Teatro de quase 2000 anos marca a presença do império romano em Lisboa

O teatro romano ocupa um capítulo do livro "Viagem ao passado romano na Lvsitânia", lançado recentemente


Cultura

José Venâncio de Resende 0

Ruínas do Teatro Romano de Lisboa (5 fotos)

Um teatro romano de cerca de 2000 anos em Lisboa (antiga Olisipo), com capacidade para cerca de 4000 pessoas, ajuda a conhecer melhor como funcionava o jogo de poder no vasto império que estendia seus domínios até o território atual de Portugal. Para os romanos, o teatro tinha importância religiosa, política e de entretenimento. “O teatro representava um símbolo da romanidade, um marco do próprio culto imperial”, resume a historiadora e arqueóloga Lídia Fernandes*.

Atualmente, pode-se observar cerca de um terço da totalidade do monumento, edificado no início do século I depois de Cristo. O teatro ocupa uma área de pouco mais de 3000 metros quadrados, com estrutura semicircular adaptada ao declínio topográfico da Colina do Castelo de São Jorge na parte antiga da cidade. Situa-se a 47 metros do nível do mar entre as atuais ruas de São Mamede e da Saudade, não muito distante da Sé de Lisboa.

O teatro, em posição estratégica, foi construído nesse sítio para funcionar como uma marca do império romano e como função propagandística do poder, diz Fernandes que é diretora do Museu Teatro Romano de Lisboa. “Está numa colina de grande visibilidade, especialmente para quem chegava de barco.”

Socialização

Uma das justificativas para a construção do teatro era de cunho religioso. No início dos espetáculos, havia uma procissão de agradecimento aos deuses e, mais tarde, ao imperador que fora divinizado.

Em seu livro, Fernandes diz: “O trajeto, que culminaria na entrada no monumento cênico, aliaria a carga simbólica de participar num ato verdadeiramente público a um ritual de purificação que seria evidenciado pelo culto prestado ao imperador e família, aos deuses e outras personalidades. Templetes, inscrições votivas, estátuas de divindades e de autoridades imperiais estariam dispostos, comumente, ao longo das vias de maior trânsito”.

O teatro tinha ainda o propósito de ostentação e de contentamento do próprio povo. Cumpria uma função social, lembra Fernandes. “Toda a gente ia ao teatro, desde os escravos até às pessoas mais ricas. Eram até dois dias de festas onde as pessoas se mostravam e exibiam a riqueza que cada um tinha.”

Em seu livro, Fernandes descreve: “Todos tinham acesso de forma gratuita ao teatro, independentemente de serem escravos, libertos, homens ou mulheres, velhos ou crianças”, desde que obedecidas regras como em relação ao vestuário que “exigiam restrições inerentes ao bom-tom...”.

A autora prossegue: “No caso das franjas mais baixas da população, a roupa vestida para sair de casa, durante os dias de ludi ou em ocasiões festivas, em geral, não deveria ser muito diferente da usada quotidianamente. Contudo, a identificação do status era dada, em primeiro lugar, pela qualidade dos materiais envergados e não apenas pelo tipo de peças”. Assim, o “caríssimo algodão ou a preciosa seda”, “assim como a presença ou a ausência de riscas coloridas, de diferentes espessuras de tecido e a diversidade dos ornamentos, eram os primeiros elementos identificadores de riqueza”.

Em seu livro, Fernandes mostra que o teatro tinha uma estrutura arquitetônica, com as suas inúmeras bancadas, separadas entre si por largos corredores e as diversas escadas que permitiam subir e descer, o que facilitava a distribuição dos espectadores. “O resultado era uma circulação fácil e pragmática dos milhares de pessoas que ali acorriam”, tornando-se “um excêntrico lugar de socialização onde todos se viam e todos eram vistos”.

Peças longas

Ali eram representadas várias peças, sendo que as peças mais longas duravam cerca de duas horas. Eram sátiras, mas havia tragédias, comédias e os mimos (curtas apresentações nos intervalos). Por vezes, havia as sparsiones (distribuição de guloseimas no final).

Eis um relato no livro de Fernandes: “Um drama durava cerca de duas horas, durante as quais ninguém podia abandonar o seu lugar. Acabada a peça, quem queria podia sair antes do começo da peça seguinte”. Porém era díficil manter o público concentrado por tanto tempo. Segundo o poeta Horácio, citado pela autora, manter o público concentrado durante quatro hojas devia-se muito mais “ao espetáculo de ostentação e de fausto” do que propriamente à qualidade dos atores. Horácio chegou a comparar a multidão dos teatros a “um burro surdo, contra o qual nada valia a voz dos atores”.

