Voltar a todos os posts

CARTA DE LISBOA (2023): Ano difícil, mas com esperança renovada

24 de Novembro de 2023, por José Venâncio de Resende

Foto publicada em 2013 no site do Parlamento Europeu por ocasião de votação sobre o mercado de crédito de carbono.

Caro leitor,

O ano chega ao final, com novas demonstrações de que a situação na nossa Terra vai de mal a pior. Veja o caso do clima: ondas de calor a bater recordes; secas e enchentes cada vez mais rigorosas; tempestades, furacões e tufões mais fortes e mais frequentes; a água do mar mais quente e o nível dos oceanos a subir (com as geleiras a derreterem em ritmo crescente); ar e mar cada vez mais poluídos devido aos transportes, indústrias, aquecimento doméstico e plásticos. É o homo sapiens em ação.

Não sei se há motivo para esperança, mas não custa fazer um esforço extra para acreditar em soluções. Daí que, para mim, um dos principais acontecimentos de 2023 foi a implantação da Lei do Clima pela União Europeia – um roteiro para combater, no continente, o aquecimento da Terra. A lei aprovada pelo Parlamento Europeu propõe reduzir até o ano de 2030, em pelo menos 55%, os níveis de emissões de gases de efeito estufa (GEE) - no caso o dióxido de carbono (CO2) - tendo como referência 1990.

Uma das propostas deste pacote ambicioso é a ampla reforma do mercado de carbono – o denominado Regime de Comércio Europeu de Licenças de Emissão (CELE). A ideia é limitar as emissões do gás tóxico CO2 na atmosfera através da imposição de cotas à indústria. Ou seja, as empresas têm de adquirir, em leilões, licenças de autorização por tonelada de CO2 emitida.

O ChatGPT define o mercado de crédito de carbono como uma abordagem econômica para lidar com as emissões de gases poluentes que contribuem para o aquecimento global e as mudanças climáticas. Ele tem como objetivo principal incentivar a redução das emissões por meio de mecanismos de precificação do carbono. Seu funcionamento envolve a emissão e a negociação de unidades de carbono, conhecidas como créditos de carbono. Esses créditos representam uma permissão para emitir uma quantidade específica de gases de efeito estufa.

A União Europeia tem o maior mercado de carbono do mundo – estimado em cerca de 11 mil instalações industriais emitindo perto de 40% dos GEE. São indústrias poluidoras tais como usinas de eletricidade, refinarias de petróleo, siderurgia, cimento e empresas de aviação. Os Estados europeus determinam, anualmente, o número de cotas que cada empresa terá direito, dependendo do setor de atividade. Se as emissões ultrapassarem a cota da empresa, ela deve comprar partes suplementares no mercado de carbono. Essas cotas devem ser eliminadas progressivamente até 2034.

A nova lei europeia incluiu no mercado de carbono as emissões de GEE dos setores marítimo e de transportes rodoviários e do aquecimento residencial. E ainda aprovou a diminuição gradual dos direitos de poluir da aviação. O caso do transporte aéreo é exemplar por dois motivos. Em primeiro lugar, espera-se o setor aéreo substitua o combustível em uso por combustíveis menos poluentes. Mas também se desenvolve no continente europeu um plano de revigoramento da ferrovia, por meio da integração regional, um “upgrade da rede” para concorrer com os aviões que fazem voos de curta duração.

As cotas, ou direito de poluir, visam fortalecer a competitividade da indústria europeia e evitar a fuga de carbono para países com regras mais brandas. Essas fugas de carbono, ou “dumping ambiental”, serão evitadas com a aplicação de um mecanismo de ajuste de carbono nas fronteiras (MACF), chamado de imposto de carbono. Em outras palavras, evitar a concorrência desleal, ou seja, que as indústrias europeias tenham de cumprir normas exigentes em seu território enquanto são importados bens de países cuja produção acelere o aquecimento global. É o caso da importação de matérias-primas como ferro, aço, cimento, alumínio, fertilizantes, eletricidade e hidrogênio. Os importadores destes bens terão de pagar qualquer diferença entre o preço do carbono no país de produção e o preço das licenças de emissão de carbono na União Europeia.

O modelo europeu é apontado por especialistas como exemplar no propósito de reduzir as emissões na atmosfera de dióxido de carbono das fábricas, e assim combater a piora do clima e o aumento da temperatura da terra. Diante das novas propostas, fica a dúvida sobre a viabilização do acordo de livre-comércio União Europeia-Mercosul. Uma novela que já dura décadas e tem exigências acrescidas, recentemente, relativas à proteção ambiental e aos direitos humanos. Mas, de repente, o governo brasileiro quer apressar a assinatura do acordo do papel, por temer a resistência do novo presidente da Argentina, o “ultralibertário” Javier Milei.

