A produção industrial da ignorância


Voz do Cidadão

Fernando Chaves*0

“As convicções são prisões” – Friedrich Nietzsche

 

“É necessário que ao menos uma vez na vida você duvide, tanto quanto possível, de todas as coisas” - René Descartes

 

Se é possível divulgar e propagar informação e conhecimento, é um tanto óbvio e lamentável que também se possa disseminar deliberadamente a ignorância. E o que é pior: propagar a ignorância pode ser bem mais fácil, acreditem. Hoje, a produção da ignorância atinge os níveis mais elevados de profissionalismo e especialização. Níveis industriais.

O que muitos ainda não compreenderam é que, quando falamos de fakenews, não estamos tratando daquela informação que contém erros e equívocos acidentais ou daquele conteúdo que distorce a realidade porque a pessoa que o produziu ou propagou cometeu um erro ou uma imperícia ao tratar os dados ou informações. O que chamamos de fakenews é um conteúdo equivocado, produzido deliberadamente e disseminado em escala, com o intuito de distorcer a realidade, produzir desinformação em massa e, por último, motivar algum tipo de ação, sobretudo política.

Não raro, as fakenews não produzem apenas desinformação e ignorância. Por meio de técnicas de psicologia das massas, elas excitam sentimentos como o medo, o ódio ou a intolerância, com o objetivo de desencadear ações e posicionamentos pouco ponderados, impulsivos, sem reflexão, apaixonados. Como se vê, as fakenews vão muito além daquela opinião ou informação sem fundamento e equivocada que um cidadão emite ou propaga por mero descuido. Elas são uma estratégia de guerra de informação coordenada e financiada em proporção industrial. 

Uma fakenews é sempre atrativa, sedutora e quase sempre entregue no endereço correto (WhatsApp, e-mail, feed da rede social). Ferramentas de um marketing corrompido, porém eficiente, elas são produzidas sob medida para se assemelhar a uma narrativa verdadeira da realidade, afinal serão consumidas como tal. Assim, apelam para recursos expressivos que resgatam a própria epistemologia popular, a visão prática, simples, fragmentária e imediata do senso comum, em contraponto à visão abstrata, totalizante, complexa, prospectiva que a análise científica e social muitas das vezes requer.     

Assim como as fakenews, há outros artifícios que têm por objetivo distorcer a visão que as pessoas têm da realidade, como os robôs ou bots, que são perfis falsos e automatizados, pagos para disseminar determinadas (des)informações ou para curtir, seguir ou comentar em determinados perfis de redes sociais na internet.

É assim que pensamentos anticientíficos são propagados, como temos visto no caso tão emblemático do movimento antivacina ou na produção de notícias falsas voltadas para atacar a reputação de instituições científicas e universidades, na maioria das vezes com finalidades políticas e de mercado.  

Em qualquer período histórico, a busca pela verdade e pelo conhecimento sempre foi um caminho árduo que exige dedicação, esforço e desprendimento para se abandonar uma velha visão equivocada em busca de uma nova forma de se compreender e explicar o mundo. Aprender nunca foi fácil. É dolorido muitas vezes. É essa dor da busca e da dúvida que, não raramente, o ser humano deseja evitar e que nossa sociedade pós-moderna e hiperconetada tem tido muito êxito em exilar de nossas vidas. Em seu lugar, pode-se colocar uma convicção pré-estabelecida, assentada em preconceitos e sentimentos, balizada no subjetivismo. Se nas sociedades tradicionais tendia-se à imposição de uma verdade rígida e inquestionável sobre as pessoas em geral, o que foi tensionado pelos valores iluministas de emancipação do pensamento crítico e da razão, na sociedade contemporânea pós-iluminista e relativista as narrativas do mundo, ou seja, as “verdades”, são diversas, prolíferas e não mais impostas de modo rígido sobre a sociedade. Elas são entregues como produtos personificados, sob medida para atender os desígnios da alma de quem irá consumi-las, desde os mais cândidos aos mais perversos. Os chamados algoritmos das redes sociais digitais garantem essa entrega delivery altamente especializada a contento.    

Eis o mundo “pós-iluminista” e “pós-verdade” em que vivemos!

A verdade foi convertida em produto, um artigo de consumo que se adquire sob medida, muitas vezes para se atender aos impérios do ego, para acudir os temores da alma, para satisfazer nossa natureza infantil. No atual estágio da humanidade, converteu-se a verdade na mais complexa e multifacetada mercadoria, que agora permite um consumo altamente personalizado, como uma autoverdade, uma inviolável propriedade narcísica. Tal qual em vitrines e mercados, há uma profusão de convicções, crenças, ideologias prontas, para que sigamos convictos, inebriados de nossa autoverdade! Donos únicos de nossa própria masmorra.

 

*Jornalista

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