A Teia do Mundo

ANO NOVO

25 de Janeiro de 2024, por José Antônio 0

Tudo bem que é passagem de ano...

Tudo bem que depositamos a intensidade de nossas esperanças e ansiedades naquele átimo que consegue espremer final e começo...

Tudo bem que é Ano Novo...

Por outro lado, é apenas a passagem de um dia para o outro. É apenas o ponteiro saindo da meia-noite e alcançando a meia-noite e um... como acontece todos os dias. O relógio é o mesmo, nós é que enfeitamos os ponteiros e orquestramos as badaladas. Todo dia tem meia-noite. A meia-noite do final do ano não é diferente. A bem da verdade, o próprio conceito de “ano” nada mais é do que uma convenção.

E o que seria da sociedade sem as convenções? Convenção é sobrevivência.

Precisamos sobreviver, mesmo que isso custe alguns detalhes que fazem a diferença. Por exemplo: renovamos nossas esperanças na passagem do ano. É a convenção. Mas, já pensou se renovássemos nossas esperanças todos os dias com a mesma intensidade com que renovamos na passagem do ano?

Desejamos amor, alegria, paz, saúde e prosperidade às pessoas na passagem do ano. Já pensou se desejássemos tudo isso para as pessoas todos os dias?

Abraçamos nossos semelhantes e lhes entregamos o nosso sorriso e o nosso voto de felicidade. No dia seguinte, nem sequer olhamos mais para alguns que abraçamos. Já pensou se os abraços fossem dados com frequência, acompanhados do voto sincero de felicidade?

Essas incoerências me fazem ficar com um pé atrás quanto à meia-noite da passagem do ano. Investimos na paz, na alegria e no amor somente naquele momento de transição, mas ao longo do ano as coisas ficam exatamente como estavam no ano anterior. É como se semeássemos para que a semente ficasse eternamente sepultada.

Ano Novo talvez não exista. O que deve existir é Ano Renovado. E para renovar os próximos 365 dias, é necessário que haja algumas resistências.

No ano que começa,

quando a pressão for o desânimo, que eu resista e fique de pé, sabendo que o próximo dia jamais repete o dia anterior...

quando a pressão for a puxada de tapete, que eu resista e imponha a honestidade...

quando a pressão for a inveja, que eu resista e veja o que a qualidade do outro acrescenta a mim...

quando a pressão for a descrença, que eu resista e tenha a humildade de deixar Deus falar comigo nos detalhes do dia a dia...

quando a pressão for a violência, que eu resista e faça investimentos de paz...

quando a pressão for o medo, que eu resista e respire profundamente o hálito da coragem...

quando a pressão for a dor, que eu resista, busque o coração do outro e expulse a solidão...

quando a pressão for a ignorância, que eu resista e me comporte com sabedoria...

Mas isso tem que ser feito todos os dias do ano que começa. Renovar o ano é resistir à inércia de viver o Ano Novo comprometido com o Ano Velho. Ano Novo é Ano Renovado.

De Papai Noel

20 de Dezembro de 2023, por José Antônio 0

Foi só o Jurinélio chegar da rua e jogar aquela estranha sacola no sofá que a mulher ficou curiosa e quis logo saber do que se tratava. O marido escarrapachou-se no sofá, soltou um longo suspiro e respondeu:

– Roupa de Papai Noel.

– O que? Papai Noel? Você ficou maluco, Jurinélio? Pra que isso?

– Uns trocados a mais, Bibi. O décimo-terceiro vai atrasar, não lembra? Dei meu nome pra vaga de Papai Noel no shopping. Gostaram do meu tipo e me arranjaram serviço pra hoje e amanhã. Do jeito que estou gordo, não vou precisar nem de enchimentos. Além disso, o serviço é simples e folgado: é só ficar assentado numa cadeira, colocar crianças no colo, ouvir pedidos e dar conselhos. RÔ RÔ RÔ!!!

A mulher ouviu a explicação como se estivesse vendo uma rena de cinco patas e dois rabos: um absurdo!

– E essa sua hérnia, Jurinélio? Todo Papai Noel carrega muitos presentes. Você não pode pegar peso.

Era uma hérnia inguinal antiga. Incomodava mesmo. O negócio doía e já estava descendo pra onde não deveria descer. Jurinélio estava de saco cheio.

– Não tem perigo, Bibi. O saco é de brinquedo.

