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De imigrantes, negócios e cultura, à sombra da Ucrânia

26 de Abril de 2023, por José Venâncio de Resende

Lula e Costa viajaram na aeronave militar da Embraer "padrão NATO" (Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República do Brasil).

De Lisboa. 

A assinatura do acordo entre Brasil e Portugal sobre a concessão de equivalência de estudos no ensino fundamental/básico e médio/secundário – uma reivindicação antiga dos imigrantes – e a decisão de reforçar a presença em território português da Embraer – que já vendeu cinco aeronaves KC-390 à Força Aérea Portuguesa (que faz parte da OTAN/NATO*) a operarem a partir deste ano – estão entre as medidas anunciadas durante a recente passagem do presidente Luís Inácio Lula da Silva por Portugal. No caso da cooperação educacional, há ainda a decisão de estudar a ampliação do acordo para a equivalência de graus e títulos de ensino superior.

Quanto à Embraer, a intenção é avançar para o desenvolvimento de uma base tecnológica e industrial de defesa em Portugal, que inclusive permitirá ampliar a produção conjunta de aeronaves militares “padrão NATO”. Como a demanda portuguesa não é suficiente para absorver toda a produção, a empresa vai acabar fornecendo seus aviões para outros países da NATO/OTAN. E como bem salientaram o presidente brasileiro Lula da Silva e o primeiro-ministro português  Antônio Costa, este é um modelo bem-sucedido de parceria na área empresarial que precisa ser estendido a outros setores da economia; ou seja, há um imenso espaço para dinamizar o comércio exterior entre os dois países. Costa ressaltou o potencial de projetos voltados para a transição energética, em especial um estudo conjunto em torno do hidrogênio verde. 

A chegada de Lula da Silva a Portugal foi marcada pela desconfiança em relação à posição do presidente brasileiro sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia, manifestada em recente visita à China, na qual ele culpou também o país invadido (e consequentemente seus apoiadores) pela guerra e vinha defendendo um acordo de paz no mínimo assimétrico. Como membro do BRICS (agrupamento de cinco países emergentes)** e com a volta do ativismo do Brasil na política externa, o País passou a ser visto como inclinado a fechar com posições russas e chinesas em questões delicadas como esta, que envolve Estados Unidos e União Europeia no âmbito da NATO/OTAN. Não apenas interesses comerciais, mas também a questão ideológica contamina esta discussão.    

No mesmo dia (24) em que Lula da Silva cumpria agendas no Porto e em Lisboa, Bruxelas, por meio do chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, desafiou o presidente brasileiro a visitar Kiev para conhecer de perto a realidade da guerra, se quiser se credenciar como um potencial mediador “credível” para o conflito. E, um dia depois, na Assembleia da República, durante a cerimônia de recepção a Lula da Silva que antecedeu às comemorações da Revolução de 25 de abril*** – a popular Revolução dos Cravos -, ficaram claras as diferenças de ênfase.

O presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, foi explícito: “Acreditamos que é urgentíssimo trocar as armas pelas conversações político-diplomáticas, que ponham fim ao conflito e salvaguardem, elas sim, os interesses legítimos em presença. Precisamos, na verdade, de falar mais de negociações e menos de batalhas. A condição é simples e depende unicamente da Federação Russa: é o agressor cessar as hostilidades e retirar-se do país soberano que invadiu”.

Lula da Silva, que em outro momento da visita a Portugal já havia condenado a agressão da Rússia contra a Ucrânia, num possível reposicionamento em relação à invasão russa (pelo menos, esta é a expectativa por aqui), defendeu, em seu discurso na Assembleia da República, o papel do diálogo e da diplomacia para conseguir a paz. Ou seja, não se referiu à devolução dos territórios invadidos, a principal exigência da Ucrânia e de seus aliados.

Acordo UE-Mercosul: a longa espera

Durante o Fórum Empresarial Portugal-Brasil, no dia 24 de abril, em Matosinhos (região do Porto), o primeiro ministro português Antônio Costa destacou que o acordo Mercosul – União Europeia**** é absolutamente estratégico para Portugal, ao permitir melhores oportunidades para aumentar as relações comerciais com o Brasil. Iniciado em 1999 e assinado em 2019, o acordo de livre comércio Mercosul - União Europeia vem se arrastando no tempo. Agora precisa ser ratificado pelos congressos nacionais dos envolvidos dos dois continentes.

Por isso, Costa prometeu “trabalhar mesmo para concluir este acordo entre a União Europeia e o Mercosul. As posições dos dois governos sobre a rápida conclusão deste acordo de livre comércio constam da Declaração Final da XIII Cimeira Luso Brasileira. Ao mesmo tempo, Lula da Silva e Costa reafirmaram o interesse em ver ampliados os investimentos bilaterais em áreas prioritárias como infraestruturas, energia, novas tecnologias, saúde, espaço, defesa e mar e oceanos.

