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JMJ Lisboa 2023: “A Igreja é para todos, todos, todos!”, insistiu o papa Francisco

07 de Agosto de 2023, por José Venâncio de Resende

Cerca de 1,5 milhão de jovens com o papa no encerramento da JMJ Lisboa.

Uma revelação do bispo D. Américo Aguiar, responsável pela JMJ Lisboa, às vésperas do evento, pode ter passado despercebida*. “Nós andamos meses aqui a trabalhar para um encontro presencial com os jovens ucranianos e com os jovens russos.” Mas, em visita à Ucrânia antes da Jornada, o futuro cardeal de Portugal testemunhou “no terreno, nas casas, nas famílias, nas cidades aquilo que esses jovens estão a viver” em meio a um país destroçado pelos invasores russos. E D. Américo ouviu desses jovens o pedido para que não os forçassem “a um tipo de mediatização mais ou menos simpática de um encontro (com os jovens russos); pediram que nós não fizéssemos isso. É preciso tempo! E o tempo da paz, o tempo da reconciliação é um tempo muito especial dos corações”. “E o que eu aprendi lá e ouvi e senti no meu coração, olhos nos olhos, coração a coração, é que não é o tempo pra isso. Os corações sangram, as feridas estão abertas”. A expectativa de D. Américo era de que “os jovens ucranianos e os jovens de outros países que estão em conflito, que estão em Guerra” gritassem “aos corações dos adultos, aos corações das lideranças que não querem a opção da Guerra”. E que a JMJ Lisboa pudesse ser “uma semente de paz”.

E a paz foi mesmo um dos focos da JMJ Lisboa, liderada pela papa Francisco que, na quinta-feira (3 de junho), se encontrou, na sede da Nunciatura Apostólica, com um grupo de 15 jovens peregrinos da Ucrânia que participava da JMJ Lisboa. Segundo a imprensa da Santa Sé, o papa ouviu “as histórias tocantes” desses jovens e manifestou “a sua proximidade, na dor e na oração”. No final de meia hora de encontro, “o Papa e os jovens recitaram juntos o Pai-Nosso, com o pensamento voltado para a martirizada Ucrânia”. No dia anterior (2), durante a reunião com autoridades políticas, representantes da sociedade civil e corpo diplomático, o papa Francisco já havia cobrado da Europa mais criatividade perante a guerra na Ucrânia e a crise migratória no continente. “Olhando com grande afeto para a Europa, no espírito de diálogo que a carateriza, apetece perguntar-lhe: para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra na Ucrânia e com tantos conflitos que ensanguentam o mundo?”

Medos x sonhos 

O papa Francisco compareceu a dezenas de cerimônias, entre encontros com autoridades e religiosos e com estudantes universitários, visita a projetos multicultural e social, deslocação ao santuário de Fátima para rezar pela paz e contra as guerras, encontros com os jovens no Parque Eduardo VII (acolhida) e no Parque Tejo (vigília e “envio”) e com os voluntários antes de voltar ao Vaticano. E, durante cinco dias, o papa ia de encontro em encontro, de discurso em discurso, e entre um e outro, incansável, quebrava protocolo e distribuía sorrisos, bençãos e afagos aos populares, gente de todas as idades, concentrados nas ruas e praças à sua espera e nos locais de encontro marcado com os jovens.

Na Universidade Católica, o papa reuniu-se com estudantes de várias partes do país, quando pediu-lhes “a coragem de substituir os medos pelos sonhos: não administradores de medos, mas empreendedores de sonhos. Na sede lisbonense da organização internacional (multicultural e inclusiva) Scholas Occurrentes, projeto de redes educativas criado por ele ainda enquanto bispo na Argentina, o papa respondeu perguntas dos jovens e lembrou que a crise faz parte da nossa vida: há que assumir e enfrentar as crises! É preciso transformar o caos em cosmos! 

Na visita ao Centro Paroquial da Serafina – um dos bairros mais pobres de Lisboa onde “nem os polícias entravam”, segundo o pároco Francisco Crespo, há mais de 40 anos desenvolvendo ali uma obra social para crianças, jovens e idosos -, o papa desafiou as instituições socio-caritativas da Igreja Católica a “sujar as mãos” e não ter “nojo da pobreza dos outros”. 

