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Papai não sabia fritar um ovo

23 de Novembro de 2022, por Cláudio Ruas

Rosalvo do Góes, no Mercado Municipal de Itajubá.

Nem fazer café. Desde muito tempo já tinha daquela cafeteira italiana tipo moka, que simplificava o processo. Comia feliz um pão dormido, sem nem mexer com esquentar na frigideira. Sobrevivia um dia inteiro na roça quase que só chupando laranja e tirando gosto com azeitona. Certa feita, ainda recém-casado, foi passar um bife e quase colocou fogo na casa. Papai não sabia fritar um ovo. Mas nunca foi por preguiça. Aliás, essa palavra nem existia no vocabulário dele. Sua relação com a comida e a gastronomia era peculiar e, sobretudo, muito simples (e não menos grandiosa por isso).

Começou sua vida já enfrentando a pobreza em casa. Mas teve pais lutadores que se viravam para plantar e preparar comida boa, mineira e “de quintal”, com quase nenhuma carne e muito “feijão, angu e couve” (você já leu esse livro do Eduardo Frieiro? Leia!). Cresceu forte e, aos precoces onze anos de idade, saiu de casa para estudar no seminário em São João del-Rei, onde passou fome, inclusive. Não aguentava mais comer abóbora todo dia! Ainda no seminário, começou a rodar o mundo, viveu em vários lugares e vivenciou suas comidas e hábitos diversos. Virou-se como pôde nas repúblicas da vida, mas continuou sem saber fritar um ovo.

O tempo passou, as dificuldades financeiras foram ficando para trás, porém o seu gosto pela simplicidade culinária permaneceu firme. Até nas duas únicas coisas que não gostava de comer ele foi simples, pois bacalhau e camarão sempre foram ingredientes caros! Comia de tudo, não reclamava de nada e quase não tinha aquela história de comidas especiais e favoritas. Como um bom mineiro raiz, tinha obviamente uma grande adoração por um frango caipira ensopado com quiabo e angu. Falava muito também na famosa vagem com ovos que sua mãe fazia. E ficava bem feliz quando comia um espaguete ao alho e óleo, além dos doces, claro, como o de cidra, figo e pé de moleque. Viajou o mundo todo, frequentou jantares e eventos refinados em função do seu trabalho, mas nunca foi de ir por conta própria a um restaurante mais granfino. Na verdade, sua grande paixão era comer um bom PF! Como ficava feliz com isso, especialmente quando descobria um lugar novo, normalmente numa quebrada.

Talvez seu ritual gastronômico predileto tenha sido ir a um botequim copo sujo para beber uma cerveja e uma pinga em pé ao balcão, comendo um tira-gosto de estufa. Inclusive, fazia isso sozinho, mas em um instante já arrumava um companheiro de prosa no lugar. Gostava de toda sorte de bebidas; no entanto, como um bom filho de Minas, era um grande apaixonado e entusiasta pela cachaça. De preferência, da branca, sem muita interferência de madeira no envelhecimento – e sempre dizia: “A pinga quando é boa não precisa de madeira não”.

Papai sabia fazer muita coisa. Fez de tudo na vida. Menos cozinhar. Mas, mesmo assim, conseguiu alimentar muita gente ao longo da sua jornada. Não só de comida, mas de ajudas e oportunidades, de cultura, de alegria e de muito amor. Inclusive, provavelmente por não saber cozinhar, ele me fez cozinheiro. Comecei a cozinhar no início da adolescência, quando íamos só nós dois para a roça. Tomei gosto pela coisa e até mudei radicalmente de vida por conta da paixão pela gastronomia. Vim até parar aqui, na coluna desse jornal, também graças a ele, que me ensinou a escrever.

Dentre os incontáveis privilégios de uma vida ao lado desse grande homem que foi o Rosalvo do Góes, uma das coisas que mais me alegra foi ter tido a oportunidade de cozinhar muito para ele. Como bem disse o escritor Mia Couto, “Cozinhar é uma forma de amar os outros”. E essa foi a melhor forma que encontrei de amar a sua pessoa e tentar retribuir um pouco de tudo que fez por mim e pelo mundo.

Papai não sabia fritar um ovo. Azar do ovo, né?

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