A Teia do Mundo

O trânsito... Sempre o trânsito

17 de Agosto de 2022, por José Antônio 0

Andar a pé é como andar de carro. As calçadas são as rodovias e as pessoas são os automóveis.

Tem gente que é Fusquinha invocado, Fiat Uno apressado ou mesmo Gol turbinado. Franzinas, ágeis e movendo-se sempre com pressa, trafegam com destreza por entre os transeuntes, numa rota obstinada e sinuosa. Passam raspando, reclamam ferozmente da demora de quem para na frente e estão sempre de quinta.

Há também os táxis. São aqueles que andam, param com alguém e saem levando. Adoram uma companhia. Vão aonde o outro vai. Se o cara entra na loja, o táxi também entra; se o cara vai fazer um lanche, o táxi espera a última mastigada do companheiro; se o cara vai ao banco, o táxi o acompanha na fila. Geralmente, os táxis de duas pernas apreciam parar em encruzilhadas, no momento em que o passageiro vai para um lado e o táxi vai para o outro. E a conversa rola solta ali, com o taxímetro do tempo devorando preciosos minutos.

E as carretas? Quase sempre são senhoras grandes e espaçosas, carregando sacolas, pacotes e bolsa. Andam numa vagareza de dar inveja a baiano. Tomam a pista toda, oscilando ora para a direita, ora para a esquerda... sem o mínimo interesse de dar passagem a quem está seguindo atrás. Você tenta cortar pela esquerda, lá vem o Fusquinha invocado. Não dá pra passar. Aí, você volta pra trás da carreta. De repente, ela tende para a esquerda, liberando a direita. Lá vai você, numa passagem perigosa e proibida. Dessa vez, é um engarrafamento de fila de banco que impede a passagem. E está você de volta, obediente ao ritmo da carreta.

Irritam também os carros inexperientes, andando devagar e sem rumo na calçada. São aquelas pessoas que caminham vindo de não sei onde, indo não sei como e andando não sei pra quê. São distraídas, encantam-se com vitrines, enfeites, roupas... O que mata nessas pessoas é quando elas param sem mais nem menos, bem no meio da calçada. O carro morre ali mesmo, sem pisca-alerta. Ou ainda: param de repente e resolvem voltar pela mesma via, sem dar seta avisando que vão fazer retorno. Quando não acontece trombada, acontece abraço com quem vem vindo atrás.

Às vezes, quando ando atrás de um desses carros vagarosos, uso uma buzina natural e orgânica: uma leve tosse ou uma raspadinha na garganta. É infalível: o cara da frente acaba dando passagem.

O tráfego intenso nas calçadas cansa e estressa. Por outro lado, resta um bom consolo: se há esbarradas, não há aquela amolação toda de boletim de ocorrência, acionamento de seguro, serviço de oficina... se há ultrapassagem perigosa, não acontecem mortes nem palavrões. Nunca vi ninguém brigar na calçada porque o outro ultrapassou pela direita.

Não nego que de vez em quando ocorrem acidentes sérios, como gente que tropeça, cai e se machuca... gente que entorta o pé num buraco da calçada... gente que morre enfartada enquanto caminha... outros sofrem encontrões violentos... Mas isso é fatalidade. Ninguém caminha tenso, pensando que essas desgraças vão acontecer.

Desculpem-me os rapidinhos, mas o meio de transporte mais seguro não é o avião, e sim o pé no chão. 

A, E, I, O, U DO CASAMENTO

21 de Julho de 2022, por José Antônio 0

Sempre que passo em frente ao foto perto de minha casa, vejo o retrato de uma noiva. Sorrindo, como se estivesse flertando com a felicidade. Como toda noiva, essa também é bela. Bela e vestida de branco.