Estaleiros da esperança

Para além da guerra na Ucrânia e da migração, o primeiro dia do papa Francisco na JMJ Lisboa foi reservado a outro assunto espinhoso: abusos sexuais na Igreja. O tema foi tratado, direta e fortemente, com o clero e os religiosos da Igreja portuguesa, por acentuar “a desilução e a raiva que alguns nutrem em relação à Igreja”, devido ao “mau testemunho” e aos “escândalos”. O encontro com 13 vítimas de abusos logo no primeiro dia da Jornada reforçou a ideia da vontade de enfrentar o problema. 
Em seu discurso, durante reunião com autoridades, membros do corpo diplomático e representantes da sociedade civil e da cultura, o papa defendeu que nos devemos concentrar em “três estaleiros de construção da esperança onde podemos trabalhar todos unidos: o ambiente, o futuro, a fraternidade.

Em relação ao ambiente: “Estamos a transformar as grandes reservas de vida em lixeiras de plastico. O oceano lembra-nos que a existência humana é chamada a viver de harmonia com um ambiente maior do que nós; este deve ser guardado com cuidado, tendo em conta as gerações mais novas”. 

Quanto ao futuro: “…o futuro pede para se contrariar a queda da natalidade e o declínio da vontade de viver. A boa política pode fazer muito neste sentido; pode gerar esperança. Com efeito, não é chamada a conservar o poder, mas a dar às pessoas a possibilidade de esperar. É chamada, hoje mais do que nunca, a corrigir os desequilíbrios económicos dum mercado que produz riquezas mas não as distribui, empobrecendo de recursos e de certezas os ânimos”. 

Por fim, sobre a fraternidade, “…no contexto geral duma globalização que nos aproxima mas não nos dá uma proximidade fraterna, somos todos chamados a cultivar o sentido da comunidade, começando por ir ter com quem vive ao nosso lado. Com efeito, como observou Saramago, «o que dá verdadeiro sentido ao encontro é a busca; e é preciso andar muito, para se alcançar o que está perto» (Todos os nomes, 1997).” Mas não ficou por aí, citou outros poetas consagrados, de Camões a Pessoa.

Acolhimento

O Parque Eduardo VII, batizado como “Colina do Encontro”, recebeu cerca de 500 mil jovens para o encontro da acolhida, na tarde de quinta-feira (3), um dos mais aguardados, num ambiente de muita alegria, dança, música e emoções à flor da pele. Neste encontro, o papa Francisco apelou à multidão para que “nos chamemos pelo nome e lembremos uns aos outros a beleza de ser amados e preciosos, conscientes de que Deus nos ama como somos, com nossas fraquezas e nossos limites, e de que a Igreja nos acolhe a todos, todos”.

O papa acentuou que na Igreja há lugar pra todos; repetiu a palavra TODOS e insistiu para que a multidão dissesse bem alto e várias vezes a palavra “todos”: Repitam comigo. Quero que digam na vossa própria língua: todos, todos, todos. Assim, deixava claro que não há lugar para discriminações de qualquer tipo. Amigos, quero ser claro convosco, que sois alérgicos às falsidades e a palavras vazias: na Igreja há espaço para todos e, quando não houver, por favor façamos com que haja, mesmo para quem erra, para quem cai, para quem sente dificuldade.

Foi o maior fenômeno de massa, o maior contágio coletivo, que eu jamais presenciei”, disse ao vivo na TVI o experiente jornalista José Alberto Carvalho. Isto porque ele ainda não tinha presenciado a Via Sacra da sexta-feira (4). 

Via sacra das fragilidades 

A Via Sacra das 14 fragilidades, identificadas pela própria juventude, concentrou cerca de 800 mil jovens na Colina do Encontro. Foram 14 estações, que refletiram 14 fragilidades (ou cruzes) identificadas pela própria juventude, de acordo com um grupo formado por 50 jovens de 22 países que organizou a Via-Sacra (recriação do caminho de Jesus para a crucificação). 
Falou-se de saúde mental (aliás, tema muito aplaudido), pobreza, violência, solidão, falta de compromisso, intolerância, individualismo, destruição da criação, dependências, incoerência, crise humanitárias, produtivismo, desinformação e medo do futuro, tudo encenado de forma bastante original, num percurso vertical da Cruz entre os andaimes que formam o palco, de jovem a jovem. Algo bastante inédito, como definiu a diretora artística Matilde Trocado. Segundo a reportagem do Vatican News, o projeto nasceu da Companhia de Jesus com as reflexões de cada estação feitas pelo jesuíta de Lisboa Pe. Nuno Tovar de Lemos e os painéis do Pe. Nuno Branco. 

