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Minhas caras

23 de Agosto de 2023, por José Antônio

Era um jantar de réveillon. Ela era minha namorada e eu estava jantando em sua casa. Aquela porção de gente, muita comida, falatório alto, abraços festivos, bebida a rodo, música animada... E todo mundo esperando o Ano Novo, como se o novo ano tivesse alguma coisa a mais do que o Ano Velho.

Curto o réveillon, participo da festa, abraço todo mundo, desejo alegrias pra quem chega perto de mim... mas tudo não passa de mais um dia após o outro. O calendário é uma invenção. E como a gente inventa em cima do calendário! Reinventamos o calendário a cada ano. Tem que ser assim, senão a gente não esquece que ele é apenas uma convenção matemática.

Voltando ao jantar na casa da minha namorada, lá pelas tantas a minha ex-futura-sogra interrompeu a conversa do meu ex-futuro-sogro para dizer que iria fazer uma foto de todo mundo ali. E toca todo mundo a ajeitar cabelo, esticar camisa, estufar o peito, ensaiar sorrisos... Germes remotos de um inocente fotoshop.

– Venha também, afinal você já é da família. – era o meu ex-futuro-cunhado, já me integrando à minha ex-futura-clã.

Como ainda não havia máquina digital nem celular com câmera, o negócio era confiar nos critérios estéticos do retratista:

– Vou bater outra, o Fulano saiu dormindo. Ih, cara! Vou bater de novo, a Beltrana tampou o Sicrano. Lá vai... atenção... tira essa jarra aí da mesa, está atrapalhando... Vocês querem de corpo inteiro ou só da cintura pra cima?

Também fiz o meu fotoshop rústico, criando um espelho em minha imaginação, mas...

– Não, cara! Você está que nem retrato três por quatro. Abre um sorriso.

Abri o sorriso e tenho certeza de que fiquei com cara de idiota.

– Pensando bem, é melhor você não sorrir. Procure uma posição natural. Abrace alguém.

Abracei o avô da namorada e o homem fez que nem pêndulo: foi e voltou numa perna só. Bêbado.

– Quer saber de uma coisa? Eu vou bater várias fotos e aí você faz caras diferentes. Se não for assim, o negócio não desanda.

E a cada flash eu montava e desmontava uma cara diferente. Fiz cara de intelectual, festeiro, Napoleão, atleta, triste, turista, detetive, sargento... Na última eu estava com cara de toureiro.

Nunca vi o resultado. Com o tempo, o namoro terminou. Com o tempo, muitos outros réveillons se passaram. Com o tempo, eu fui me esquecendo daquilo tudo.

Com esse mesmo tempo, eu reencontrei a minha ex-namorada casualmente na rua. Mais amadurecida e acompanhada de uma garotinha: sua filha. Pois é... quanto tempo... é mesmo... e aí?... vou bem... sua filha?... linda, igual à mãe... tem mais filhos ou é só ela?... Até que o assunto caiu no maldito jantar do réveillon.

– O pessoal lá em casa ainda pergunta por você. Inclusive tem umas fotos em que você está. Lembra-se daquele réveillon?

Foi então que a menininha arregalou os olhos e disparou:

– É ele, mãe? Ele é o homem das mil caras? O pior é que nenhuma das mil presta.

A mãe só tinha uma cara... e não sabia onde enfiar. Eu, por minha vez, não tinha mais cara: já tinha queimado todas as minhas caras naquele jantar. O negócio foi dar um sorriso de miss: forçado, montado, ridículo e sonso.

Fui embora. Olhei pra trás e ainda vi a minha ex-futura-esposa dando um safanão no bracinho da minha possível-ex-futura-filha. Ainda bem que não me casei com ela. Com que cara eu iria pedir a sua mão?  

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