Duas guerras, insanidade

O ano termina com o mundo abalado por duas guerras em curso: a invasão russa ao território da Ucrânia, iniciada em 2022, e a mão pesada de Israel em Gaza (para muitos, desproporcional) contra o massacre e o sequestro levados a efeito pelo grupo islâmico Hamas em 7 de outubro em território israelense. Dois conflitos que, para além dos transtornos econômicos, sociais e humanitários, prejudicam o combate às alterações climáticas ao tirar o foco de um problema da maior gravidade. O ataque do Hamas aconteceu, coincidentemente, quando Israel se preparava para assinar um acordo bilateral com a Arábia Saudita, como parte dos “Acordos de Abraão” destinados a normalizar as relações diplomáticas árabe-israelense (já assinados com  os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein em 2020) sob a mediação dos Estados Unidos.

“Quando nos afastamos o suficiente, podemos ver exatamente quais são as forças que movem a geopolítica atual: a Ucrânia está tentando se juntar ao Ocidente. Israel está tentando se juntar a um novo Oriente Médio. E Rússia e Irã se uniram para tentar impedir ambos”, disse Thomas Friedman (03/11/2023 em O Estado de S. Paulo). Rússia e Irã são aliados, e pelos piores motivos; a começar que internamente não há democracia em nenhum dos dois países; segundo, querem combater o isolamento a que estão expostos promovendo (ou provocando) guerras e espalhando incertezas pelo mundo. É preciso lembrar que o Hamas, bancado pelo Irã, é contra a existência de Israel e os radicais israelenses que apoiam o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu são contra a criação do estado da Palestina. Daí as ações de selvageria tanto por parte do Hamas quanto do governo israelense – o “olho por olho, dente por dente”.

É imperioso que se coloque fim aos dois conflitos, um no Leste Europeu e outro no Oriente Médio. Quer pelo abandono por parte da Rússia de seu ímpeto imperialista, deixando os territórios invadidos e o caminho livre para a Ucrânia se consolidar como nação e aderir à União Europeia; quer pela criação do estado palestino (a ser governado por uma Autoridade da Palestina reformada, rejuvenescida e fortalecida). Dois estados onde judeus e palestinos possam conviver de maneira civilizada, cada qual respeitando a crença religiosa e a autodeterminação do outro povo.

Mas para isso é preciso ultrapassar os governos autocrático-religiosos tanto do sr. Putin (Rússia) quanto do sr. Netanyahu (Israel). Vladimir Putin joga claramente com a falta de resultados na contraofensiva ucraniana; o apoio de aliados como Irã, Coreia do Norte e China; o cansaço dos aliados da Ucrânia e a possibilidade da volta de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos. O custo de uma cedência ao instinto imperialista do regime russo será extremamente oneroso para a democracia. Daí porque considero no mínimo incoerente a aposta na aliança a qualquer custo com o eixo autocrático China-Rússia-Irã, tanto no âmbito do chamado “BRICS ampliado”* quanto no do G-20 (grupo das 19 maiores economias do mundo mais a União Africana) ou de outro tipo de organização.

Netanyahu foi um crítico ferrenho dos chamados acordos de Oslo (busca de paz duradoura entre os dois povos) de 1993. A foto do aperto de mãos entre o primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin e o líder da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat, sob o olhar cúmplice do então presidente norte-americano Bill Clinton, ficou para a história. Mas os acordos de Oslo – que representavam esperança real de paz mas que resultaram no assassinato deYitzhak Rabin em 1995 por um judeu fanático - foram “dinamitados” pelo sr. Netanyahu e seus aliados religiosos e radicais de direita.

Na verdade, o risco é não apenas de a guerra na Ucrânia se prolongar no tempo (em benefício da Rússia) e a crise em Gaza se espalhar pelo Oriente Médio (com o envolvimento de países como o Irã de braços dados com a Rússia). Mas também de a China aumentar o seu assédio aos países fronteiriços do mar do sul, bem como invadir Taiwan causando uma disrupção na indústria de semicondutores e na economia mundial. Isto, sem falar das guerras civis que pipocam em países africanos e asiáticos. É o que se pode chamar de “nova (des)ordem internacional”, de acordo com reportagem da revista The Economist**. Tudo isto temperado com um populismo crescente (e perigoso) entre políticos e partidos por toda parte.

Ano difícil

Este foi um ano muito difícil. Nem havíamos recuperado da pandemia quando nos deparamos com os dois conflitos. O impacto econômico e social tem sido forte e há muita incerteza pela frente, inclusive quanto à segurança com o risco acrescido de atentados fruto do radicalismo religioso. Portugal, por exemplo, já não é mais aquele país onde se tinha um dos custos de vida mais baixos da União Europeia. Inflação acima do patamar, juros elevados, custos estratosféricos de imóveis e arrefecimento das exportações – numa Europa praticamente estagnada –, agora agravados pela demissão do governo e novas eleições com resultado imprevisível, compõem a cena de incertezas que só não é mais catastráfica porque o nível de desemprego ainda está baixo. Condicionado por este cenário, tive de adiar meus planos de fazer algumas viagens pelo continente. Optei por ficar confinado no país e concentrar-me em viagens intrafronteira e na leitura de livros.

