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Uma história natural da transformação

16 de Junho de 2016, por Cláudio Ruas

Cozinhar nos proporcionou não apenas a refeição, como também a ocasião: o costume de comermos juntos num momento e num lugar determinados. Isso representa um fenômeno novo, já que o homem que saía em busca de alimentos crus provavelmente se alimentava enquanto se deslocava e sozinho, como todos os outros animais. (Ou, se pararmos para pensar, como os comedores industriais em que nos transformamos recentemente, mordiscando qualquer coisa em postos de gasolina e comendo sozinhos, não importa quando e onde.) Porém, o ato de nos sentarmos para fazer uma refeição em comum, olhar nos olhos uns dos outros, compartilhar a comida e nos comportar com certo decoro, tudo isso serviu para que nos civilizássemos. “Ao redor do fogo”, escreve Richard Wrangham, “nos tornamos mais domesticados”.

Portanto, cozinhar nos transformou, e não apenas por nos tornar mais sociáveis e corteses. Uma vez que o ato de cozinhar permitiu que expandíssemos nossas capacidades cognitivas à custa da capacidade digestiva, não havia mais como voltar atrás: nossos cérebros grandes e intestinos pequenos dependiam agora de uma dieta à base de alimentos cozidos. Isso quer dizer que cozinhar tornou-se compulsório – está, por assim dizer, cozido na nossa biologia. O que Winston Churchill afirmou um dia a respeito da arquitetura: “Primeiro damos forma às nossas construções, e então elas dão forma a nós”, também poderia ser dito sobre o ato de cozinhar. Primeiro, cozinhamos nossa comida, e depois ela nos cozinhou.

Bom, na verdade esse colunista deveria ter colocado aspas nesses dois parágrafos aí de cima, mas, para não assustar, preferiu avisar só agora que quem disse isso foi um tal de Michael Pollan. Um cabôco genial, que vale a pena conhecer. Ele é americano, escritor, historiador, meio cientista, cozinheiro, boa prosa e boa gente (aposto!). E com seu trabalho tenta analisar e redescobrir a “experiência fascinante de transformar os alimentos”, relatando experiências e mergulhando em “história tão antiga quanto da própria humanidade”, mas de uma forma leve e interessante. Tudo isso através do que os seres humanos “cozinheiros” chegaram a criar com os quatro elementos da natureza – fogo, água, ar e terra – como churrasco, ensopado, pão e cerveja, respectivamente.

Anota aí o nome do livro: “Cozinhar – uma história natural da transformação”, da editora Intrínsica. E o bacana também é que foi feita uma mini-série chamada Cooked, de quatro capítulos (cada um sobre um elemento da natureza) protagonizada pelo próprio Michael Pollan, e disponível na internet no tal do Netflix. Que, aliás, é um site de filmes, séries, documentários, e tal, que tem sido a fuga natural de muitos da (cada vez mais terrível) televisão. Custa só uns vinte merréis por mês, e pode ser usado por até cinco pessoas.

Confesso que comecei a ler o livro hoje mesmo e mal virei o morro do primeiro capítulo, mas, depois de já ter visto a série da internet e lido algumas reportagens e entrevistas interessantíssimas do cobôco, não pude deixar de assuntar com vocês, que se dão ao trabalho de ler essa coluna e de cozinhar.

O autor - que já foi considerado uma das cem pessoas mais influentes do mundo - é um grande defensor da ideia de que é elementar para os seres humanos o ato de cozinhar, de entender os seus processos e vivenciá-los através de uma maior proximidade com o ingrediente, a natureza e o próximo. E como isso interfere profundamente em nossas vidas, em nosso mundo. Consequentemente, faz uma crítica (sóbria) ao estilo de vida “moderna”, em que os alimentos prontos afastam cada vez mais a grande maioria da cozinha, das suas origens e uns dos outros, trazendo assim prejuízos de todas as ordens. Ele traz ainda uma questão interessante e contraditória: muitos têm passado bastante tempo assistindo a programas de gastronomia na tevê, lendo revistas e navegando por saites e perfis da internet relacionados à comida. Mas, ao mesmo tempo, não têm se dedicado de fato ao ato de cozinhar e, mesmo que o façam, o tempo gasto na cozinha é bem inferior àquele destinado ao entretenimento do assunto.

 

Agora usando aspas (pra valer), termino com o primeiro e conclusivo parágrafo do livro: “A certa altura, já no fim da meia-idade, fiz uma descoberta inesperada, porém feliz: muitas das perguntas que mais me preocupavam tinham na realidade uma única resposta – cozinhar.

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