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Uma palavrinha só

26 de Julho de 2023, por Regina Coelho

certas palavras parecem se casar harmonicamente com outras e viram até um par, em alguns casos, um trio, quando as duas se unem através de uma preposição ou contração. E como já andam juntas com frequência, nem temos o trabalho de aproximá-las, pois já vêm prontas para uso comum dos falantes. Vejamos: arrepender-se amargamente, cabedal de conhecimentos, considerações iniciais (ou preliminares), céu de brigadeiro, chuvas torrenciais, denominador comum, derrota fragorosa, detalhes sórdidos, discussões acaloradas, fiel escudeiro, inverno rigoroso, leve (ou ligeira) impressão, manjar dos deuses, mar de lama (em sentido figurado, ambiente ou situação de grande degradação moral), morte trágica, mínima ideia, ódio mortal, palpite (ou ideia) infeliz, providências cabíveis, punição exemplar, requintes de crueldade, rigores da lei, sol escaldante (ou inclemente), viagem dos sonhos, vitória acachapante, entre outras construções linguísticas.

Mãos de fada, memória de anjo (ou de elefante = m. excelente), memória de galo (= m. fraca), memória prodigiosa, ouvido absoluto (de quem possui a capacidade de identificar a nota musical de qualquer som, musical ou não, sem precisar de uma referência prévia), ouvido de tuberculoso (= o. apuradíssimo) e voz aveludada (= v. macia) são mais alguns exemplos nessa lista, dessa vez, usados para ressaltar alguma característica ou condição do ser humano.

Ficaram de fora da relação acima, porém, algumas falas que, por hábito ou por desconhecimento, muitas pessoas usam de forma indevida, redundante, repetitiva em termos de significado. Então, se toda certeza é absoluta, se todo consenso é geral, se todo elo é de ligação e se todos detalhes são pequenos, fiquemos só com a certeza e entremos no seguinte consenso: o elo entre as palavras é importante, mas com detalhes a considerar, como o sentido dessa formação linguística, por exemplo.

Pode-se dizer, seguindo um outro caminho, que existem palavras enganosas, que provocam confusão em muita gente. “Luxúria”, que é um dos sete pecados capitais, significa o excesso de busca pelos prazeres carnais e, como se vê, não tem qualquer relação com luxo. Uma outra é “pernóstica”, de ligação zero com a palavra perna. Uma pessoa pernóstica é alguém afetado, pedante, petulante. O termo “reacionário” está ligado etimologicamente ao seu primitivo termo, reação, mas, diferentemente do que se pode pensar, ser reacionário é ser contrário às ideias voltadas para a transformação da sociedade.

Existem aquelas palavras também que, dependendo da situação, caracterizam o que muitos definem como “falar difícil”. São as usadas, seja por dever de ofício, gosto pessoal, conhecimento acadêmico mais conservador ou vaidade em demonstrar erudição. No grupo das difíceis somente na escrita e/ou na pronúncia, estão palavras como “competitividade, meteorologia e subliminarmente”. E há as que chegam a ser ainda um desafio de letras e sílabas corretas e um esforço para que não se comprometa a boa dicção, sem que a pessoa se enrole com a própria língua, como “transubstanciação”.

Das difíceis para as consideradas bonitas, são as palavras que pela aproximação de fonemas e letras (o seu significante, o seu lado material) ao conceito (o seu significado) se completam numa linda união. Encontramos, pois, beleza nas palavras pelo que elas significam: paz, alvorecer, luar, esperança... E o contrário ocorre na mesma medida quando determinadas formas de expressão da língua entram na lista do que não se deve falar, na verdade, por razões sem fundamento, como o de que pronunciar simplesmente certas palavras atrai coisa ruim e de que exemplo maior a palavra “câncer”. “Azarado”, “desgraça”, “maldição” são outras das quais muitos querem distância, nesse específico caso, uma questão de superstição.

Superstições à parte, não se pode negar o grande poder das palavras, mensageiras de nossos pensamentos e sentimentos. Bem a propósito são estes versos de Cecília Meireles: “Ai, palavras, ai, palavras,/ Que estranha potência, a vossa!”.

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