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Irmã Leonora

28 de Junho de 2023, por Evaldo Balbino

Suponho que se chamava Eleonora. Apenas desconfio, pois nunca vi o nome dela escrito, mas sim falado. E como a fala tem poder, o que ela diz também tem seu lugar. Leonora, a doce Leonora, com seu marido e neto. E, muito de vez em quando, filho ou filha vindos de São Paulo, não sei bem ao certo.

A casa era grande para três pessoas, mas a irmã Leonora e o marido, o Seu Aristides, recebiam a todos, com boca larga e abraço longo. Um corredor comprido, de um lado parede impenetrável, do outro três portas levando a três amplos quartos, uma passagem de me dar medo. Lembro que o meu pai dizia que corredores alongados eram ruins em dias de velório, pois dificultavam a passagem do caixão com o defunto dentro. Dizer macabro, mas realista, isso num tempo em que não havia na minha cidadezinha uma sala pública para velar os entes queridos em seu sono eterno.

Do corredor eu tinha medo, mas da casa não. Ao fundo da horta, o limão-doce, um enxerto de limão com laranja, uma doçura de existir sem pensar na morte. Foram as mãos do irmão Aristides, nosso cooperador na igreja, que amainaram a terra, fizeram o enxertoe criaram divinamente a planta que durante anos saciou-me a sede do que é doce e perene.

E o que dizer da irmã Leonora? O céu! Eu ia brincar com o seu neto, o Jessé. Ia ouvir as piadas e a risada gostosa e alta do irmão Aristides. Mas o que eu gostava mesmo era de conversar com a dona Leonora.

Quase sempre sentada, mas isso não escondia seus vestidos e saias longas, muitas vezes com motivos florais. Eram flores simples, discretas, em fundos de cores suaves. Seus vestidos tinham golas. No rosto em rugas, óculos grandes para ela enxergar melhor a bagunça das crianças no meio das quais eu ficava.

Contudo seus olhos também viam agulhas trabalhando nas mãos ágeis. Dona Leonora bordava, tricotava e fazia crochê. Tecia fios que nunca terminavam de ser tecidos. E desenhava com mestria flores e bichos em panos de algodão. Sei, bem sei hoje, que as peças ficavam prontas em algum momento, mas na minha memória vejo fios se tecendo, sendo cruzados por agulhas em dupla ou por uma só e sempre esperta. Esses fios até hoje se entrelaçam perante os meus olhos. E ainda assisto aos desenhos se formando com fios finos e multicoloridos. Eu via sim colchas, meias, gorros para cabeças friorentas, casacos, luvas, toalhas – e tudo me deslumbra para sempre. O que eu via mais, no entanto, eram os gestos, os imorredouros gestos. É como se guarda na mente não apenas um pássaro, mas também o seu inigualável gesto de voar.

Para o neto Jessé, eram feitos gorros e meias. E o menino engatinhava e ria e sujava as roupinhas feitas pela avó. Com paciência, tudo era lavado, para de novo e continuamente o neto ir sujando. Sujar a roupa faz parte de uma infância saudável. O corpo em contato com o chão, convivendo com os micro-organismos do mundo, ganhando resistência.

E resistentes eram os panosbordados e as peças tecidas pela irmã Leonora! Tão resistentes, que são eternos. Nunca podem cair no esquecimento, e por isso mesmo se imprimem aqui nas minhas palavras se tecendo. Não sei bordar, tricotar nem crochetar, mas escrevo com palavras, com as sílabas se namorando e se agrupando. As palavras de um certo modo agrupadas me salvam do silêncio, o perigoso silêncio que nos contempla a todos, ou melhor, que nos encara ameaçadoramente.

Os olhos puxados da amigável senhora viam muito, e sorriam sem a necessidade da boca e dos seus dentes claros como a vida. Os olhos meio nisseis da dona Leonora, essa mulher forte e caridosa, resiliência perante tudo o que é agrura da existência, nos viam e nos amavam. Descendente de mãe japonesa e de pai italiano, sua fala era rio manso, mesmo sendo ágil e cantarolada.

Sua voz e seus gestos, o modo como nos chamava, como nos saudava com a Paz de Deus, como pegava o seu neto nos braços de avó (avó é mãe ao quadrado), a maneira como nos abraçava a nós crianças sapecas e nos dizendo amores – tudo isso está em mim. Tudo isso está no meio destas linhas que me atravessam como um rio profundo e infindável. As coisas terrenas tão boas, e por isso mesmo celestiais, são eternas. Dona Leonora é sempre-viva!

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