Da fotografia para a vida real. Sempre aos sábados à tardinha, qualquer igreja está às voltas com pessoas bem vestidas, cabelos molhados e esticados... menininhas com vestidos rodados correndo para todos os cantos... e lá dentro, perto do altar, sempre se vê um noivo, uma noiva, um punhado de padrinhos com feições de responsáveis, um padre sem pompa nos paramentos e aquele cara com a filmadora na mão, insistindo em deixar os convidados desconcertados, chegando a câmera bem perto do rosto de cada um. Do lado de fora, aquele batalhão que sempre vai mas nunca entra.

Se o casamento tem lá as suas características, ele também tem o seu A, E, I, O, U. Quando se casa para acabar de vez com a solidão, fazendo do parceiro não um ser para se amar, mas, simplesmente, uma companhia qualquer para poder ficar velho junto... ou seja, um manto para aquecer a solidão; também quando o casamento é feito para se jogar um manto sobre uma gravidez sem aliança e tem-se que salvar mais a honra dos futuros avós do que a dos futuros pais... então, trata-se de um casaMANTO.

Quando se perde o discernimento, pois a vida é só lamento e na alma não há mais contentamento... quando o amor fica mais firme do que cimento e o coração nem sabe o que é envelhecimento e o olhar só fala de agradecimento... quando o futuro vira esquecimento e o que manda é o sentimento, sendo o universo colocado dentro de um momento... tem-se aí o casaMENTO.

Tem gente que se casa jurando de pé junto que ama o parceiro, mas, na verdade, o casamento vai é lhe dar mais liberdade fora de casa, mais espaço e segurança para dar às largas o seu coração e as suas aventuras; e a mentira conquista a confiança do pobre coitado que se fantasiou de cônjuge... vê-se aí um exemplo de casaMINTO.

Mas quando se casa prometendo um forte e eterno amor ao parceiro rico, proprietário de mundos e fundos, cercado de admiradores nas rodas sociais, garantia certa para viagens caras e roupas refinadas, fazendo dele um cavalinho puro sangue para se subir, aparecer e acontecer... ocorre o casaMONTO.

Agora, tem gente que se casa pela enésima vez. Na primeira não deu certo porque houve chifre; na segunda também não deu certo porque houve morte do outro; na terceira o casamento acabou porque o amor também acabou; na quarta os parceiros bem que prometeram, mas foi um terceiro que cumpriu a promessa; na quinta a miséria entrou pela porta e os cônjuges saíram pela janela; na sexta não deu certo porque era o parceiro do primeiro casamento... agora a pessoa vai se casar de novo, com alguém três vezes divorciado. Constata-se aqui um casaMUITO.

Casamanto, casamento, casaminto, casamonto, casamuito... Só fica solteiro quem conhece apenas as consoantes.

Menino lembrando uma noite de junho

22 de Junho de 2022, por José Antônio 0

Foi numa daquelas noites de junho, daquelas em que o céu já começa a se vestir de noite lá pelas seis da tarde. As nuvens ficam cor-de-rosa enquanto pelo chão as sombras se mostram compridas, longas iguais à solidão que gosta de acompanhar a gente por toda a vida.

Era uma dessas noites de junho. O vento cortava gelado as costas dos meninos e as pernas das meninas... queimava de frio os dedos finos das moças e as mãos ásperas dos moços. O vento vinha do morro e virava a esquina. Pegava todo mundo de surpresa.

Mesmo assim, com tanto vento e com tanto gelo, o pessoal da vila não se fez de rogado. Saiu todo mundo pra ir às barraquinhas da quermesse. Música tocando no alto-falante, vestidos estampados indo e vindo, rodinhas de rapazes conversando e rindo, meninos e meninas correndo pra tudo quanto é lado, um homem gritando números em uma das poucas barracas, cheiro de quentão embriagando a alegria simples de um povoado que se contentava com a simplicidade das poucas coisas.

Uma das barracas vendia salgados. A outra, doces e canjica. A última, perto do coreto e também cheia de luzinhas acesas, vendia bebidas quentes e fazia jogos de víspora e pescaria. Praça cheia, alegre e aconchegante. Acho que por isso ninguém tinha ficado sozinho em casa. As casas estavam frias e a praça quentinha. Havia vento, mas tinha quentão.

