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CARTA DE LISBOA (2022): Invasão da Ucrânia, novo governo e crise climática

06 de Novembro de 2022, por José Venâncio de Resende

Uma guerra sem sentido (foto: Vatican News).

“Esta tendência para a irresponsabilidade persiste ainda hoje em muitos de nós: os nossos rios são envenenados por descargas irresponsáveis de esgotos e efluentes tóxicos e industriais, o ar de nossas cidades é imundo e perigoso de se respirar devido ao vomitar dos produtos da combustão descontrolada do carvão, do coque, do petróleo e da gasolina. As nossas cidades estão rodeadas por destroços e pelos restos dos nossos brinquedos – os nossos automóveis e os nossos prazeres embalados. Através de uma pulverização desinibida contra um inimigo, destruímos o equilíbrio natural que a nossa sobrevivência exige. Todos estes males podem e devem ser ultrapassados, se a América e os americanos pretenderem sobreviver; mas muitos de nós ainda se comportam como os nossos antepassados se comportavam, roubando ao futuro para nosso benefício imediato e presente.” Trecho do livro A América e os americanos (Livros do Brasil, 2022, Porto) no qual o autor John Steinbeck (1902-1968) fala dos primeiros habitantes “que pilharam o país como se o odiassem”. Foi um dos melhores livros que li este ano, sobretudo a última parte que contém textos valiosos para compreender o seu país.

Nós, os Romanov (Alma Livros, 2021, Lisboa), do grão-duque Aleksandr Mikhailovich, e Jerusalém a Biografia (3ª edição, editora Crítica, 2021, Lisboa), de Simon Sebag Montefiore foram outros livros que marcaram meu ano porque me ajudaram a perceber melhor que, por trás da ambição desmedida do Sr Putin em recuperar o grande império russo, governado por uma monarquia absoluta nos séculos que antecederam a revolução russa de 1917, está a mistura tóxica entre política e religião. Em “Jerusalém”, por exemplo, o autor relata que, em 1453, com a queda de Constantinopla, “os grandes príncipes de Moscou tinham-se assumido como herdeiros dos últimos imperadores bizantinos, vendo Moscou como a terceira Roma; os príncipes adotaram a águia bizantina de duas cabeças, bem como o título de César, ou seja, czar. Nas guerras que travaram contra os khans islâmicos da Crimeia, e depois contra os sultões otomanos, os csares sempre apresentaram a promoção do império russo como uma cruzada ortodoxa”. Em outra passagem sobre a forte presença dos peregrinos russos em Jerusalém no século 19: “Esta devoção russa estava fundada na piedosa pertença à igreja ortodoxa, que abrangia toda a sociedade, desde a base – dos andrajosos camponeses das minúsculas e longínquas aldeias da Sibéria – até ao topo, incluindo o próprio imperador, o csar Nicalau I. A missão ortodoxa da sagrada Rússia era partilhada por todos eles”.

Em nome de Deus tem-se feito barbaridades – diz um especialista militar que esta é uma guerra violenta e que terá longa duração. A Rússia do Sr Putin invadiu o território do país vizinho, numa cruzada político-religiosa de contornos fanático e saudosista; não são gratuitas as invasões russas da Geórgia (2008), da Crimeia (2014) e da Ucrânia (24 de fevereiro deste ano) nem tampouco o temor que levou Finlândia e Suécia, tradicionalmente neutros, a aderirem à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO). A aventura do Sr Putin na Ucrânia ocorreu num ano que prometia ser o de início da recuperação de dois anos de pandemia e que, de repente, se transformou no começo de uma nova crise de futuro incerto.

De olho no próximo inverno, o Sr Putin está impingindo uma “guerra fria” aos ucranianos, ao usar mísseis e drones para destruir casas, prédios e infraestrutura de água e energia e matar civis inocentes. É impressionante ver imagens de pessoas idosas resilientes, tentando sobreviver em meio aos escombros, buscando água em baldes e catando galhos de árvores, para cozinhar algumas batatas e se aquecer do frio que já começa a dar as caras. “A Ucrânia vem sendo devastada, sofrendo com o deslocamento de milhões de refugiados, a morte de milhares de civis, a destruição generalizada da infraestrutura e uma brutal contração da atividade econômica” (trecho de documento do Clube de Madri, citado pelo cientista político Bolívar Lamounier em artigo no Estado de S. Paulo de 05/11).

