CAMINHO DE SANTIAGO: três albergues, três visões, um objetivo…

Segundo texto da série sobre o Caminho de Santiago


Cultura

José Venâncio de Resende0

Peregrinos, rumo a Santiago de Compostela.

Ser guardiães do Caminho, cuidar do bem-estar do peregrino e priorizar as relações entre pessoas. Estas são visões de três hospitaleiros, visitados por este repórter, que buscam o mesmo objetivo, ou seja, contribuir para que o peregrino tenha pleno sucesso na sua jornada até Santiago de Compostela.

“Guardiães do Caminho”

O Refúgio Senhora da Hora, no Concelho do Matosinhos, distrito do Porto, é fruto da experiência de quem percorreu por várias vezes o Caminho Português de Santiago, diz Abel Ribeiro, peregrino e hospitaleiro voluntário ao lado de sua esposa Alzira. Vivência esta que gerou e maturou um projeto sustentável cuja ideia básica é a de “preservar o espírito da partilha, da solidariedade e da responsabilidade”.

O Refúgio foi fundado em 2011 pelo casal Abel e Alzira e pelo norte-americano, nascido no Brasil, Samuel Schwartz. Na verdade, antes do albergue surgiu a Associação Internacional de Companheiros nos Caminhos de Santiago - conhecida como ViaPortuscale – que responde pela gestão do Refúgio. A entidade tem cerca de 20 sócios de Portugal, França, Alemanha, Estados Unidos, Espanha e Cabo Verde, que são espécies de “embaixadores do Caminho” especialmente entre os jovens.

O Refúgio - primeiro albergue na área metropolitana do Porto – é mantido com donativos dos peregrinos – “o valor que cada um pode dar” –  e aceita trabalho voluntário. “Muitas pessoas que passaram por aqui se ofereceram para ajudar, são os voluntariosos”, conta Abel. “Mais do que a preocupação com números, a nossa intenção é funcionar como guardiães do Caminho, é fazer com que os peregrinos saibam que há um lugar que os acolhe como peregrinos.”

E muitos peregrinos acabam por voltar. Alzira cita uma senhora polonesa (polaca, em Portugal) de Varsóvia que já passou pelo Refúgio em 2015, voltou em maio e ainda deve regressar este ano. Ela considerou o local acolhedor, “um albergue de verdade, não comercial”. Tem o caso também de um professor norte-americano, de New Orleans, que perdeu esposa e casa e veio fazer o Caminho. Na volta de Santiago de Compostela, retornou ao Refúgio e revelou que encontrou ali a “catedral” que procurava.

“Nós temos um conceito de que o peregrino pode passar mais de uma vez pelo mesmo albergue; e, se não volta, recomenda até dez vezes mais”, observa Alzira que trabalha durante o dia e atua como voluntária no Refúgio à noite e nos finais de semana. Já Abel cuida do Refúgio durante o dia até a meia noite. “Nós estamos aqui pela essência. O nosso propósito é sempre a vertente espiritual, embora estejamos abertos para todos”, reforça Alzira.

Nesse sentido, o casal respeita o “tempo de viragem” de cada um. “Há aqueles que chegam e percebem logo qual é o nosso espírito. E os que vão a Santiago e voltam para falar da sua transformação.” Até por conta disso, Abel e Alzira mantém o costume de reunir os peregrinos em volta da mesa para um jantar, dependendo do perfil do grupo naquela noite.

Entre os peregrinos oriundos de vários países, o Refúgio recebe ainda, por intermédio da ViaPortuscale, grupos de jovens dos Estados Unidos, como peregrinos e como voluntários. Desses grupos surgem “líderes” que transmitem a sua experiência e convidam novos jovens.

Abel contrapõe este trabalho ao crescente turismo no Caminho, fomentado por promoções em forma de publicidade, documentários e livros. Agora, reforçado pela divulgação nas redes sociais, talvez com um peso maior. Com isso, tem-se um movimento comercial cada vez mais intenso, adverte. Hoje, existe um mercado formal em torno do Caminho (hotelaria, restauração ou restaurantes e comércio de artigos, além de serviços como bicicletas e táxis). “O Caminho é cada vez mais um negócio que corre o risco de estar se tornando selvagem.”

Porém, acredita Alzira, “quem faz o Caminho com o propósito inicial de ouvir a alma, não sofre as interferências externas (estas mudanças que acontecem com o viés comercial). E, mesmo que o propósito não seja este, as pessoas que fazem o Caminho podem ter o encontro com Deus”.

Bem-estar do peregrino

O Albergue de São Pedro de Rates, a 38 quilômetros do Porto, é o pioneiro em Portugal do Caminho Português de Santiago. “É um ícone do Caminho”, resume Antônio José Pires, atual secretário da Associação de Hospitaleiros Ventos Peregrinos, responsável pela gestão do Albergue. “O que nós tentamos fazer é manter a essência e a tradição no acolhimento aos peregrinos.”

O Albergue fica à beira do Caminho e a poucos metros da famosa Igreja Românica de Rates. Foi aberto pelo jovem Nuno Ribeiro e um grupo de amigos, em parceria com a Freguesia de São Pedro de Rates, Concelho de Póvoa de Varzim, que fizeram um acordo com os proprietários do imóvel onde antes funcionava um centro de saúde.

Em 25 de julho de 2004 – Dia de Santiago – o Albergue foi inaugurado com o compromisso de preservar e manter o imóvel em constante melhoramento, o que automaticamente beneficiaria os peregrinos tanto no sentido de Santiago de Compostela quanto, inversamente, na direção do Santuário de Fátima.