Acabou ouvindo:

– O seu saco é de brinquedo, mas a hérnia é de verdade.

À noite, a mulher ajudou o marido a se vestir de bom velhinho. Faltava somente a barba. Era uma barba de algodão sintético, branquinha e farta.

Bibi olhou o marido em frente ao espelho: gordo, todo de vermelho e com uma grande barba branca. Parecia mais o Karl Marx vestido de Saci Pererê. E foi desse jeito que o Jurinélio se posicionou na praça de alimentação do shopping.

Nenhuma criança se aproximava dele. Transitavam de mãos dadas com os pais, olhavam de longe, davam tchauzinho, sorriam tímidas... mas ir lá ninguém foi. Passavam direto e iam brincar dentro do trenó, humilhantemente colocado ao lado do Jurinélio. O jeito era fazer barulho, aparecer mais. Pegou um sininho e começou a agitar os braços:

– RÔ RÔ RÔ! Feliz Natal! RÔ RÔ RÔ!

Em vão. O trenó em silêncio e parado fazia mais sucesso do que o Papai Noel com hérnia. Jurinélio se sentia um acessório sem muita importância naquele shopping. Sem importância e sem explicação.

Diante do fiasco, a organizadora resolveu dispensar o Jurinélio do dia seguinte e contratou o trenó.

Passaram-se dois dias.

Foi só o Jurinélio chegar da rua e jogar aquela estranha sacola no sofá que a mulher ficou curiosa e quis logo saber do que se tratava. O marido escarrapachou-se no sofá, soltou um longo suspiro e respondeu:

– Roupa de anjo.

– Você ficou maluco, Jurinélio? Pra que isso?

Jurinélio conseguiu uma vaga pra ficar na praça central do bairro distribuindo mensagens natalinas de um supermercado... o Anjo do Natal!

Tudo bem que era um mico alado, mas pelo menos não precisava pegar peso.

Eu somos

22 de Novembro de 2023, por José Antônio 0

A unidade é uma? Ou a unidade é união?

 A mesma coisa, sempre a mesma coisa, tende a nos levar à monotonia. A própria palavra “monotonia” já traz a ideia da unidade que cansa, pois não varia. É a chatice do único (mono) tom (tonia).

Somos apegados ao um. Visceralmente apegados a ponto de já estarmos adaptados a ele. Temos um só corpo... somos um indivíduo... queremos ter um alguém só para nós... queremos ser o único para alguém...

Parece que a coisa vem desde criança: “Era uma vez...” (e não mais de uma)

Há razões para esse apego ao um. Acredito que sim. Existe a sensação prazerosa da diferença que faz a diferença. Só eu sou assim! Só você me satisfaz! Somente eu estou em seu coração! Somente eu toco esse instrumento dessa maneira!  Apenas eu, somente eu, falo desse jeito!

Quanta ilusão! Mesmo no um, a variedade subsiste de forma sutil. Para eu ser tido como único, é necessário que se considere que há o outro para depois negá-lo. Se existe um é porque existe o dois.

Mais de uma tonalidade já é suficiente para conferir às cores variadas combinações. E cada combinação aparece como se fosse uma só cor. Porém, na verdade, são diferentes cores que se mesclaram para que aquela nova aparecesse como sendo uma.

Por isso é importante a consciência de que a sensação de único é um tanto ilusória, uma vez que tudo é combinação de tudo. Até o átomo é assim. Até cada cor é assim. Até cada corpo é assim.

Em terra de cego, quem tem um olho é rei. Mas, para ser rei, é preciso ter os súditos. Logo, o rei não é único. Nem mesmo Adão foi o dono da primeira palavra, pois, antes dele, Deus já havia falado. Quanta inocência cega nas frases que cultuam o um. Para os arrogantes, o “um” passa a ser artigo definido, pois se refere somente, só, apenas ao um que se autoproclama a fonte inesgotável da unidade. 

Eu sou um porque sou o melhor. Será?  Não sei se tudo é questão de comparação ou de oportunidade. Se oportunidades fossem dadas a outros, o um passaria a ser o outro e o outro passaria a ser o um.

E aí você me objeta: “Mas e as impressões digitais? Sou o único que tenho as que tenho.”

E aí eu pondero como burro velho: “Você já estudou satisfatoriamente sobre clonagem?”