Fala-se mesmo de um drama humanitário principalmente no interior da Ucrânia durante o próximo inverno. E tudo indica que a estratégia do Sr Putin é fazer não apenas a sofrida Ucrânia mas também a Europa a sentir mais frio e assim ferir a solidariedade entre os países-membros da União Europeia (UE), na medida em que uns (em especial do leste) sejam mais prejudicados do que outros com a escassez de gás natural. Acredita-se que o “general inverno” será inclemente durante o frio tanto nos próximos meses quanto em 2023/24 devido aos baixos estoques de gás natural. É com isso que joga o Sr Putin para dividir os apoiantes da Ucrânia; ou seja, com a impopularidade dos governos aliados da Ucrânia por conta da inflação nas alturas, principalmente devido aos preços da energia e dos alimentos, e do risco real de recessão em 2023 que imponha custos sociais muito elevados.

Num sentido mais amplo, Rússia e Estados Unidos/Europa praticamente estão envolvidos numa guerra (militar e econômica) que pode ser “quente” neste momento, mas há o temor de que se torne uma “guerra fria” nos moldes da época da União Soviética, acrescida da China. A Ucrânia virou um grande campo de testes de novos e mais sofisticados armamentos, embora ironicamente já se considera que o seu maior fornecedor de veículos militares seja a Rússia (os ucranianos recuperam em suas oficinas os tanques deixados para trás nas fugas dos soldados russos). E ainda há o risco de escalada para uma “guerra da energia”, em articulação com a OPEP (o cartel do petróleo), que pode levar à redução da oferta e à explosão dos preços, beneficiando as finanças da Rússia e prejudicando o abastecimento especialmente dos países europeus.

Muitos analistas entendem que UE, Reino Unido e Estados Unidos vacilaram quando das invasões da Geórgia (2008) e da Criméia (2014); houve até mesmo quem acreditasse na boa-fé do Sr Putin, como foi o caso da Sra Angela Merkel, então primeira-ministra da Alemanha, que de maneira pouco sensata colocou todos os ovos na cesta do Sr Putin, não apenas aprofundando a dependência do gás russo mais barato como também desativando as usinas nucleares do seu país. A questão é saber até quanto a UE vai manter o apoio decisivo à Ucrânia. Uma saída para fugir da chantagem russa, que seria a compra conjunta de gás natural de outros fornecedores, como foi a bem-sucedida aquisição comum de vacinas anti-convid, esbarra no conflito de interesses entre os países-membros. Estamos há quase um ano do início da guerra e não houve consenso sobre o boicote ao gás natural russo, gerando a situação desconfortável de a própria Europa ajudar a financiar o exército russo. Por conta disso, as sanções econômicas (já são 12.739 medidas sancionatórias desde a invasão em 24 de Fevereiro, segundo o jornal Público de 03/11) ainda não foram suficientemente eficazes. 

Mas ainda há outro risco. No curso prazo, os democratas podem perder a maioria no Senado e na Câmara dos Deputados dos EUA e, nas próximas eleições presidenciais, não está descartada a possibilidade de o Sr Trump retornar ao poder. Com ficaria o apoio dos EUA à Ucrânia? Há analistas que acreditam que, se esta guerra não for decidida antes, uma possível volta do Partido Republicano do Sr Trump ao poder forçaria o fim do conflito, provavelmente em benefício do Sr. Putin. Não nos iludamos: a Rússia nunca desistiu de tentar subjugar a Ucrânia. E a China, sua aliada, aguarda de camarote um desfecho favorável aos russos porque pretende anexar Taiwan, ainda que a força.

