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Dois de Novembro

25 de Outubro de 2023, por João Bosco Teixeira

Celebrar a morte é celebrar a vida.

Não sei se faz sentido refletir sobre esse absurdo filosófico, “quando a morte de cada um já está em edital”. Quando se sabe que “O homem não nasceu para morrer. Mas para viver sua vida como um poema, sempre nascendo e renascendo”.

É verdade que a morte está o tempo todo acontecendo, sob mil pontos de vista. Mas a vida também acontece, sob mil pontos de vista.  É que elas são inseparáveis.

Faz-me muito sentido celebrar a morte, dado que ela se constitui na única verdade histórica incontestável, ainda que entendida como “o grande silêncio”, o que nos leva todos a dizer sobre ela: “sei que não sei, de nunca”. Faz-me sentido celebrá-la, pois “a morte pertence à vida, assim como o nascimento”. Vale celebrá-la porque isso significa celebrar o mistério, em que toda nossa vida está envolvida. Vale celebrá-la para que o mistério permaneça: ninguém sabe nada sobre o depois da morte, nenhum falecido jamais voltou para dizer-nos algo sobre o depois. E a manutenção desse mistério é a mola motriz de nossa existência. Soubéssemos algo sobre o que nos acontecerá depois da morte, a vida se tornaria insuportável.

É preciso celebrar a morte, isto é, celebrar a vida.

Não há que confundir, porém, refletir sobre a morte, um momento da vida, com o falar sobre os mortos. Nesses não convém falar, pois “ficar calado é que é falar deles”. E se viemos ao mundo para ter saudades, fiquemos com a saudade, feita de lembranças que só na morte se reencontram.

Há pessoas cujas vidas se alentam na contemplação da morte. Elas sabem que “a morte só retira os limites: o pequeno eu se dilui e retorna ao Uno”; elas sabem que a morte é o limiar da eternidade, momento definitivo diante do qual nada pode se desvanecer, nem a esperança, nem a felicidade, nem a visão de uma face desfeita em lágrimas. Tais pessoas sabem do mistério da morte, como expressão do mistério da vida. E não lhes convém da morte retirar o mistério porque acreditam que a morte seja a superação definitiva do mistério. São pessoas que se indagam por que não falar sobre a morte, se passamos a vida gritando “sim” ao eterno. Além do mais, são pessoas apaixonadas pela liberdade, pelo processo de libertação. E confiam, e esperam, e acreditam que com a morte a liberdade será plena, e a transcendência se dará na participação do ato criador do Deus que lhes move a vida. Para tais pessoas, com a morte passa-se do Deus sobre nós, para o Deus em nós. Para elas, a grande verdade é aquela lindamente proclamada por Guimarães Rosa: “a morte é o sobrevir de Deus, entornadamente”.

Não se morre uma vez apenas, nem de vez.

É preciso, por isso, ir morrendo, isto é, ir superando, já em vida, o que a morte vai consagrar: a total ausência de luta pelo poder, a suma desqualificação da vaidade, a absoluta ineficácia de alguém se julgar maior e melhor que outrem e qualquer outra manifestação de que “eu me basto”.

No entanto, mesmo pessoas com tais propósitos de vida, indagam como, em plena vida, introduzir o definitivo da morte.

O grande Tostói dizia que “A morte é um despertar” e “o amor atrapalha a morte”. Isto é, o amor não deixa a morte ter a última palavra, porque tudo o que há no universo, na vida, é fruto do amor criador. O morrer significa que a pequena parcela de amor que se possa ter retorna para a fonte universal e eterna do amor. É preciso, pois, não deixar morrer o amor, pois morre-se ao perdê-lo.

A vida de muitos de nós começa a ir do dia para a tarde. Talvez valha alimentarmo-nos com o pensamento do inesquecível Agostinho de Hipona: “Fizeste-nos para Ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em Ti”.

Viver a morte para celebrar a vida.

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