Resolvi tentar a sorte num dos jogos. Na verdade, eu queria era tirar um prêmio na pescaria e entregar pra Ana Clara, que estava na praça havia meia hora, mas no meu pensamento um montão de tempo. Ana Clara caminhava, passava perto da barraca e nem me via. Que vontade de pegar a sua trança e pescar com ela o seu coração...

Levei a mão gelada no bolso e achei lá uma solitária moeda. Fiquei por ali, encarapitado na cerca da barraca, atento à minha pescaria. Pescador de sonho... de sonho mergulhado na serragem e que não precisa de isca pra ser capturado. Fisguei o peixinho e o peixinho escorregou. Fisguei outra vez e o danado voltou pro chão. Na terceira vez, o peixinho veio pra mim. Não é que tinha um anel pendurado nele?

Peguei o anel, soprei a poeira e fui procurar a Ana Clara. Já imaginava sua trança sem Rapunzel, seu sorriso de princesa sem castelo, perdida ali naquele povoado sem grandes perspectivas, porém única e preciosa nas minhas vertigens de infinito.

Lá estava ela! Cheguei perto e... Ana Clara já tinha anel. Não só anel, mas também um namorado. Rapaz que eu nunca tinha visto na vila. Era gente da cidade. Garanto que foi ele quem deu o anel pra ela. O anel que Ana Clara ganhou do namorado não era de pescaria nem tinha poeira de serragem.

Desci os olhos, fechando as cortinas da minha esperança. Voltei pra barraquinha da pescaria. Joguei o anel na serragem, a serragem no meu sonho e pus meu sonho num balão que estava subindo pra sumir.

O vento continuava soprando frio.

As fotos do Mané Cráudio

18 de Maio de 2022, por José Antônio 0

Ontem eu me encontrei com o Mané Cráudio. Terno preto, cabelo impecável e, no rosto, leves resquícios de uma maquiagem que foi retirada há pouco. Mané Cráudio é o meu amigo pagador de mico. Autêntico financiador do pequeno primata.

– Que chique é esse, Mané Cráudio? Em plena tarde de terça-feira e você assim todo produzido?

– Me convidaram pra posar de modelo. Várias seções de fotos ao longo do mês. E o dinheiro é bom.

Tudo bem que o Mané Cráudio não é feio... mas posar de modelo?

– Pra quem você está trabalhando, Mané Cráudio? Qual foi a agência que descobriu você? Alguma revista ou site de moda?

Aí o Mané Cráudio raspou a garganta, olhou para o bico do sapato e falou baixo:

– É pra uma funerária.

– Funerária?! Como?

– Visto um terno, o pessoal me faz a maquiagem e eu me deito no caixão. Então eles batem as fotos. Tem foto de perfil, foto de cima, foto de frente... Cada seção é um modelito diferente.

– Do terno?

– Não. Do caixão.

Minhas palavras expiraram e deixaram meus argumentos sepultados pelo absurdo. Mas o Mané Cráudio continuava a falar. Aos poucos, seu constrangimento inicial ia sendo substituído pela empolgação.

– Velório agora é coisa chique. Você precisa ver os salões que andam inaugurando por aí. Tem até garçom e promoter. Com isso, os familiares do morto estão cada vez mais exigentes: só compram o caixão depois de averiguarem como é que o conjunto fica. Daí, a necessidade de um manequim deitado ali dentro, só para dar uma ideia.

– Mas, Mané Cráudio, e se o defunto for bem diferente de você? Obeso... outra cor... ancião...

– Photoshop!

Meu amigo fazendo ensaios fotográficos para a morte. Ensaio tétrico de um espetáculo que ainda virá, quando as cortinas se fecharem. Mané Cráudio é o típico modelo de passarela, posando para todos os que estão de passagem.

