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Ana do Sô Luís

25 de Outubro de 2022, por Evaldo Balbino

Era amiga da Maria da Ritinha. Amizade dessas em que as pessoas são unha e carne uma com a outra.

A Maria com sua vida vidinha muito importante, a mãe já falecida, e ela tendo que aprender a se virar pra viver.

A Ana, órfã desde sempre. Eterna criança na sua mente ingênua, corpo de mulher e intenções de anjo: nunca deixou de lado suas bonecas da infância. A meninice estendendo-se eternamente, o que é saudável dentro do que chamam equivocadamente de loucura.

Uma, órfã de mãe e aprendendo a viver. Outra, órfã do nada, sempre angelical. As duas vivendo nesta vida onde todos temos que passar pela mesma aprendizagem. Viver é lição cotidiana. E quanto mais aprendemos, mais ainda temos que aprender. Somos eternos alunos buscando pela luz ao fim e ao cabo.

Ninguém sabia o nome completo da Ana. Seguido sempre do nome do pai adotivo, o viúvo Sô Luís. Desde que se entendia por gente, ela viu o pai solitário, sem a esposa já morta num quando já muito passado.

Ana do Sô Luís: modo esse familiar e interiorano de se conhecer alguém. Modo afetivo nos dando a sensação de não estarmos perdidos num mundo imenso onde se registram friamente alcunhas em cartórios, em pias infinitas de batismos sem espírito, sem fôlego que nos salve no meio da multidão solitária.

E espírito a Ana dava e vendia. Trabalhadora, brincalhona que não acabava mais! Quando cismava com alguém, repetia várias vezes a mesma brincadeira.

Assim foi, por exemplo, com os meus tios Lia e Francisco, noivos às vésperas do casamento. Eles noivando e a Ana dizendo, galhofeira, “A Lia vai casá com o Francisco; tudo preguiçoso, e vai cumê folha de mamona.”.

Quando minha mãe esperava o Nonô, meu irmão mais velho, lá vinha a Ana ridente e bonachona: “A Naura tá barriguda aí; daqui um cadiquinho vai tá aí!”. E dava risada alisando com os olhos a barriga de minha mãe, mulher jovem nos seu 18 anos esperando o primeiro filho.

Na sua língua enrolada, a Ana do Sô Luís enredava as vidas todas ao seu redor e a sua própria. Falava bastante, de modo alegre. Dizia “Naura” em vez de “Laura”, os fonemas borbulhavam saltitantes e tresloucados na sua boca. E com letras tontas na língua falada ao vento, ela ia tecendo malha disforme, mas com forma própria de quem vivia a vida de modo pleno, sem peia, sem medo.

Juntava-se com sua amiga, a Maria da Ritinha, e iam ambas a fazendas pedir mantimentos. Nas porteiras chamavam, batiam palmas pra gente e bicho. E não se intimidavam com o latir dos cachorros no terreiro nem com os olhos de vacas e bois pegadores nos pastos. Afinal, os cães e os gados do mundo têm um ofício para cumprir. “Lati e mugi é o fado deles”, dizia a Ana com largos sorrisos. Passavam firmes no seu propósito: o de prosear e provar de gostosuras que lhes eram ofertadas, e o de depois saírem com os embornais cheios de cereais, verduras, carne e mais mantimentos para manterem o dia a dia.

As amigas brigavam muito, mas se amavam. Como crianças que ficam de mal e pronto! Tudo passa num repente e, quando vamos ver, já estão brincando entre si. Ora discutiam ora contavam caso.

Depois das discussões, suas conversas tornavam-se águas plácidas como eram as do ribeiro de Santo Antônio. Por falar no nome desse Santo, elas nunca pediram a ele um marido. Simplesmente viviam com liberdade, sem esse tipo de preocupação. Havia um preconceito contra moça não prendada que ainda tinha muito o que aprender e contra moça sempre menina numa chamada “loucura”. As duas, no entanto, viviam para além desses juízos desajuizados. E viviam felizes em meio à aspereza da vida.

Nos momentos de paz, buscavam sair da lida da costura, pois a Maria aprendia cada vez mais a fazer isso. E ambas brincavam com bonecas, as filhas eternas que elas amavam.

Quando proseavam com outras pessoas, suas narrativas eram longas, simples como simples eram as narradoras, e belas como bela é a vida. Suas histórias eram tantas que aturdiam quem as ouvia. Mas isso era um ficar tonto cheio de coisa boa, de imaginação que nem córrego caudaloso de peixe e vida.

E era tanta a vida que as duas tinham e exalavam, que até hoje estão na memória de muita gente. Tanto que as recrio aqui, nestas minhas linhas que nunca findam, também caudalosas.

A vida nunca acaba. É eterna mais do que a morte.

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