O poeta, prossegue Fernandes, “não deixa de exprimir o seu desdém face ao público grosseiro e aos espetáculos cuja única finalidade eram a ostentação e o exagero, ao mero virtuosismo mímico e vocal dos atores, às danças e encenações puramente coreográficas, em que a palavra tinha sido substituída por bailarinos profissionais, que dançavam ao som da música”.

“Há que admitir – continua a autora – “que nem sempre as peças eram interessantes para o povo. A arraia-miúda, em Roma, apesar de aclamar Nero enquanto recitava, lamentava o fato de as suas representações serem demasiado extensas”. Uma solução seria “escapar às escondidas ou fingir ter tido uma repentina indisposição”.

Outras vezes as peças tinham conteúdo violento, com cenas de incêndio ou sangue no palco. “Muitos dos mitos da antiguidade foram retomados para serem representados em cena em toda a sua crueldade”, escreve Fernandes. “Vítimas privilegiadas foram os cristãos e os deliquentes condenados à morte, que vestiam o papel de contra-figuras, substituindo o ator no momento em que tinha de ser encenado o suplício.”

Segundo o biográfo Suetônio, citado pela autora, foi Nero quem inventou a claque. Eram equipes de jovens, os claqueurs, que no caso do imperador chegavam a cinco mil. Além de reforçar os aplausos, buscavam encobrir os murmúrios e criavam formas como bater as palmas com a concavidade das mãos (simulação de trovoada) ou com as mãos bem abertas (ruído semelhante ao de dois tijolos um contra o outro).

Entre as festas públicas consagradas aos deuses, encontravam-se as festividades dedicadas à deusa Flora, que aconteciam nos dias dos meses em que o desabrochar da natureza atingia o seu apogeu (entre 28 de abril e 3 de maio). “Foi esta circunstância que determinou também a peculiar licenciosidade e alegria que esta celebração implicava, a única entre todas que se limitava a colocar em cena o mimo, o gênero popular mais apreciado e que inclusivamente chegava a revestir-se de contornos lascivos e carnavalescos.”

Antes de voltar para a casa, os convidados recebiam apophoreta ou “presente para levar”, relata Fernandes. As sparsiones, ofertadas pelo organizador dos espetáculos, constituiam-se de figos, nozes, tâmaras, ameixas, queijo e pão, se fosse manhã, e comidas como pássaros , faisões e frangos, à tarde. Acompanhavam os alimentos as tesserae, bilhetes que podiam dar acesso a outros espetáculos ou a sorteio (prêmios como trajes e tecidos, pinturas, pérolas, objetos de ouro e prata, animais e mesmo propriedades).

Quando deixou de ser utilizado como teatro, o local foi sendo apropriado pela população da cidade, a partir do século V d.C., relata Fernandes. A partir do século XII, já não havia vestígios à vista do teatro, porque casas haviam sido construídas e pedras foram desviadas para outras construções.

Escavações

O teatro foi descoberto em 1798, por ocasião da reconstrução de Lisboa depois do terremoto de 1755, e novamente soterrado.

Em seu livro, Fernandes cita o arquiteto italiano Francisco Xavier Fabri e o jovem lisboeta Luís Antônio de Azevedo, que “ficaram para a posteridade no que respeita à descoberta das ruínas do antigo teatro de Olisipo”. Mas os “verdadeiros protagonistas do achado” teriam ficado desconhecidos não fosse “a busca incessável de um investigador”, Carlos Fabião, que, passados mais de dois séculos, “encontrou na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro um ´manuscrito I-32, 27, 017, n.º 003 (Colecção Portugal): relação dos primeiros desaterros realizados nas ruínas do teatro romano de Lisboa´”.

Por este documento, soube-se que, antes de Fabri e Azevedo, o também arquiteto Manuel Caetano de Sousa foi o real descobridor das ruínas e que Joaquim José de Costa e Sá foi o primeiro “teorizador sobre o tema”. Mas uma disputa entre os dois arquitetos e uma divergência quanto ao destino a dar a tais vestígios levaram ao soterramento do monumento.

A recuperação do monumento foi retomada a partir de 1964/67, quando se iniciaram os trabalhos arqueológicos, continua Fernandes. Foram descobertas parte das bancadas, a plateia, o muro de separação com o palco, parte inferior do mesmo e uma das entradas principais do teatro.

Na década de 1990, as pesquisas alargaram-se a outras estruturas. Várias campanhas arqueológicas foram realizadas entre 2001 e 2013, espaçadas no tempo e somando cerca de 10 meses de escavações, explica Fernandes. Foram feitas sondagens arqueológicas na área envolvente do teatro (na parte norte) e do museu (na parte sul).

Até maio de 2013, o espaço estava aberto ao público enquanto continuavam as escavações, conta Fernandes. Entre 2013 e 2015, foi fechado para se fazer a adaptação das áreas e a musealização das ruínas, resultando em nova exposição de longa duração com mais material e sobretudo conhecimento aprofundado do teatro romano.