– E tem mais: também sou modelo de porta-retrato para túmulo. Estou ficando famoso. Preciso encontrar um nome artístico pra mim.

E me deu uma de suas fotos para porta-retrato. Meio de perfil, olhar tranquilo e um levíssimo esboço de sorriso no canto dos lábios.

Mané Cráudio se despediu, convencendo-me ainda mais da sua predestinação ao mico. Fiquei parado, olhando aquele manequim de funerária indo embora. Onde ele estava com a cabeça? Ser modelo de porta-retrato para lápide de túmulo.

Peguei a foto que ele me deu e fiquei reparando: aquele olhar... aquele sorriso sutilmente esboçado... lembrei-me do Leonardo da Vinci.

Vou ligar pro Mané Cráudio e dizer que já encontrei um nome artístico pra ele: “Mona Lousa”!

O homem que não sabia assoviar

20 de Abril de 2022, por José Antônio 0

Aquilo estava insuportável. Antes era chato, depois virou frustrante... agora já era intolerável mesmo. Ele não sabia assoviar.

O problema vinha desde criança, na escola. Os colegas todos assoviando com a maior naturalidade e ele ali, no esforço, tendo que se esconder dentro do banheiro pra treinar a técnica que nunca deu certo. Se soubessem que ele não assoviava, com certeza viraria chacota pra todo mundo.

Sempre que se pegava sozinho, contraía as bochechas, espremia a boca e tentava. Mas lá vinha aquele chiado chocho de chaleira chata.

Virou adulto e o assovio não compareceu. Andava pela rua e via gente imitando passarinho, chamando os outros pelo assovio. Um dia, numa festa, ele viu um cara assoviando maravilhosamente uma canção suave... o assovio tinha até eco! Naquela noite, ele dormiu triste. Nem seu ronco tinha o assovio como resposta.

Arrumou uma namorada. Jamais fez fiu-fiu pra ela, foi no papo mesmo. Ela então começou a se empenhar em fazer com que o namorado conseguisse realizar o seu suado sonho secreto.

O segredo, segundo ela, era fazer biquinho. Ele fez, mas o tal do biquinho ficou parecendo focinho de porco com uma narina só. Jamais sairia um assovio daquela fossa. Queria desistir.

– Relaxa e faz biquinho.

Pois ele começou a dormir com o bico armado, relaxando e fazendo biquinho. Se não fossem as massagens, só fisioterapia pra desfazer o bico.

O namoro terminou e a namorada – sacana! – sibilou a história dele pra todo mundo. O pobre coitado acabou ganhando o singelo apelido de Biquinho. Biquinho mudo.

Teve um dia em que o Biquinho, no desespero, pois o táxi já passava sem vê-lo, arriscou um assovio. Saiu um “psiu” que fez o motorista ficar desconfiado das intenções do Biquinho.

E aquela vez em que ele encontrou um menininho assoviando na rua? Naquela idade e já assoviava tão bem. Que inveja! Pensou em pedir umas aulas particulares para o menino, quem sabe... aprender ali na rua mesmo. Que loucura! Acabaria sendo preso ou internado. Sem chiar.

Até que num encontro, o Biquinho resolveu tentar novamente o silvo. O assunto acabou e ele começou a chiar baixinho uma canção. Talvez a garota gostasse. Mas ela perguntou se ele estava com asma.

– É que eu nunca consegui assoviar. Olha só que tristeza. – E chiou novamente.

– Terrível. Até parece que você tem alguma coisa agarrada no dente. Mas não se desespere não. É fácil. É só relaxar o peito.

Quem sabe ela ensinaria diferente?

– Relaxar o peito? E o biquinho? Eu posso ver o seu biquinho?

Ele voltou pra casa com um dente rachado. Tabefe violento. Porém, está feliz. É pela rachadura do dente que ele consegue agora assoviar. Não sai aquele assovio bonito, mas, pelo menos, ele não precisa mais fazer biquinho.