O problema é que o diabo mora nos detalhes, no caso do acordo Mercosul - União Europeia. São negociações complexas que envolvem áreas como marcos regulatórios, tarifas alfandegárias, regras sanitárias, propriedade intelectual e compras públicas. E sobretudo interesses conflitantes. Daí as dificuldades em aprovar o acordo nos parlamentos de cada país.

Dois escritores, duas situações

Com a presença dos presidentes Marcelo Rebelo de Sousa (Portugal) e Luís Inácio Lula da Silva (Brasil), o músico e escritor brasileiro Chico Buarque de Holanda recebeu formalmente, em 24 de abril, o Prêmio Camões de literatura em língua portuguesa, quatro anos depois de seu anúncio. Se a entrega do Prêmio Camões a Chico Buarque teve ampla repercussão nas mídias portuguesa e brasileira, passou meio que despercebida a referência à escritora Clarice Lispector***** feita por Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República de Portugal, na sessão solene de recepção ao presidente brasileiro Lula da Silva, anterior à sessão oficial do Dia da Revolução de 25 de abril.

Eis o trecho do discurso de Santos Silva:

“O elo mais fundo entre Portugal e o Brasil é a língua comum. A língua e as literaturas que nela se exprimem e que constantemente a recriam. Assim nos oferecendo um modo particular de nos entendermos, de nos situarmos e compreendermos o mundo. Inquietos, imaginativos, desassossegados, como tão bem nos fazem ver dois escritores universais, que cultivaram como poucos a nossa língua: Fernando Pessoa e Clarice Lispector.

Pessoa e Lispector foram, ao mesmo tempo, criadores e personagens de vários mundos: das circunstâncias em que se fizeram, ela brasileira nascida na Ucrânia, ele lisboeta parcialmente formado na África do Sul; e dos tempos outros que souberam forjar, com seu gênio, solidão e ousadia. Pois quero pedir de empréstimo, a Clarice Lispector, o título da coletânea de crônicas que acaba de ser publicada em Lisboa: A Descoberta do Mundo.

Preciso desse título. Porque o mundo existe para ser descoberto. Para nos descobrirmos descobrindo-o. Claro que, como tão bem mostrou a poesia de Alberto Caeiro, o mundo existe sempre antes de nós o descobrirmos; já está lá antes de o vermos. Mas é o vê-lo que nos faz ser; descobrindo-o é que nós descobrimos o nosso ser. Descobrir o mundo, descobrir a pluralidade dos universos que existem; e descobrir os novos mundos que vamos todos, em maior ou menor harmonia, construindo.”

Pedido de desculpas

A sessão solene na Assembleia da República, que marcou os 49 anos da Revolução dos Cravos, foi marcada por um discurso “pedagógico” (expressão usada por alguns analistas políticos) do presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Entre outras afirmações, ele disse que Portugal deve um pedido de desculpas ao Brasil pelas dores do processo de colonização. Não é apenas pedir desculpa - devida, sem dúvida - por aquilo que fizemos, porque pedir desculpa é às vezes o que há de mais fácil; pede-se desculpa, vira-se as costas e está cumprida a função. Não, é o assumir a responsabilidade para o futuro daquilo que de bom e de mau fizemos no passado.”

Conhecido ainda como o “Dia da Liberdade”, a data mereceu ainda um alerta do presidente português: “Que este 25 de Abril, que é o começo do 25 de Abril de 2024 (ano do cinquentário), seja um momento de evocação da democracia que ele tornou possível, da liberdade que ele permitiu que fosse vivida pelo maior número de portugueses, de passos pela descolonização e pós-descolonização tardias, é certo, mas que ele impôs, e que conheceram altos e baixos, sucessos e fracassos, do desenvolvimento que ele quis acelerar e que tem tido altos e baixos, sucessos e fracassos”. 

Por fim, enfatizou o papel do povo na democracia: “Última palavra no povo, com o povo tendo a possibilidade que só em liberdade a democracia existe, nunca em ditadura, de continuar a escolher o 25 de Abril que quer, mesmo que saiba que é imperfeito, que durará pouco tempo e ficará aquém das expectativas, com a certeza de que o 25 de Abril está vivo porque nasceu para criar a ambição, para criar a insatisfação, para criar o não acomodamento, para criar a exigência crescente, incessante e imparável de mais e melhor, sempre. Viva o 25 de Abril, viva a liberdade, viva a democracia, viva Portugal.”

*Organização do Tratado do Atlântico Norte (da sigla em inglês NATO) 
** Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
***Revolução de 25 de abril, também conhecida como Revolução dos Cravos, foi movimento político e social, ocorrido em 1974, que depôs a ditadura salazarista do Estado Novo, vigente desde 1933, iniciando o processo de redemocratização do país consolidado com a entrada em vigor da Constitutição de 25 de abril de 1976. 
****Mercado Comum do Sul que reúne Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. 
*****Clarice Lispector, escritora brasileira, nascida na Ucrânia, considerada uma das mais importantes do século XX. De família judaica, perdeu suas rendas com a Guerra Civil Russa e foi obrigada a emigrar, em 1922, com os pais e duas irmãs, em decorrência da perseguição a judeus, inclusive com extermínios em massa.

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