Engenharia

Os edifícios do museu são mais recentes, posteriores ao terremoto (segunda metade do século XVIII - parte inferior - e século XIX), informa Fernandes.

Nas escavações na área correspondente ao museu, foram descobertas soluções de engenharia que permitiram a construção do teatro em área de grande inclinação.

No pátio do atual museu, por exemplo, foi encontrada uma estrutura – com cerca de nove metros de altura – que suportaria a fachada cênica do teatro, relata Lídia Fernandes. “Designada aquela por post scaenium, que significa, literalmente, por trás da cena, destinar-se-ia a suportar a elegante e elevada fachada cênica, virada, a norte, para o hemiciclo com as bancadas.”

Outras estruturas foram encontradas nas escavações, que são grandes muros paralelos à “contenção sul do teatro” (suporte da fachada cênica) e entre si, construídos para ajudar a vencer o desnível e a consolidar o terreno. “Um tecnologia muito pragmática e não muito complexa, mas com enorme investimento.”

Estes muros de contenção eram construídos de pedra e cimento romano (opus caementicium), este último muito resistente e que permitia rapidez na obra, não exigindo mão de obra especializada. Também na edificação do teatro foi utilizado o mesmo material.

Na edificação original, foi empregada técnica de utilização da matéria-prima local, que depois seria estucada e pintada, relata Fernandes em seu livro. “A fachada cênica era composta por grandes colunas talhadas no calcário pouco uniforme que abundava na encosta e depois revestidas por uma espessa camada de estuque que uniformizava a sua superfície.”

Mas nas obras de remodelação do teatro, cuja inauguração foi  no ano de 57 d.C., foi introduzido o mármore, por obra de Caius Heius Primus, “um augustal de Olisipo, um liberto que pertencia à família dos Heius, ou seja, um dos ramos de uma família de abastados comerciantes de origem itálica”. Caio conseguiu adquirir esta importância “porque atinge o cume a que a sua origem social lhe permitia aspirar: ser sacerdote do culto imperial”.

Dessa maneira, promoveu-se e consolidou “o seu estatuto de notável, atuando como benemérito da urb, ao contribuir generosamente para a renovação do teatro”. Ao mesmo tempo, promovia também o culto imperial, “atendendo ao papel dos edifícios teatrais como centros de difusão da ideologia imperial e de culto ao imperador”. A obra nova, moderna, “única”, foi dedicada por Caio ao imperador Nero, que sabidamente gostava de espetáculos. “Uma obra tão relevante só poderia ter como destinatário último o seu imperador, o imperador de todos os romanos.”

Antes do teatro

Para além de informações sobre o teatro, o museu reúne vestígios de épocas mais antigas, mesmo anteriores à chegada dos romanos, observa Fernandes. As intervenções arqueológicas na área do teatro registram, por exemplo, a ocupação humana durante a Idade do Ferro (século VIII a.C. ao século III a.C.) e durante a época republicana (século II a.C.) quando da chegada dos primeiros contingentes militares à região de Lisboa.

Lisboa tinha  o nome indígena de Olisipo, conta Fernandes. Entre 31 e 27 antes de Cristo, com a conquista romana, a cidade  passou a ser denominada Felicitas Iulia Olisipo. Em 16 a.C, integrou-se à recém-criada Lusitânia.

“A riqueza da cidade de Olisipo e do seu territorium, sobretudo piscícola mas também agrícola, permite a exportação de múltiplos produtos facilitada que está pela privilegiada posição geográfica que detém. Olisipo depressa se transforma na capital marítima da Lusitânia. O reconhecimento de inúmeras fábricas de transformação de pescado, distribuídas na orla ribeirinha, comprova o dinamismo desta atividade econômica e de outras subsidiárias, como a produção de cerâmica para o envase dos produtos.”

É nesse contexto que foi construído o teatro, em local de acentuado declive defronte ao rio Tejo. Tinha o propósito de simbolizar o poder de Roma, “criando uma paisagem arquitetônica inconfundível aos olhos de todos quanto ali aportavam”.

Visitas

O museu recebe uma média mensal de 1500 visitantes, com maior afluxo no período de abril a setembro quando esta média sobe para cerca de 2000 pessoas/mês. Isto ocorre por causa da maior presença de turistas.

Grupos de mais de 10 pessoas, sobretudo escolas, podem solicitar visitas guiadas. Em geral, os visitantes nacionais, inclusive alunos, frequentam o museu a partir de setembro.

*Viagem ao passado romano na Lvsitânia, editora A esfera dos livros, Lisboa, 2016

LINK RELACIONADO:

Museu do Teatro Romano de Lisboa - http://www.museudelisboa.pt/equipamentos/teatro-romano/

 

 

 

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