Eu, antes de mais nada, sou um amante das coisas da minha terra Aluízio José Viegas (1941/2015)


Homenagem Especial

Edésio de Lara Melo*0

fotoAluizio Viegas recebeu a Comenda da Liberdade e Cidadania na Fazenda do Pombal, no dia 13 de novembro de 2011. Foto Beatriz do Carmo Brighenti Viegas

Faleceu no último dia 27 de julho, aos 74 anos de idade, o músico são-joanense Aluízio José Viegas. Aluízio encontrava-se adoentado e internado em hospital de Nova Lima, na grande Belo Horizonte, a capital mineira. Foi enterrado no Cemitério do Carmo da cidade de São João del-Rei no dia seguinte, depois de missa de corpo presente celebrada na Catedral Basílica Nossa Senhora do Pilar pelo pároco padre Geraldo Magela e outros três vigários, com a música tocada e cantada pelas centenárias Orquestras Ribeiro Bastos e Lira Sanjoanense. Depois o corpo seguiu cortejo ao som plangente dos sinos das igrejas, tendo sido recebido pela Irmandade do Carmo que o conduziu até a sepultura, momento em que se ouviu o Miserere de Manoel Dias de Oliveira, interpretado pela Ribeiro Bastos.

Dedicou-se Aluízio, ao longo da vida, a trabalhos junto à Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar e ao estudo da história da música são-joanense e arredores e da sua divulgação. Aluízio era como uma enciclopédia, repleto de informações. Era simples, bem humorado e franco. Não se sentia um musicólogo, como disse o amigo e musicólogo Paulo Castanha (Unesp) em homenagem que lhe prestou no Facebook. Porém, boa parte do conhecimento que temos do que restou da música escrita em Minas Gerais para coro e orquestra desde meados do século XVIII e, posteriormente, para banda, devemos a ele.

Durante minha pesquisa no mestrado, entre 1999 e 2001, eu o procurei em busca de ajuda. Marcamos encontro na sede da Lira Sanjoanense, onde ele atuava como regente e arquivista, no mesmo lugar em que seu corpo foi velado. A conversa, no dia 24 de julho de 2000, foi longa e produtiva. Naquele dia ele me contou, em detalhes, parte da história de sua vida.

Aluízio, 12º filho de família numerosa, gostava de que o José, de seu nome, fosse realçado: significava muito para ele. Seu envolvimento com a música, ele o teve como herança de família, puxou ao pai, um compositor e flautista modesto, segundo disse. Aluízio começou a estudar música aos 18 anos. Ele bem que tentou iniciar antes, mas “houve uns momentos críticos de família – meu pai era empregado público estadual – e os recursos para manter uma família numerosa eram difíceis”, afirmou.  Aos 7 anos participou da sua “primeira Semana Santa, ajudando na limpeza da prata e depois ajudando, vestido com opa do Santíssimo Sacramento”. A proximidade com a Igreja foi determinante para suas atividades artísticas e profissionais em São João. E intensificou a partir do momento em que seu pai adquiriu uma casa geminada na Rua Santo Antônio. Pouco tempo depois o outro lado foi ocupado pela Lira Sanjoanense, fundada em 1776, com atuação intensa nas igrejas do Carmo e Pilar, principalmente. Os ensaios semanais das novenas e os cursos de música foram como isca para Aluízio, que logo manifestou desejo de fazer um curso de contrabaixo na orquestra. Sobre o seu primeiro contato com o professor de música, Aluízio disse o seguinte: “Quando ele falou que eu não tinha o tamanho necessário para começar a tocar contrabaixo, me acomodei. Quando eu fui me manifestar, já por vontade própria, achando que tinha o tamanho necessário para começar a estudar o contrabaixo, o professor com quem eu comecei, falou: ‘vamos começar primeiro com o violoncelo, depois se você tiver jeito para o contrabaixo, a gente passa para o contrabaixo, porque eu não tenho contrabaixo. Violoncelo, você vai tomar aula lá em casa. Contrabaixo, eu vou precisar de vir aqui na sede e eu não estou animado a fazer isto’. Então eu iniciei no violoncelo com o Francisco de Assis Carvalho, mais conhecido como Juju”.  Juju era ex-combatente e o trauma surgido no pós-guerra o deixou com dificuldades de manter regularidade nos compromissos. Por isso as aulas eram constantemente interrompidas. Em certo momento o professor lhe disse: “você tem jeito pra tudo, menos pra música”. Foi por isso que, em 1959, Aluízio comprou um violoncelo em Lavras/MG, para reformá-lo em São João e, então, começar a estudar sozinho. “Comecei a estudar particularmente; eu mesmo me dando aula”, disse.

A partir daquele momento, tocando na orquestra e começando a ouvir gravações em disco e obras de autores mineiros recuperadas por Francisco Curt Lange, nasceu o seu interesse pela pesquisa em música.  O desejo e envolvimento com a pesquisa chamou a atenção do maestro Pedro de Souza, que Aluízio tinha como segundo pai. Ao lhe entregar as chaves do arquivo, sob o protesto dos músicos e da diretoria, o maestro comentou: “Oh, eu vejo no Aluízio a continuidade. E de fato, ele me entregou a chave da sede, mas, antes, ele me aconselhou, com aquele conselho sábio: ‘Oh, isso é patrimônio de uma entidade, não é patrimônio particular não. Então eu espero de você o zelo que eu tenho e que seja continuador dele’. Então eu passei a ser para ele, de fato, o auxiliar imediato, copiando novas partes, preservando os manuscritos e os manuscritos mais antigos. Então iniciei aquilo que eles não faziam: comecei a fazer montagem das partituras a partir das partes individuais e eu posso ter até um justo orgulho. Eu fui o primeiro brasileiro a montar uma partitura de uma obra de Manoel Dias de Oliveira”, confessou Aluízio.  

Apesar de nunca ter feito curso superior, a competência e dedicação o fizeram respeitado no Brasil e exterior. Chegou inclusive a ser convidado pelo padre-compositor Jaime Diniz, da Academia Brasileira de Música, para se mudar e ajudar a criar o Instituto de Musicologia da Universidade Federal da Bahia. Segundo disse Jaime Diniz, Aluízio tinha uma coisa que a universidade não ensina: o senso inato do pesquisador.“Você tem um faro impressionante para descobrir as coisas. Você tem a escola prática e quando o aluno sai da universidade, com o estudo teórico, ele vai dar na falta da prática e isso você já tem”,disse-lhe o padre,em 1963. O projeto só não foi adiante devido às dificuldades enfrentadas por todos a partir da revolução de 31 de março do ano seguinte.

Fato é que Aluízio permaneceu em São João, para reunir amigos, em especial Geraldo Barbosa de Souza, Antônio Carlos Rossito e José Lourenço Parreira e tocar em seus instrumentos o rico repertório guardado na Lira, manter contato e trocar informações com musicólogos importantes como Cléofe Person de Matos e Francisco Curt Lange, dirigir ensaios e concertos da Lira, auxiliar Monsenhor Paiva na matriz e, acima de tudo, receber interessados em saber mais do passado musical mineiro. Assim, ao longo de sua vida, além de guardião de um dos mais importantes arquivos de música antiga brasileira, foi verdadeiro mestre para aqueles que o procuraram em busca de ensinamentos, informações e documentos. Caberá agora ao seu sucessor observar as advertências deixadas pelo maestro Pedro de Souza e seguidas à risca por Aluízio, de bom guardião do valioso arquivo da Lira Sanjoanense.

 

 

*Professor adjunto do Curso de Música da Ufop

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