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Instantes de eternidade

21 de Dezembro de 2022, por Evaldo Balbino

Ednei, irmão de Evaldo Balbino (foto arquivo particular)

Para meu irmão Ednei Balbino da Silva
★27/07/1970
† 17/11/2022

 

Fim de noite de sábado. Triste e silenciosa. Você, dolorido, me chamou com voz fraca e rouca. Eu me aproximei do leito semiescuro, ali onde o barulho da grande cidade não chegava. Seu sussurro sumia tanto, que tive que chegar o ouvido esquerdo bem perto dos seus lábios. As palavras saindo com dificuldade, e lágrimas profundas minando dos seus olhos.

“Não tenho medo da morte. Não quero é sofrer e nem ver vocês sofrendo.”

Busquei apaziguá-lo, desejando-lhe força quando na verdade eu sabia que somos tomados de muita fraqueza. Da sua boca, o pedido:

“Quero ir pra casa, pra minha terra.”

Eu lhe dizendo na sequência que para sua casa não seria possível, que ficar num hospital era mais necessário por haver mais recurso. Do fundo da minha agonia, eu ali buscando alívio para sua dor, a psicológica. Porque a dor física, entregue nas mãos de médicos e enfermeiras, já estava, parecia, sob controle.

“Sei que vou morrer: hospital pra quê?”

Eu lhe dizendo tanta coisa, sabendo no fundo que nada está no nosso controle. Uma sensação de incapacidade, o momento exato em que nossa essência falível vem à tona com toda a força, e ficamos sem saber o que fazer, que palavras dizer ao certo, que atitude tomar. Expliquei-lhe da necessidade do hospital, falei do fato de os remédios na veia serem mais eficazes. E acrescentei que, se você quisesse, poderíamos pedir sua ida para o hospital de nossa cidadezinha.

“Isso, quero isso. Na minha terra, perto do pai e de todo mundo.”

Garanti-lhe que faria de tudo para atender ao seu desejo. Conversei com as enfermeiras e depois com o médico de plantão. E seu retorno para nossas raízes foi acordado. Ainda demoraria dois dias e meio para isso ocorrer, mas seu desejo foi atendido.

Na mesma noite ainda, naqueles mesmos instantes, voltei para o seu lado depois de conversar com o médico. E você tomava nova medicação. Morfina quase que sempre, ininterrupta. Sua esposa e filho conversavam, a tevê ligada, sua vida me olhava de modo intenso. Num repente seus olhos e bocas me chamaram atenção para o televisor, onde se dava uma notícia de algo tão comum neste mundo, no nosso país. Num bar da zona sul desta cidade, uma cena de violência. Dois rapazes, à mesa, tinham trocado um beijo, um selo simples, e um deles, quando depois se dirigira ao banheiro, fora espancado por alguns homens que diziam não ser ali um lugar para pessoas anormais. Você só acenou com seu braço fino e roxo mostrando veia sofrida. Acenou, e a boca fraca dizendo forte:

“Isso é muito triste; presta atenção!”

Concordei com gesto e palavras e me voltei para lhe perguntar se você estava com sede, se queria água.

“Um pouco só”.

Tomei da água e lhe matei a sede, sempre eterna. Continuei do seu lado por mais um tempo sem tempo. Vez em quando seus olhos se fechavam em cochilos necessários. Até que, num certo ponto, seus olhos se abriram por saberem que já estava quase na hora de eu sair. Seu filho ficaria na sua companhia durante a madrugada, e sua esposa dormiria em minha casa.

Dois dias e meio depois, na terça-feira, a hora da sua volta. Precisamos sempre voltar. Eu tinha que dar aula às 13h10min, já era mais de meio-dia, e cruzar esta cidade não é fácil. Chegou a hora da despedida. Você me acenou, e eu segurei sua mão fragilizada.

“Me perdoa” – sua boca e seus olhos me disseram dolorosamente.

Inclinei-me sobre o seu rosto, beijei-lhe a testa tão raquítica agora, e lhe disse que não havia nada o que perdoar.

“Por tudo o que te fiz”.

Minhas lágrimas vieram ao socorro das suas. Beijei-lhe novamente, abracei seu corpinho tão apequenado pela enfermidade, e busquei palavras com que arrancar-nos do sofrimento. Argumentei, como São Paulo o faz numa de suas cartas, que agora não éramos mais crianças, que éramos adultos e que tínhamos deixado para trás as coisas de crianças. Você não entendeu a alegoria. Parafraseei o já dito, e lhe expliquei que já tínhamos nos tornado mais maduros, mais atentos às coisas da vida, mais unidos pela experiência que nos aproximara tanto ao longo dos anos. E arrematei: águas passadas não movem moinho.

Naquele instante, vidas inteiras passaram por minha cabeça. A sua vida e a minha. Creio que todo o filme, imenso e sempre inacabado, também lhe atravessou a mente sofrida. Beijei-lhe a esguia face novamente, antes de sair do quarto. Unidos, nós dois.

Fui revê-lo uma semana e dois dias depois. Você estava parado para sempre, deitado sem dor e agonia como águas plácidas não mais movendo moinhos.

Comentários

  • Author

    Querido amigo e poeta Evaldo, sua dor é a de muitos de nós que conhecemos seu irmão Ednei. As lágrimas lavam o caminho percorrido entre vocês e, certamente, acalmam ou apaziguam os sentimentos mais conturbados. Alguns de nós, que já ouvimos ou lemos a palavra morfina, temos ciência da relevância dela na vida de quem a usa e daqueles que estão ali no entorno, acompanhando tratamentos. Que se eternizem as suas palavras de fé, sobretudo, meu querido, para que possamos um dia nos reunirmos novamente e celebrarmos a verdadeira vida: a espiritual. Receba o meu carinho também eterno, MoBa NePe


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