Em 2012, o grupo de cerca de 20 voluntários, do qual Pires fazia parte, constituiu a Associação de Hospitaleiros que assumiu a gestão do Albergue e a manutenção do imóvel, até então de responsabilidade da Junta de Freguesia. Era preciso dar transparência ao Albergue, lembra Pires.

A Associação promoveu reformas na parte externa com mão-de-obra profissional (troca de telhado, pintura e outras melhorias). A conservação e a manutenção da parte interna são feitas por meio do trabalho de voluntários, explica Pires. Tudo mantido com donativos dos peregrinos, com exceção das despesas de luz e água que são custeadas pela Junta de Freguesia de São Pedro de Rates.

O Albergue tem 33 hospitaleiros voluntários, que são sócios da Associação. Em geral, moram fora de Rates, o que exige uma cooperação maior entre eles, observa Pires.

O foco destes voluntários é o conforto e o bem-estar dos peregrinos, diz Isabel Vilhena Pires, presidente da Associação dos Hospitaleiros. Entre outras atividades, o Albergue promove jantar aos peregrinos e mantém um programa de integração com a comunidade de Rates.

O Albergue recebe peregrinos do mundo inteiro, com grande afluência de alemães, italianos, polacos, tchecos etc., e sempre dá boas referências a eles, complementa Pires que desde 2006 percorre o Caminho de Santiago com a família. Em geral, a maior frequência ao Albergue ocorre em Agosto (período de férias escolares), mas ultimamente a procura tem aumentado em maio como alternativa ao Caminho Francês.

Hospitalidade

A verdadeira promoção do Caminho de Santiago é a “hospitalidade”, que é receber bem as pessoas, se preocupar com elas, falar sobre o Caminho. Assim pensa Lúcio Lourenço, presidente da Associação A.C.B. – Albergue Cidade de Barcelos.

A ideia de abrir o Albergue surgiu depois de um grupo de amigos ter feito o Caminho Português em 2006, conta Lúcio. O projeto foi apresentado à Câmara Municipal, posteriormente, em 2010,  quando ainda existiam apenas os albergues de São Pedro de Rates e Ponte de Lima, mas nessa altura já se encontrava em curso o projeto do albergue público (Albergue da Recoleta, em Tamel S. Pedro Fins). Mesmo sem apoio público, o grupo de amigos decidiu avançar com o projeto.

O grupo de amigos comprou uma casa na rua onde passava o antigo Caminho Português – hoje, com o novo traçado, o Albergue fica a cerca de 200 metros. Embora a maioria passe pelo novo traçado que tem dois quilômetros a menos, muitos peregrinos ainda fazem o caminho histórico que continua sinalizado.

Em 2011, o grupo de amigos fundou a Associação e, em 2012, abriu o Albergue com oito camas e ainda sem cozinha e lavanderia. O presente do quinto aniversário da Associação, este ano, foi a conclusão do projeto do Albergue com a abertura do primeiro andar e a reformulação da cozinha. “E tudo isso sustentado por donativos dos peregrinos”, comemora Lúcio. Até hoje, o único apoio externo que a Associação recebeu, além dos donativos dos peregrinos, foi a doação do mobiliário da cozinha por um peregrino irlandês.

Ao comemorar o aniversário em Julho, a Associação promoveu o primeiro “Barcelos Hospitaleiro”, que reuniu representantes dos quatro albergues da cidade, representantes de uma associação jacobeia nacional, de restaurante e de hotel e voluntário de uma comunidade cristã, além de representantes de albergues de outras cidades como o Refúgio Senhora da Hora, Albergue Peregrinos do Mosteiro de Vairão, Albergue Peregrinos do Porto, Albergaria-A-Velha e Alpriate (Vila Franca de Xira) e Refúgio Acácio e Orietta (Viloria de Rioja, Burgos no Caminho Francês). O propósito do encontro foi o de aproximar as pessoas que trabalham com peregrinos, diz Lúcio.

Em Agosto de 2016, o Albergue recebeu três vezes mais peregrinos do que no mesmo mês de 2012. As Associações devem trabalhar, agora, no sentido de “despromover o Caminho” (evitar a “propaganda” sobre o Caminho de Santiago), alerta Lúcio, “deixar que só o contato pessoal e a hospitalidade façam essa promoção. Nós não podemos estimular o crescimento insustentável”.

Lúcio considera o Caminho de Santiago um forte apelo para os municípios que queiram apresentar projetos para candidatura a fundos de apoio europeus. São projetos como sinalização, construção de passeios, informação turística e construção de passagem para peregrinos em estradas perigosas. Essas candidaturas aos fundos podem melhorar o Caminho de Santiago, reconhece Lúcio. “Contudo, a hospitalidade não é elegível em candidaturas: ou se tem ou não se tem. E o Caminho de Santiago é hospitalidade.”

“Mas nunca ninguém nos perguntou o que precisamos nos albergues para incluir nesses projetos. E são os albergues que convivem diariamente com os peregrinos e que ouvem as suas necessidades, que tornam possível o Caminho de Santiago.” Lúcio lembra que o apoio econômico, por exemplo, para uma desinfestação preventiva trimestral (contra insetos) no Albergue seria da maior importância (atualmente é suportada também pelos donativos dos peregrinos). “Em termos de saúde pública, isso é essencial porque os peregrinos estão transitando entre cidades, regiões e países. E nunca um projeto para fundos aborda isso.”  

Link relacionado:

Caminhos que levam a Santiago - http://www.jornaldaslajes.com.br/integra/caminhos-que-levam-a-santiago-/2008/

 

      

 

 

 

 

     

 

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