Em sua intervenção, o papa destacou a Cruz que acompanha cada Jornada Mundial da Juventude, que “é o ícone desta jornada”, o significado maior do amor maior, “a beleza de um amor que dá a sua vida por nós”. E ainda evocou as “lágrimas” das novas gerações: “Faço-vos uma pergunta, mas cada um responde para si: choro, de vez em quando? Há coisas na vida que me fazem chorar? Todos choramos na vida, ainda choramos, e aí está Jesus, Ele chora conosco”. O papa pediu um momento de silêncio à multidão (e foi atendido), para que cada um “diga a Jesus por que razão chora na vida”. 

No penúltimo dia da JMJ, o papa Francisco visitou o Santuário de Fátima e, na Capelinha das Aparições, rezou “em silêncio” e com dor pela paz no mundo, segundo a imprensa do Vaticano. E, ao recitar o terço na companha de jovens com deficiência e reclusos, voltou a insistir que a Igreja é para todos, todos, todos! E ainda perante os milhares de peregrinos pediu uma Igreja aberta, “Acolhedora, sem porta” pois “a Igreja não tem portas para que todos possam entrar”.

“Levanta-te e vai”

Na noite do sábado (5), o papa presidiu a vigília de oração no Parque Tejo, batizado de Campo da Graça, onde estavam concentrados cerca de 1,5 milhão de jovens. A primeira parte foi mais performática. A ideia era contar através da “música e da dança contemporânea” a história de “um encontro transformador” e estimular nos participantes a “vontade de continuar a servir”. A segunda parte foi dedicada à adoração do Santíssimo. 

Em silêncio, a multidão de jovens peregrinos aguardou, de olhos postos no altar-palco, as palavras do papa Francisco, que lembrou quem foram nossos “raios de luz”, “as raízes da nossa alegria: pais e avós, padres e freiras, catequistas, animadores, professores”. Como consegue “uma árvore, grande e bela resistir às tempestades e aos ventos que a sacodem?” “Graças às suas raízes.” 

O papa ainda exortou os jovens a “levar aos outros” “a alegria é missionária e aconselhou: a única situação em que é lícito olhar de cima para baixo para uma pessoa é para a ajudar a levantar-se. E no final pediu: “Jovem que estás aqui, cansado porque caminhaste tanto, mas feliz porque fizeste mais leve a alma com uma sensação de liberdade que as coisas não te dão, levanta-te: abre o coração a Deus, agradece-Lhe, abraça a beleza que és; enamora-te da sua vida e descobre cada dia que és amado. E depois vai: sai, caminha com os outros, procura os que estão sozinhos; colora o mundo com os teus passos e pinta de Evangelho as estradas da vida. Levanta-te e vai.” 

Todos dormiram no chão desconfortável, em sacos-cama, uns aquecendo os outros, na noite amena de Lisboa. Mas acordaram bem-dispostos. 

“Não tenham medo” 

Na “missa de envio” (na manhã de domingo de 6 agosto, no Parque Tejo), o papa deixou a estes jovens uma mensagem forte: Vocês têm um sonho grande, mas às vezes ficam ofuscados pelo temor de não os verem realizado. Às vezes pensam que não serão capazes. A vocês, que pensam que fracassaram. A vocês, jovens, que querem mudar o mundo e lutar pela justiça e pela paz, que investiram o melhor do vosso esforço e imaginação, mas ficam com a sensação de que não é suficiente. A vocês, jovens, de quem a Igreja e o mundo têm necessidade como a terra da chuva, que são o presente mas também o futuro. Sim, precisamente a vocês, jovens, é que Jesus diz ´Não tenham medo´, ´Não tenham medo´” (frase que repetiu várias vezes).

Antes de rezar o Angelus no final da Eucaristia, o papa agradeceu a todos os organizadores da JMJ Lisboa e aos jovens presentes, mas não esqueceu dos que “não puderam vir por causa de conflitos e de guerras. No mundo são muitas as guerras, são muitos os conflitos. Pensando neste continente, sinto grande tristeza pela querida Ucrânia, que continua a sofrer muito. Amigos, permitam-me também que eu, já idoso, compartilhe convosco, jovens, um sonho que trago cá dentro: é o sonho da paz, o sonho de jovens que rezam pela paz, vivem em paz e constroem um futuro de paz”. 

E, no final, anunciou que a próxima Jornada Mundial da Juventude acontecerá em 2027 em Seul, na Coreia do Sul, Ásia. 

Maior evento de Portugal 

A JMJ 2023 (lisboa2023.org), coordenada pelo futuro cardeal D. Américo, 49 anos, e com amplo envolvimento do governo e de câmaras municipais (prefeituras) da “grande Lisboa”, foi o maior evento internacional jamais realizado por Portugal (o 13.º país a acolher este encontro de jovens promovido pela Igreja Católica), depois de adiado um ano devido à pandemia de covid-19. A dimensão da Jornada - voltada à peregrinação e à evangelização dos jovens - pode ser medida por alguns números, embora muitos deles careçam de confirmação por terem sido divulgados às vésperas do evento.

Muitos dos 354 mil jovens peregrinos inscritos, de 151 países, participaram em Portugal de atividades como “Dias da Diocese”, hospedando-se em famílias de acolhimento, escolas, pavilhões esportivos e instituições católicas no interior do país, antes de chegar a Lisboa. Para o encerramento da JMJ Lisboa, uma área de 100 hectares no Parque Tejo (entre Lisboa e Loures), com o altar-palco (4 metros de altura e capacidade para cerca de 1240 pessoas), foi construída para a vigília e a “cerimônia de envio”, recebendo cerca de 1,5 milhão de jovens nos dias 5 e 6 de agosto - agora, vai ser destinada ao público e à realização de eventos. Cerca de um milhão de hóstias foram produzidas pelas irmãs Clarissas do Mosteiro do Imaculado Coração de Maria, para as eucaristias da Jornada; e para isso foram utilizadas duas toneladas de trigo alentejano, doado por entidades do setor. Participaram mais de 20 mil voluntários de 143 países e mais de 700 bispos e cardeais.

Um dos destaques do programa de atividades foi o “Festival da Juventude”, com a estimativa de mais de 500 eventos em 100 espaços dos municípios de Lisboa, Loures e Cascais. A agenda incluiu propostas culturais, artísticas, religiosas e desportivas, que promoveram a “partilha da experiência cristã dos jovens de todo o mundo e a criatividade e generosidade que essa experiência gera”, segundo a Agência Ecclesia. Foram previstos mais de 290 concertos em palcos e espaços exteriores e também em espaços interiores (auditórios, salas de cinema, teatros, museus, espaços de exposições e igrejas). Foram 17 exposições distribuídas por vários espaços da capital portuguesa, com diversos temas. 

Mas a grandiosidade do evento vai além dos números. Durante os Dias das Dioceses e da Jornada, o que mais se ouvia dos jovens que chegavam a Portugal eram expressões como sonho realizado, alegria, ver o papa, experiência, fraternidade, conhecimento, fé, convivência, felicidade, oportunidade, união, gratidão, partilha, amor, interagir, compartilhar, intercâmbio de culturas, esperança e caminhada. Quem andou por Lisboa e arredores nos dias oficiais da JMJ, dificilmente não terá esbarrado com grupos de peregrinos, transportando (ou enrolados em) bandeiras coloridas de seus países – muitos inclusive a autografar bandeiras dos jovens de outros países -, a caminhar pela cidade, entoar cânticos, sentar/comer/deitar em praças públicas e em longas filas de restaurantes previamente contratados. 

Dinheiro Público 

O dinheiro público investido na Jornada, estimado em cerca de 80 milhões de euros (governo e câmaras municipais de Lisboa e de Loures), foi motivo de polêmica, principalmente porque o Estado é laico e grande parte dos investimentos foi feita por ajuste direto (sem licitação). Mas especialistas e analistas, como o comentarista da CNN Portugal Paulo Portas, consideram que o custo-benefício é altamente favorável a Portugal. Estudo feito pelo ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa) e a consultoria PwC mostra que o impacto da JML na economia portuguesa, em termos de valor acrescentado bruto, estaria entre 411 e 560 milhões de euros; em valor de produção, estaria entre 800 milhões e 1,1 bilhão de euros; portanto, bem acima dos gastos públicos. Mas em termos políticos o assunto ainda vai dar o que falar, principalmente porque o Estado é laico. 

*CNN Portugal (30/07/2023)   

Fontes: CNN Portugal, Agência Ecclesia, Vatican News 

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