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Irmão Aristides

29 de Marco de 2023, por Evaldo Balbino

“Bendito é o nome santo do Senhor!”. Pausada e enfaticamente, num soletrar de fé e visitação do Espírito Santo, essa frase voava do púlpito sobre toda a pequena igreja. E vinha da boca de homem branco, rosto vermelho pelo esforço no empenho das palavras. Suas mãos gesticulavam, ora indo sobre as palavras bíblicas, buscando não se perderem nas linhas ancestrais, ora se levantando para os lados e para o alto, admoestando, confortando e louvando o sagrado.

Era o irmão Aristides, descendente de italianos. A barriga buscando caminhar adiante do homem, sobejando ela no tanto existir e balançar, nas vozes duras e meigas da boca, no cantar altissonante, no dar risadas amorosas e sem fim. Um senhor ítalo-brasileiro, alegre e religioso, brincalhão com tanta meiguice e um olhar de veludo e voz trovejando amorosa nas objurgatórias e execrações diante da igrejinha.

Era o nosso cooperador ou, como muitos conhecem em diversas igrejas, nosso pastor. Porém não dizíamos “pastor”, pois na Congregação Cristã no Brasil, no seguir dos desígnios bíblicos, o nosso único pastor é Jesus Cristo, o deus humanado, o que se fez homem para sentir no corpo a beleza e a dor desta existência, para compreendê-la no seu cerne e para apaziguá-la e libertá-la da Morte Eterna. Precisou morrer para isso: a necessidade nossa de matar nosso deus para crer nele.

As alegrias e brincadeiras do irmão Aristides me tinham como um dos “alvos”. Deixei a chupeta mais ou menos aos dez anos de idade. Não abria mão dela ao me deitar. Na duração da madrugada, a chupeta era um amuleto, openhor de que eu seria sempre criança. Não que a infância seja um puro mar de rosas, um mundo onde tudo é várzea. Sem idealizações aqui. Apenas a chupeta cumpria a função de me garantir ser sempre pequeno e ficar protegido pelos braços imorredouros de minha mãe.

No entanto, carregar o amuleto me dava o desprazer de ouvir adultos mangando de mim, dizendo-me que um cavalão não podia mais ter bico na boca, coisa de criancinhas. Minha mãe só me pedia amorosa que eu largasse o bico. Diante da minha dificuldade em fazê-lo, seus olhos compreendiam tudo, e ela me amava e me aceitava. Até hoje tenho seu olhar sobre mim.

Sabendo da minha mania, o irmão Aristides não perdia tempo. Era só me olhar, e lá vinha sua voz retumbante e macia: “Olá, chupeta! A paz de Deus!”. Eu lhe respondia um “amém” de início meio envergonhado, mas depois fui me acostumando abrandado e contente. Afinal, em cada abordagem, balas para quem tem boca. E ele comprava as jujubas, coisa do outro mundo de tão gostosa. A bala de goma me caía bem, adoçando os cultos: os ouvidos e olhos vendo e ouvindo a voz do irmão Aristides, e a boca sendo enternecida no experimento das canduras da vida.

A mesma voz do homem alto e barrigudo também reboava nos quatro cantos do templo. Eram trovões de amor e de fúria. A respiração ofegante, as pupilas dilatadas, a boca ameaçando espumar como as muitas ondas em fúria de um oceano descomunal.

Olhando para tanto vigor, eu me lembrava de passagens bíblicas. O salmista pregando que a “voz do SENHOR ouve-se sobre as águas; o Deus da glória troveja; o SENHOR está sobre as muitas águas”. O profeta Ezequiel ouvindo a voz do Senhor e dando o testemunho dela: era como a voz de muitas águas! O discípulo João, amado por Cristo e perseguido pelo império romano, profetizando na ilha de Patmos: “Também ouvi uma voz como a de grande multidão, como a voz de muitas águas, e como a voz de fortes trovões, que dizia: Aleluia! Porque já reina o Senhor nosso Deus, o Todo-Poderoso.” Na vulcânica ilha, no fundo da caverna ilhada, no exílio-prisão, o visionário apóstolo enxergando a força sagrada.

O meu corpo inteiro lia e ouvia o que se dizia no púlpito. E do que o irmão Aristides falava, entre narrações, profecias, admoestações, promessas de vida e de bênção, imprecações – de tudo isso resulta o que sempre ecoa em meus ouvidos: quem tem ouvidos ouça o que diz a existência humana carente de Deus!

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