, como “isso vai passar”, “Deus sabe o que faz”, “era hora dele(a)”. Ao invés disso, procure oferecer frases acolhedoras, como: “você não está sozinho”, “estou aqui para o que precisar”, “sinto muito por você estar assim”, “há algo que posso fazer por você nesse momento?” Ofereça a escuta atenta ao que a pessoa tem a dizer. Caso o indivíduo não queira conversar, não tente minimizar a dor dele, respeite o seu silencio. Perceba se esse alguém está precisando de ajuda para realizar atividades do dia a dia, como ir ao supermercado ou à farmácia. Deixe-o chorar e permita que ele expresse sua dor. Fique junto a ele nesse momento difícil. Lembre-se de que estar junto não é necessariamente estar perto fisicamente. Esse amparo pode ser realizado através de uma chamada de vídeo pelo celular, por exemplo.

 

É possível fazer uma retrospectiva do que vivemos e que nos transformou em 2020, marcado pela pandemia? Gostaria de fazer uma reflexão em retrospectiva de tudo que experienciamos até aqui com a pandemia da Covid-19. O momento é transformador, o vírus nos cutucou do lado de fora, convocando-nos a (re)conhecer o lado de dentro, seja de nós ou de nossas casas. Foi necessário contato com o que antes poderia ficar para o amanhã. Foi preciso reger as fraquezas e desbravar forças que muitos não sabiam que tinham. O vírus convocou o ser humano a respeitar o tempo dos processos que não estão em sua possibilidade de atuação. O período exigiu de muitos a revisão do eu, dos valores, do mundo e das prioridades. Houve percepções de que “transformar coisas” não é só para especialista ou cientista; a vivência na prática tem seu jeito único de ser. O período de vírus solto pelo ar pode nos fazer desbravar com ousadia as possibilidades de resolução de problemas. Afinal, para sobrevivermos, muitas vezes temos que sentir medo e ir com medo para atravessarmos as pedras no caminho. O momento difícil pode nos ensinar a transformar dor em conhecimento de vida, a encontrar nossas potencialidades para explorarmos com coragem a força do ser dentro da sociedade humana e (re)conhecer o poder da união. A transformação pode não ser confortável ou agradável, mas amadurece o homem de alguma forma. O cenário mudou e nossas possibilidades de atuação nele também.

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