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As faces de Deus

23 de Novembro de 2022, por Evaldo Balbino

Desde a minha meninice ouvi falar d’Ele. O Imenso, o Inabalável Pai que faz tremer o mundo. Os ecos ancestrais como lavoura arcaica, como terra antiga numa lavra inarredável. Palavras do Pai escritas a fogo sobre pedras e a ferro na pobre cerviz humana. E esta pobre nuca, considerada dura pelas palavras duras de profetas, sempre se dobrando sob força tanta.

É desse narrar antigo que escuto vozes de trovão. Ouço vozes de muitas águas tormentosas. Vejo a nudez humana execrada, o perambular de Caim pela Terra, os corpos naufragando os desejos no grande dilúvio. Sinto o abandono de Agar e seu filho no deserto, as mãos do pai Abraão quase imolando o filho ingênuo. Presencio Jacó roubando a progenitura do irmão Esaú e pagando caro por isso. Testemunho José sendo vendido pelos irmãos, Jó sofrendo dores inomináveis, Jonas aflito no ventre do grande peixe. Assisto a homens e mulheres e crianças sendo ceifados em nome duma fé dura e irrecorrível...

Até mesmo depois da Graça maravilhosa do Cristo, ainda ouço a voz de João em Patmos, as bestas do Apocalipse: uma emergindo do mar e outra da terra. Olho com ouvidos dolorosos e amedrontados os selos se abrindo, vejo anjos e homens parecendo animais, escuto as pragas de antanho erguidas de novo e para sempre sobre toda a humanidade perdida em si mesma...

Durante anos a fio fui carregando tudo isso, e as costas me doíam com peso tão insuportável.

No meio de tudo, porém, fachos de luz!

Palavras de amor, cantos de glória, mares se abrindo, homens sendo jogados em fornalha de fogo ardente e dali saindo ilesos, bocas de leões sendo fechadas perante um homem de Deus, o sol retrocedendo em prol daquele que clama, a viúva sendo agraciada e amada no campo, o amor sendo elevado eroticamente nos cantares de muito amar. Cheguei e chego, ouvindo os salmos de louvor, a amar Davi no seu abraço doloroso em Jônatas, os dois sofrendo as dificuldades da vida, Davi chorando a morte inabalável do companheiro.

Dos fachos de luz, os olhos de Jesus. Eles próprios, os olhos, a própria luz em nós descida. O Deus fazendo-se homem, sentindo na carne o que é ser carne, chorando e rindo, comendo e bebendo, louvando e vociferando. O que anda entre humildes e não humildes, o que busca cada ovelha sem olhar sua cor e sua forma. Tudo é ovelha perante os olhos do pastor amoroso. Até pedras clamam, o deserto rebenta em flores, a rocha jorra leite e mel, os braços se tocam e sentem a doce vida em cada poro.

Entre leis pesadas (intratáveis mesmo) e o doce olhar do Deus humano, vim seguindo a senda da vida, vim aprendendo a viver da melhor forma possível. Mas sempre dividido, preso a uma geometria e livre numa imensidão sem fim. Cercado de furores e entregue a amores.

Depois, certa feita, um fiat lux, uma luz acesa! Eu escrevia o último capítulo de minha dissertação de mestrado. E era sobre a presença de Deus na obra da poeta mineira Adélia Prado. Lendo teorias e teólogos, contemplando poemas e os analisando com afinco e afeição, de repente se me revelou a dádiva, o olhar de Deus para o meu corpo pouco e ao mesmo tempo tanto: o conceito de representação me atravessou por inteiro. E desde então, apesar de tanta coisa triste, vi que a vida é mais feliz do que eu pensava. Demorei mais de vinte anos para entender tudo isso! Ao término do meu mestrado, a lucidez.

Tanta claridade (esse brilho necessário, o fulgor mesmo de Deus) cintilou em mim. E a partir daí passei a cantar com mais afinco a canção que diz dos galileus olhando tanto para o céu e buscando ali a pessoa de Jesus. E a resposta ímpar nos ouvidos de quem procura: esse mesmo Jesus que procurais há de vir assim como para o céu o vistes ir.

E assim, amado, me sinto nos braços divinos, nos braços daquele sobre quem o mesmo João do Apocalipse chegou a escrever em seu Evangelho: “Ele, que tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim”. Esse mesmo e sempre João que registrou um único mandamento: “Um novo mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos ameis”.

Agora, permanecido no amor divino, não me armo e amo a todos. E as faces de Deus ficaram tão simples, pois sei que não passam de retratos que as mãos humanas pintam. Toda palavra tem o rosto de quem a profere. Assim sentindo, mais do que pensando, continuo mergulhado em amor tão fundo e me sinto frutificando para sempre. A videira verdadeira floresce em nós.

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