Entre os livros que li este ano, destaco a “biografia” fantástica denominada Roma – História da Cidade Eterna (Crítica, 2022), de Ferdinand Addis. Acaba por ser um roteiro para a viagem que desejo realizar a Roma, talvez em 2024. Para além do robusto conteúdo histórico e da arquitetura antiga, chamou-me a atenção o capítulo sobre as cinco basílicas patriarcais (os chamados “tronos de bispo”) de Roma: São João de Latrão (século V), Santa Maria Maior (século V), São Lourenço (século V), São Paulo (século IV) e de São Pedro (1626).

Aliás, tenho uma lista interminável de livros para ler antes de fazer minha viagem sem volta - muitos de autores com quem nunca tive contato. É o caso, por exemplo, de Ken Follett (mais de 188 milhões de exemplares vendidos de seus 36 livros), que li este ano pela primeira vez. Em Armadilha de Luz (Presença, 2023), o autor romanceia a evolução tecnológica (novas máquinas e novos processos de tecelagem) e as consequentes transformações econômico-sociais decorrentes durante a primeira revolução industrial, como o surgimento do sindicato de operários no setor têxtil - isto em plena guerra contra Napoleão Bonaparte. Um romance histórico que retrata a luta dos mais fracos pelos seus direitos e pela liberdade. “A revolução industrial está em marcha. A modernização desenfreada, feita com novas e perigosas máquinas, está a tornar muitos empregos obsoletos e a destruir famílias. Mas os trabalhadores das fábricas também vivem na miséria. À medida que um conflito internacional se aproxima (guerras napoleônicas), um pequeno grupo de habitantes de Kingsbridge - de que fazem parte a ¬fiandeira Sal Clitheroe, o tecelão David Shovelle - luta pela liberdade e pelo seu futuro” (do autor em entrevista à CNN Portugal, 19/11/2023).

E acabo de ler O segredo de Espinosa (Planeta, 2023), de José Rodrigues dos Santos, que conta a história de Bento (Benedictus) de Espinosa, o judeu português, nascido em Amsterdã (República dos Países Baixos, vulgo Holanda), que em pleno século XVII, para além de defender a separação entre Estado e religião que inspirou a Constituição dos Estados Unidos, levou ao extremo o cartesianismo do filósofo francês René Descartes. Como observou o professor Theodore Kraanen, da Universidade de Leiden: “O problema é que o seu Tractatus Theologico-Politicus levou o uso da razão até aos seus derradeiros limites. Nunca até agora ninguém tinha feito isso. O próprio Descartes, quando propôs o uso da razão como instrumento para desvendar a natureza, teve o cuidado de reservar um lugar especial para a intervenção divina. Deus manteve sempre o seu papel no grande esquema das coisas. O mesmo fizeram todos os outros filósofos, desde Galileu a Hobbes, passando por Bacon. A razão sempre teve Deus como limite. O problema é que o seu livro ultrapassou esse limite e veio dizer que a razão se sobrepõe à Bíblia. Pior, o seu tratado afirma mesmo que o próprio Deus está submetido às regras da razão. Isso é uma mensagem muito perigosa, como decerto não ignora. Ao mostrar que a lógica racional cartesiana, quando assumida em todas as suas implicações e levada às últimas consequências, coloca Deus numa situação de submissão à razão, é natural que muitas pessoas fiquem escandalizadas”.

Escandalizou não apenas os calvinistas como também os filósofos racionalistas seus contemporâneos. O livro de Bento teve a sua publicação proibida, numa época em que a maioria tinha a Bíblia como a única fonte de informação e ensinamento – mediante a interpretação dos religiosos -, mas, em conversa com o filósofo alemão Gottfried Leibniz, ele revelou o seu segredo: “Quando afirmo que Deus emite leis, senhor Leibniz, estou na verdade a afirmar que a natureza emite leis. Ou seja, quando falo de Deus, falo da natureza. Não diferencio Deus e a natureza. Se o mundo é regido por leis naturais e tudo o que ele contém é natural, então Deus é natural”. Como diz o autor do livro, Bento sempre negou que fosse ateu, mas “propôs que se substituíssem as religiões que apregoavam superstições por um sistema que usasse a razão”. E o seu conceito acabou por contribuir “para a emergência ou o desenvolvimento de um novo tipo de religião, as religiões políticas, como o liberalismo, o socialismo, o nacionalismo e o socialismo nacionalista”.

Espero que tenhamos um novo ano com menos espaço para a “desordem internacional” e para ódio e ressentimento, o que tornaria mais fácil resolver os problemas do mundo assim como de nossas vidas. Feliz 2024!

*BRICS: Originalmente, Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul; recentemente, foram aprovados como novos membros Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã.

**From Gaza to Ukraine, wars and crises are piling up (The Economist, 13/11/2023).  

Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário