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Fernando, Hélio, Otto e Paulo

23 de Agosto de 2023, por Regina Coelho

“Conheci Hélio Pellegrino no jardim de infância, aos seis anos de idade. Fizemos juntos o curso primário no Grupo Escolar Afonso Pena.

Andamos separados durante o curso de admissão. Fiz o meu com dona Benvinda de Carvalho Azevedo, grande professora, famosa pela sua competência: até hoje sei de cor a lista das preposições e, a bem dizer, tudo mais que aprendi com ela. No Ginásio Mineiro Hélio e eu nos reencontramos e desde então não nos separamos mais. Mesmo ele tendo ido estudar Medicina e eu Direito.

Meu primeiro encontro com Otto Lara Resende se deu bem mais tarde. Era um rapazinho meio introvertido, que vi pela primeira vez na casa do Etienne (João Etienne Filho, escritor e jornalista mineiro) – o que me emprestava livros.

Ele me contaria depois que ficou impressionado porque eu conhecia marcas de automóvel, era campeão de natação e só falava futilidades. Nesse primeiro contacto não tivemos o que dizer um ao outro.

Mas à noite nos encontrávamos na Folha de Minas – onde eu já trabalhava, escrevendo reportagens sobre tiro aos pombos, coisas assim – juntamente com Hélio, de quem ele já se tornara amigo.

Eu o havia encontrado antes e não me lembrava. Foi no meu tempo de escoteiro. Ele também era escoteiro em São João del-Rei, e veio numa delegação nos visitar, na associação de Belo Horizonte. Na nossa sede havia um fio elétrico desencapado junto ao soalho, e a brincadeira era pisar onde dava choque e passar o choque para quem nos segurasse a mão.

(...)

A primeira vez que vi Paulo Mendes Campos foi na varanda da casa do cônsul inglês, durante uma festa em que eu havia entrado de penetra (provavelmente ele também) para ver a namorada. Eu já havia reparado naquele menino de cabelo caído na testa, que passava o tempo todo de lá para cá, empatando o nosso namoro. Não me lembro como começamos uma discussão sobre literatura, cada um querendo mostrar mais conhecimento que o outro. (...)

Morávamos à distância de um tiro de escopeta uns dos outros. (...) Andávamos dia e noite, conversávamos muito (...). Havia um banco na Praça da Liberdade, o nosso banco, primeiro da direita, onde invariavelmente encerrávamos a noite, às vezes já nascendo o dia.

(...) No que completei 17 anos, (o pai) conseguiu para mim um emprego de funcionário público na Secretaria de Finanças, que era em frente à nossa casa: eu precisava de uma colocação, como se dizia, fosse qual fosse. (...)

Meus amigos também já trabalhavam. Hélio Pellegrino, estudante de Medicina, distribuía amostras de remédio nos consultórios médicos. Eu vivia às voltas com uns relógios elétricos de parede que o representante em Belo Horizonte me entregava para tentar vender. Otto Lara Resende dava aulas e era funcionário da mesma Secretaria das Finanças. Paulo Mendes Campos era da Saúde Pública. Como em geral acontece, o emprego não tinha nada a ver conosco.

(...)

Eu ganhava salário mínimo, como funcionário. Fui promovido a oficial de gabinete da Secretaria da Agricultura depois que fiquei noivo da filha do governador (Benedito Valadares), aos 18 anos. Quando me casei, nomearam-me serventuário de justiça no Rio de Janeiro, para onde me mudei no mesmo dia.

(...)

Eu sentia falta dos meus amigos de Belo Horizonte, mas eles foram vindo em seguida – primeiro Paulo, depois Otto. Hélio só veio mais tarde.

(...)

Éramos e continuamos sendo, intransigentemente contra as convenções e conveniências, a começar pela institucionalização de nossa amizade. Tanto assim, que nunca conseguimos fazer juntos nada de útil, com a graça de Deus. Nunca fomos sócios em coisa alguma. Por isso mesmo, fazemos questão de não levar a amizade muito a sério. Exatamente por saber que assim é que ela foi e continua sendo fundamental para a nossa vida.”

O Fernando do título desse artigo é o autor dos fragmentos acima, compilados do exemplar de “O tabuleiro de damas”, que adquiri mediante a presença da Guinha (irmã) no lançamento desse livro em BH, com a seguinte dedicatória de Sabino, cujo centenário de nascimento se celebra neste 2023.

A Regina Coelho

com um afetuoso

abraço do

                Fernando Sabino

                      12/5/88

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