De qualquer forma, há quem acredite que a Europa em particular e o mundo em geral acabarão por beneficiar-se desta crise. “Da mesma forma que a covid acelerou a transição digital, esta crise vai acelerar a transição energética”, diz a diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva). Mas ela alerta que, antes disso, as pessoas precisam ajudar a sair desta crise economizando energia porque, se as importações de gás natural da Rússia secarem totalmente, a Europa não terá como repor os estoques em 2023, tornando o inverno ainda mais rigoroso. E para acelerar a transição energética a UE precisa priorizar as interconecções energéticas (energias renováveis e gás natural), o que exige entendimento, nem sempre fácil, entre os países-membros, para investir em infraestruturas (gasodutos, linhas de transmissão, terminais de gás natural liquefeito etc.) cujos projetos são geralmente de médio e de longo alcance.

É por tudo isso que estou do lado da Ucrânia nesta sua luta para sobreviver à barbárie como país e nação. O Sr Putin completou 70 anos (em 7 de outubro); pouco mais de dois meses mais novo do que eu. Fico a pensar como podem “véios” como nós estarem a brincar com fogo. É a busca insana por dinheiro e poder!

Na minha pequenez perante tanta ambição, limito-me a ações mais modestas tais como mais uma apresentação do livro “Cidades e Resendes”, desta vez em Vila do Porto na ilha açoriana de Santa Maria – terra do meu antepassado João de Resende Costa -, e a implantação (em andamento) do portal de integração denominado Rede de Cidades Resendenses (RCR).  

SOBRE O BRASIL

Desejo ao presidente eleito, Sr Lula da Silva, muita clarividência para que trate em alto nível e com transparência a relação constitucional com o Congresso Nacional, que se tornou mais conservador nas últimas eleições, tendo sempre em conta os interesses maiores da nação. Espero que o novo governo priorize facilitar os investimentos em infraestrutura básica – que é o que beneficia a maior parte da população -; estimular a inovação tecnológica e promover a reciclagem/treinamento de mão-de-obra numa ação articulada com municípios e empresas; e intensificar ações voltadas à promoção da igualdade de oportunidades, como o fortalecimento da educação básica e média.

Também espero que o novo governo recupere o protagonismo do poder público na preservação da Amazônia – e na maximização dos benefícios que o país pode ganhar com projetos de desenvolvimento sustentáveis - e que adote um plano nacional de estímulo às energias renováveis (solar fotovoltaica, eólica etc.) e à criação do mercado nacional de carro elétrico por meio do incentivo ao seu consumo.

SOBRE A CRISE CLIMÁTICA

Tudo indica que o Acordo de Paris (2015) foi por água abaixo e a Terra ficou mais quente. A 27ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2022 (COP27), no Egito, acontece sob o fracasso do Acordo de Paris que estabelecia limitar o aumento da temperatura média mundial em 1,5 °C em relação aos níveis anteriores à industrialização. Em palavras simples, os mesmos países que assinaram o Acordo de Paris sobre alterações climáticas falharam em cortar suas emissões de gases de efeito estufa em níveis suficientes para atingir os objetivos; na verdade, as emissões globais estão aumentando. O mundo já está cerca de 1,2°C mais quente do que era nos tempos pré-industriais, segundo a revista The Economist (05/11).

Com a pandemia e a guerra na Ucrânia, muitos países voltaram a produzir energia a partir do carvão e atrasaram a transição da matriz energética para fontes limpas e renováveis. Além disso, a proposta de criação do Fundo Climático, de US$ 100 bilhões, para ajudar os países mais pobres não saiu do papel, como lembrou o jornalista Celso Ming (O Estado de S. Paulo, 05/11). A questão das alterações climáticas é um problema mundial e, sendo assim, exige que todos os países trabalhem juntos no seu enfrentamento.

Recentemente, o Clube de Madri defendeu que se acelere a transição energética, ainda de acordo com Bolívar Lamounier. “É imperativo reduzir as emissões de gás em 43% até 2030, para viabilizar a neutralidade do carvão agregado até 2050. Isso imporá custos econômicos no curto prazo, mas o Fundo Monetário Internacional avalia que tais custos serão compensados por benefícios da desaceleração da mudança climática no longo prazo. Reduzir as emissões produzidas pelos maiores emissores é essencial para uma efetiva mitigação dos danos ambientais.”

 

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