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Depois do silêncio

20 de Dezembro de 2023, por Evaldo Balbino

O que vem depois do silêncio? Essa é uma pergunta que sempre me fiz. E, nos últimos tempos, ela tem batido em meus ouvidos insistentemente como um tambor infernal. Nas portas desse inferno de ruído, ensaio também os meus silêncios. Os meus ruidosos silêncios de preparação para uma ausência de som eterna porque final.

Mais um fim de ano, mais uma virada no calendário que se vira porque assim determinaram. Criaram as marcações, e nossos pés se prendem nelas como peixes na rede encarceradora. Os pobres peixes depois de nadarem inocentemente pelas águas correndo silenciosas.

Não temos culpa de nada. Nenhum pecado original, nenhum jardim perdido e protegido por anjos ferozes ao seu redor. Nada de mitos que nos salvem diante da realidade nua e crua. A passagem do tempo prossegue seus passos, lentos para uns, velozes para outros. Mas tudo rumo ao final sem fim. Mesmo quando alguém se cala, há sempre outro alguém que fala alhures.

Quando é que se para? Quando é que poderemos ter uma trégua? Tudo o que desejamos é a desejada paz. No entanto pouco ou nada sabemos desse estado incomunicável de placidez. E muito inventamos para nos salvar de nossos corpos tão apetecíveis, tão cheios de vida e tão em decadência. Tentamos fugir de uma vida se esvaindo aos poucos.

A boca atenta ao mundo e aos seus percalços, mesmo fechada, me diz: é muita ruína para o meu paladar!

O que fazer entre ruínas?

Continuo caminhando e colhendo sombras de flores diante do espelho. Um espelho feito de areia e pó.

Uma luz, e só uma tênue luz. Ela me chama do fundo do espelho. Insisto em olhar para ela, sonho que seu canto me açula o corpo. Entrego-me ao seu ensaio de fulgor, mesmo sabendo-a um pequeno feixe imaginário, mesmo vendo-a um pouco de réstia de algo na parca vida dominada pelas parcas. Essa luz é resto e se arrasta para dentro das minhas retinas baças. Ela se arrasta, abatida.

E as flores não são flores. Não têm perfume que as liberte do caráter sombrio que as atravessa. Seu conteúdo e forma não se delineiam. Suas pétalas são projetos de veludo e fauna que as toque. Arabescos e sonhos elas são.

O que fazer das ruínas?

Como erigir muros e paredes para uma casa já finda e mais que sonolenta? Os cômodos pensam silenciosamente o que já foi. Os toques nos móveis, a quietude da água nas torneiras, os tapetes não mais tecidos, as flores no quintal esmaecidas, os canteiros desencantados das mãos que deles cuidavam.

O que querer das ruínas?

Arquiteturas são difíceis quando o sonho fica minguado. Urdiduras não se ordenam quando a desordem se instala. Vivemos de voar momentos, sem asas que nos acolham no colo de uma ave imensa e protetora.

As nuvens passam, mesmo que ganhando formas. O vento lá de cima não as deixa quietas para a permanência. Quando os dedos apontam um desenho, um retrato qualquer, de repente tudo já se foi e não é mais. As nuvens se fazem se desfazendo.

O que sentir nas ruínas?

Estas palavras se sentem. Meu coração ainda bate na porta do mundo. Meus pés ainda tocam o chão sem geografia. E a grafia do que escrevo é rastro sobre o pó. O que se escreve é para agora e para ontem. Não temos futuros, senão as nossas vontades construindo móbiles sem tempo.

É tão bom sonhar, eu sei. Mas também sei que o sonho tem o seu tempo. Chega a hora em que ele se curva perante o não que se lhe impõe, fecha os olhos para a luz, cruza as mãos sobre o peito quieto e petrificado. Quieto, mas não sei se sereno. Essa quietação não tem palavras, não abre a boca, não nos diz o que é, se é e como é. Olhamos, olhamos e olhamos para o que não nos olha. O silêncio não responde a nenhuma pergunta nem à profunda saudade que nos sufoca. A porta se fecha, o frio véu da vida se recolhe.

E recolhidos ficamos deste lado de interrogação e tolhimentos. Não sabemos o que fazer diante da vida e suas várias formas de deixar de ser. Não sabemos dizer o que não se nos diz.

Para além das ruínas tem a fé, tem os muros reerguidos, as águas do tanque que cura, as águas salgadas do mar que se abre, o sol recuando no espaço e nos dando tempo de ainda ser redimidos...

Tem tudo isso, se pode dizer. Mas também tenho os meus vazios que me traduzem. Atravesso desertos com meus pés exaustos e humanos.

Agora não estou para o bulício, mesmo que minhas palavras ressoem pelo mundo.

Comentários

  • Author

    Quanto culto ao existencialismo enquanto milhares são impunemente assassinados na Palestina. Como escreveu Brecht: "que tempos são esses em que falar de flores é quase um crime pois implica calar-se diante de tantos horrores"


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