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Irmão Joaquim

27 de Marco de 2024, por Evaldo Balbino

Vindo da Guerra, dela muito nos falava. Compusera as forças brasileiras que lá estiveram na Itália, lutando contra os ânimos fascistas de Hitler e companhia. Não sabia dizer dos meandros políticos da época, de como o Brasil, emborasendo comandado por um regime ditatorial simpático ao modelo fascista (o Estado Novo de Getúlio), acabara se juntando aos Aliados por uma série de motivos geopolíticos. Ele nem sabia sobre questões geopolíticas.

De sangue e suor, no entanto, sabia dizer. De todo o estresse dos homens, ele jovem entre tantos outros jovens e soldados mais velhos. Pracinha tendo que enfrentar o mundo e sua violência. Noites, chuvas, intempéries outras, terrenos íngremes, bombas, choros, gemidos – tudo isso compunha um mosaico em suas narrativas. Diziam que ele tinha esse apego obsessivo pelas histórias de guerra justamente por ter adoecido na própria guerra. De fato, ao que parecia, ficaram-lhe sequelas psicológicas da vida bélica que vivenciara nas terras italianas de meados dos anos de 1940.

Quando o conheci, ele já eraidoso e frequentador assíduo da igreja que eu também frequentava.Era solteiro. Falava que se casaria e que para isso só faltava uma pretendente séria e à sua altura. Ia também, nas manhãs de domingo, às Reuniões de Jovens e Menores da igreja. Recitava conosco trechos da Bíblia, testemunhava diante da igreja os feitos de Deus, pedia hinos de louvores. Quando lembrado por alguém atazanador que ele não era mais jovem, sempre respondia calmamente que era jovem sim, que se casaria e que tinha todo o direito de estar onde quisesse, até mesmo nas reuniões de jovens.

Na verdade (sei disto hoje maisdo que antes), ele estava no lugar adequado: frequentava reuniões de louvores de jovens a Deus, nas quais entre os objetivos estavam o flerte, o namoro e umcasamento certeiro.E isso dentro de uma religiosidade rígida em que os corpos eram vistos como fontes de pecado, mas sem dúvida alguma eram também coisas apetecíveis, sonhosde quase todos.

O irmão Joaquim era desse jeito. Jovem para sempre, apesar de sua memória já falha, e com uma tagarelice de aturdir um cristão. A fala incessante reiterava o já dito intermináveis vezes. Contava sempre e cada vez mais as mesmas histórias. E isso num fio que não se cortava, numa linha dando voltas infindavelmente. Não conseguíamos saber quando terminariam seus testemunhos ou o seu turno de fala num diálogo. Aliás, quando dialogava com alguém, o que se via e se ouvia era mais um monólogo seu.

Quando conversava com a gente, inevitavelmente falava cuspindo e tocavafrequentemente sua mão direita gelada no nosso braço. Não adiantava um afastamento para fugir da cusparada. Ele se achegava mais ainda perto do interlocutor.

Houve um episódio muito interessante certa feita. Na saída da igreja após um culto, aproximou-se da irmã Donana, madrasta de minha mãe e à época um pouco mais velha do que ele, para a saudação:

– A paz de Deus, irmã!

– Amém, respondeu ela naturalmente.

– Mas escuta aqui, continuou o Joaquim agora saliente, a senhora é a irmã Donana mesmo?!

Com essa pergunta de assombro, ele fechou mais os olhos para examinar a interlocutora e continuou:

– Pensei que a irmã já tinha morrido...

– Morre você, caco velho! – imediatamente lhe respondeu Donana sem nenhuma comunhão com Deus. Pois agora, nenhuma comunhão sagrada era mais possível diante da afronta.

Perante a falta de jeito do Joaquim e a inopinada cólera de Donana, o que restou a todos do entorno foi rir de cena tão engraçada. O irmão saiu com o rabo entre as pernas, depois de ter cutucado a onça com vara curta. Para ele, sem dúvida, todos envelheciam, menos o seu corpo incansável.

Passados alguns anos, eu já não morava mais em nossa pequena cidade, esse delicioso senhor foi recolhido no lar de idosos com a mediação de um sobrinho seu, também militar, que acorrera à urbe para providenciar a internação do tio. Nessa casa, ele era visitado por alguns poucos membros da igreja que de fato prezavam por uma irmandade para além do pertencimento sanguíneo.

No dia em que o Irmão Joaquim faleceu, seu corpo ficaria sem velório no necrotério até a hora do sepultamento. Meus pais, piedosos, entraram em ação, inclusive encorajados pela minha irmã caçula. A pedido dela, receberam o corpo lá em casa. Na hora derradeira aqui na terra, o nosso irmão não ficou sem lar para ser velado. A irmandade nossa é muito maior do que os laços desta vida.

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