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Cajado às avessas

28 de Fevereiro de 2024, por Evaldo Balbino

A igreja lotada. A cidade pequena, e muita gente, muito rebanho precisando de misericórdia.Sussurros de orações quase que no silêncio. Murmúrios de lábios quase fechados. Olhos cerrados: um ou outro aberto na verdade, já que nem todos conseguem comunhão de tal monta. Joelhos dobrados porque todo joelho, disse o profeta Isaías, há de se dobrar perante a santidade três vezes santa de Deus. Na contrição dos fiéis, o desejo profundo de justificação, de salvamento do que na vida nos coloca perdidos. Muito mais do que pecados, o que assola a todos é o sentimento de incompletude que nos torna plenamente incapacitados para suportar as dores. Daí os clamores: no coração, na boca, nos gestos. Em pensamento e palavra, na gestualística prostrada, as petições infindáveis.

O púlpito ainda está vazio. Mas logo alguém se levantará diante de todos. Será levantado, acredita-se. Existe a fé inabalável de que o Espírito Santo conduzirá um representante, um alguém saído de entre todos, porque do meio do povo sai a voz do que clama no deserto, a que proclama mensagens divinas no silêncio duro onde nem flores nascem. Para nascer, sabemos, é necessária a palavra. São necessários os gestossagrados para que o mundo profano aconteça.

Existe a fé. No entanto, nem tudo são flores. Pois que se levantam pastores cheios de si, e não da pomba baixando sobre eles e lhes ditando o que fazer e falar. Principalmente o que falar. Nem tudo, portanto, é voz divina. A humanidade precisa reconhecer que ela própria fabrica monstros, que dela mesma nascem espinhos. Quanta culpa em Deus e no diabo! Quanto dolo atribuído a forças outras, quando em realidade são nossas pequenas e perigosas forças as que, muitas vezes, desencadeiam tormentas, levantam tempestades, semeiam duras semeaduras!

Semear é um gesto. Lançam-se à terra as sementes. Planta-se o que deve nascer. A quantidade de grãopara semear um terreno não acaba nunca. Sempre é bastante para o que se precisa fazer. Olhamos a gleba e vemos a extensão do que será semeado. Por mais impróprio ao cultivo que pareça, o torrão perante nossos olhos é leiva trabalhada com esmero pela existência. Não são aleivosos os braços da vida: suas mãosamainam a todos nós, preparam-nos de algum modo para o que se vai semear.

Hoje, entretanto, nem Deus nem o diabo prepararam o chão. A existência, porém, fica tranquila diante do que nela também é muito comum. Levanta-se um homem engravatado. Roupa de estirpe, de sangue azul, mandada comprar em alguma butique para poucos. Seus sapatos lustrosos valem ouro. Seu anel no dedo, ao lado da aliança de um suposto bom marido, brilha doutoralmente diante da igreja. É um juiz o que se levanta, título anular bem ali na cara das pessoas simples, boca feita para discursos solenes e serpentinos.

Ele se levanta e diz que se levantou porque Deus o quis. Toma da palavra como se toma um vinho especular no qual nossas faces se veem e se contemplam amorosamente. Para depois embriagarem-se em si mesmas.

Ele se levanta e, acredita, vê no povo o anseio dele mesmo. Imagina-se o modelo, coloca sua vida como exemplo para o que deve ser seguido. Não sei se esse pregador leu alguma vez certas palavras do Imperador da Língua Portuguesa, o padre Antônio Vieira. Se não leu no padre português, viu certamente no Evangelho: o pregador deve pregar e fazer o que prega, deve ser arquétipo para os ouvintes, luz para o mundo que o rodeia.

Exigência muita para um mero homem. Também ele filho de Adão, pertencente à mesma prole historicamente perdida no labirinto vital e caminhando para os confins sem clareza.

O pregador levantado – ou que se levantou – prega com palavras precisas e claras – água diante dos seus olhos. A sua pregação fala de pecados e da necessária ausência desses mesmos pecados em vidas tão impuras como são as de todos os que habitam esta terra doente. A base para sustentar sua admoestação é o sucesso de sua biografiacomo resultado de uma entrega plena e imaculada a Deus. Sua diplomação, a família que o respeita, o cargo de juiz que conquistou em primeiríssimo lugar nacionalmente considerado, os louros que vêm sendo colhidos dia a dia.

Enquanto ele fala, o rebanho todo ouve e geme. As palavras do pregador são letras mortas diante das vidas carentes de pão outro – o que não se oferta do altar.

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