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Inspiração

25 de Janeiro de 2024, por Regina Coelho

“Quem tem fome tem pressa”. de mãos dadas com o bispo paulista Dom Mauro Morelli, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho (1935 - 1997), criou a frase que serviria de slogan da seminal Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria pela Vida, criada nos anos 1980. O movimento, bonito e fundamental, ajudou, se não a resolver, ao menos a iluminar um problema trágico do Brasil, o da insegurança alimentar, que ainda hoje é uma sombra incômoda. Morelli desde a juventude, logo depois de se formar em filosofia e teologia, se dedicou ao tema, tão próximo dos fiéis que o buscavam na diocese de São Paulo, no início dos anos 1970, como bispo auxiliar de Dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016).

   A partir de suas experiências, Morelli ajudou a criar o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional durante o governo Itamar Franco (1993-1994) e o Fome Zero do primeiro mandato de Lula. Em maio de 1981, foi nomeado como o primeiro bispo da então criada Diocese de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Ele morreu em 9 de outubro (2023), aos 88 anos, em Belo Horizonte.

(Seção “Datas”, Veja, 13 de outubro de 2023)

 

Ativista dos direitos humanos, Betinho morreu antes. Mineiro de Bocaiúva, desde a infância teve a saúde frágil. Hemofílico como seus irmãos Henfil (cartunista) e Chico Mário (músico), ele tinha de se submeter frequentemente a transfusões de sangue em razão da hemofilia, uma condição hereditária que se caracteriza por hemorragias precoces, abundantes e prolongadas. Formado em Sociologia e Política de Administração Pública pela UFMG, ergueu a bandeira da transformação social voltada para o sentido do coletivo e da congregação. Após o golpe militar de 1964, atuou em organizações de combate ao regime político recém-implantado na época por aqui, motivo pelo qual foi exilado, indo morar primeiramente no Chile e depois, no Canadá e no México. Foram sete anos na clandestinidade e oito no exílio. Em 1979, com a anistia política, Betinho retornou ao Brasil.

Mencionar esse momento é lembrar a belíssima música O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, composta um ano antes e eternizada na voz de Elis Regina. A respeito dessa composição, João Bosco conta que, inicialmente, a ideia era fazer uma homenagem a Charles Chaplin, que havia morrido pouco tempo antes, no Natal de 1977. Mas seu parceiro musical lhe sugeriu, por conta do período sombrio de repressão que ainda se vivia no país, que fosse criado na letra um personagem chapliniano falando, através de metáforas, da condição dos mortos, torturados e exilados pela ditadura. A menção ao Brasil “que sonha com a volta do irmão do Henfil,/ com tanta gente que partiu/ num rabo de foguete” representou o anseio pela abertura política, mais tarde referendada pela lei que concedeu anistia aos perseguidos políticos e abriu caminho para o retorno da democracia brasileira.

Sonho de tantos concretizado com o retorno de Betinho e muitos outros anistiados à “nossa pátria, mãe gentil”, o cidadão Herbert de Souza voltou à luta, dessa vez engajado em várias e diferentes frentes de trabalho voltadas para a sociedade e promovendo uma verdadeira mobilização nacional em favor do seu projeto contra a fome e a miséria. O que ainda hoje é uma situação dramática vivida por milhões de brasileiros, é verdade, mas com a atenção já despertada lá atrás por gente como Betinho e Dom Mauro, para o seu enfrentamento.

Sobre os filhos de dona Maria (famosa pelas “Cartas da Mãe”, de Henfil) aqui nominados, as histórias são parecidas. Tendo driblado a morte por muito tempo e cada um obtido reconhecimento profissional e respeito também pela profunda preocupação social demonstrada em seus respectivos trabalhos, os irmãos hemofílicos acabaram contraindo o HIV em transfusões que não foram bem-sucedidas e sucumbiram. Fica a inspiração. Inspiração para as essenciais causas coletivas e para os nossos acalentados projetos pessoais.

E uma dica, a (re)visitação à vida e obra desses três irmãos de sangue na dor e no amor.

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