“Vozes transcendentes”


Cultura

Regina Coelho0

Roda de conversa com a autora Larissa Moreira, o advogado Matheus Junqueira (esq,) e o professor Alberto Tibaji (dir.) (Foto André Eustáquio)

“Eu observava a potência desse movimento musical que conta com vários artistas trans e percebia que havia um fio condutor dessa galera. Quando a Hoo Editora me convidou para fazer um livro a respeito dessa cena, inicialmente tive um certo receio porque o livro seria de uma mulher cis falando de um universo de pessoas trans e travestis. Então, primeiramente, precisei criar uma relação de confiança e de amizade com os artistas, ver seus shows e os bastidores. Já no processo das entrevistas percebi que seria muito mais interessante transformar essas entrevistas, que são lindas biografias, em crônicas em primeira pessoa. Sou um vetor dessas vozes e apenas as conduzi. O lugar da fala não é meu. Fiz a transcrição, adaptei as entrevistas e encaixei letras de músicas de artistas em meio aos relatos.”

O trecho acima, extraído de uma entrevista publicada pelo jornal O Tempo no dia 11/3/2018, é a resposta de Larissa Ibúmi Moreira à pergunta do jornalista Thiago Prata sobre os objetivos e desafios dela na concepção de sua obra Vozes Transcendentes: os novos gêneros da música brasileira.

A resende-costense Larissa nasceu em 1992. É historiadora graduada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente realiza pesquisas na área de História da África e dos afrodescendentes no Brasil, além de desenvolver temas como feminismo negro e identidades de gênero na música brasileira. Assim é apresentada a jovem autora na contracapa do seu Vozes..., cujo lançamento em Resende Costa aconteceu no último dia 25 na Biblioteca Municipal.

Espaço decorado com as cores da diversidade, cadeiras dispostas em círculo para o bom público presente, o evento foi aberto com a fala de Lucas Lara, secretário municipal de artesanato, cultura e turismo da cidade, em apresentação da proposta do encontro daquela tarde. Em perfeita sintonia com o momento, numa prévia do que viria, o que se viu e principalmente se ouviu a seguir foi uma pungente interpretação da música Flutua, de Johnny Hooker, um dos 14 artistas autorretratados no livro, todos eles fazendo, portanto, uso da 1ª pessoa em cada biografia. Dando voz aos versos de Hooker, artista que na versão original dessa canção contou com a participação de Liniker (também presente na obra de Larissa), Lucas Lara e Matheus Junqueira deixaram fluir um canto misturado de emoção, tendo como acompanhamento ao violão Ângelo Márcio Resende. A melodia embalando e vivificando versos como estes: “Um novo tempo há de vencer / Pra que a gente possa florescer / E, baby, amar, amar sem temer/ Eles não vão vencer/ Baby, nada há de ser em vão/ Antes dessa noite acabar / Baby, escute, é a nossa canção/ E flutua, flutua”.

Em prosseguimento à programação estabelecida pelos organizadores da tarde/noite, Edésio de Lara Melo, presidente da Amirco (Associação dos Amigos da Cultura de Resende Costa), discorreu sobre os propósitos do trabalho da autora e o sucesso na internet de muitos artistas, alguns deles mostrados no livro e para os quais, por questões de gênero e de orientação sexual, a invisibilidade em relação à sociedade em geral ainda é gritante.

Nas palavras iniciais da escritora Larissa Moreira, os destaques foram a emoção confessada pelo momento ali vivido e o agradecimento à avó Inácia, figura onipresente na vida da neta. Considerações a respeito do processo de criação de seu Vozes... vieram à tona, como, por exemplo, o aproveitamento da História Oral, metodologia que consiste, grosso modo, na escuta conduzida da trajetória de vida da pessoa entrevistada. Uma ferramenta importante, segundo ela. Ao mencionar Raquel Virgínia e Assucena Assucena, suas colegas de faculdade, de quem se tornou amiga e são artistas da nova cena musical brasileira, Larissa revelou ter presenciado a transição de gênero delas. E relembrou a metáfora da Geni para dizer que hoje ela está no palco contando sua própria história, referindo-se à celebre personagem travesti da Ópera do malandro (1978), de Chico Buarque. Descontextualizada da peça, ela é vista como a prostituta hostilizada e marginalizada da música Geni e o Zepelin, do mesmo autor. Na comparação, a evidência de hoje: o espaço da música no Brasil comporta artistas de todos os matizes, com todas as suas formas de existir. Mesmo reconhecendo conquistas, ela afirmou haver ainda, ao mesmo tempo, “uma onda de conservadorismo” nos dias atuais.

A roda de conversa que se formou em torno da temática ali proposta contou com a participação do advogado Matheus Junqueira (de Lavras), autor de pesquisa sobre justiça e reconhecimento dos direitos LGBT, e do professor Alberto Tibaji, do Curso de Artes Cênicas da UFSJ, numa interação muito positiva com a plateia. Intervenções e depoimentos pessoais relacionados às questões do dia a dia voltadas para a constituição de uma sociedade livre e inclusiva ganharam espaço importante entre os presentes, que puderam ver também uma apresentação performática feita pelo estudante e dançarino Gabriel Ferreira Lima, 18 anos.

Por fim, vieram os cumprimentos à escritora e a dedicatória dela nos exemplares vendidos, numa reunião literária já memorável em Resende Costa pelo ineditismo do encontro e pela exposição do trabalho corajoso de Larissa, para quem “transcender o preconceito é uma atitude cristã, de amor, de respeito”.

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