A mulher na bolsa

25 de Outubro de 2023, por José Antônio 0

Nossa cultura tem criado duplas memoráveis. São tão sólidas que chega a ser impossível pensar em um elemento sem a companhia do outro: feijão com arroz, cama e mesa, lápis e borracha, goiabada com queijo, sapato e meia... São duplas coesas e frequentes e até já fazem parte de nossa visão de mundo. Mas existe uma outra, unida e peculiar, que desbanca qualquer Batman e Robin ou Fred e Barney: é a dupla Mulher & Bolsa.

Essa dupla é tão interligada que mulher e bolsa assumem aparências que se tornam comuns entre elas. É interessante como as mulheres se parecem com suas bolsas. Mulheres magras levando bolsas miúdas, como se seus pertences fossem também franzinos; há bolsas cheias, redondas e grandes, carregadas por mulheres pesadas e altas. Bolsas bagunçadas, soltando papel, lenço e chave pelas bordas: mulheres desorientadas e descabeladas.

Ontem mesmo passou por mim uma senhora baixinha, encolhida e toda rugadinha: a sua bolsa era mirradinha, murcha e quase escondida no corpo da dona. Há também aquelas bolsas enormes e quadradas, muito coloridas e chamativas: são carregadas pelas peruas. Você já viu umas bolsinhas achatadas, pequenas e sem graça? Pois é, são levadas por mulheres decididas, objetivas e sem tempo para muitas delongas. (Romantismos? Nem pensar!!!)

Aquelas bolsas enormes feitas de tear, bem abertas e de contornos bastante lentos e preguiçosos, totalmente alienadas de qualquer vaidade ou sensualidade são carregadas pelas ripongas e todo tipo de bicho grilo.... falou, amizade? As bolsas alegres, cheias de cores, com vários adesivos colados... bolsas ora nos ombros, ora nas costas, ora no... na... Ih! Onde deixei a minha bolsa???... Essas são arrastadas pelas voláteis adolescentes.

Dá até pra fazer uma comparaçãozinha com a economia brasileira: se a mulher estuda uma posição estratégica... Bolsa de Estudos; quando a mulher carrega joias dentro da bolsa... Bolsa de Valores; se não há nada na bolsa... Bolsões de Pobreza.

(... tudo isso sem falar naquelas que rodam a bolsa e enredam o bolso!!!)

E lá vão elas. Mulheres... Verdadeiras bolsas de mistério... uns até engraçados. Pandoras da era de agora ou cangurus urbanos, seja lá o que for. Só espero que a mulher que anda abraçada comigo não esteja me levando a tiracolo.

Contra o tempo

27 de Setembro de 2023, por José Antônio 0

Existe um quadro forte do pintor espanhol Goya, no qual Cronos devora seus próprios filhos. Somos filhos do tempo e somos devorados por ele. O tempo não perdoa, ele é insaciável. Onívoro.

Quanto a mim, devo ser um tanto indigesto para o tempo. Ele me devora, mas custa a engolir. Deixo desprender de mim uma espécie de fel. Esse amargo se chama... atraso.

Meu relógio não marca hora e sim segundo, pois sou sempre o segundo a chegar. Já peguei táxi pra correr atrás de ônibus... já cheguei depois da noiva no casamento e eu era padrinho...

No entanto, confesso que ando fazendo algumas coisas para ter uma convivência pacífica com os ponteiros. Houve uma época em que eu andava com o meu relógio vinte minutos adiantado. Mas não funcionou: eu sempre me lembrava de que ele estava vinte minutos na frente. O relógio adiantado foi uma coisa que não adiantou.

Despertador foi uma porção. Eu tinha três deles ao lado da minha cama. O primeiro despertava duas horas antes, o segundo uma hora antes e o terceiro meia hora antes... e eu me levantava meia hora depois. Tive um galo também, o Dedéu. Sozinho e solteirão. Foi só eu arrumar umas duas penosas cacarejantes que o Dedéu criou alma nova e pôs-se a cantar. Mas como viu que seu dono não seguia patavina o horário de seus recitais cocoriqueiros, chutou o balde e passou a cantar quando desse na telha. Até as galinhas estranharam. E esfriaram-se com ele.

Outra artimanha que arrumei foi fazer promessa pra mim mesmo: “Se eu chegar atrasado à reunião, eu dou cinquenta reais pra uma instituição de caridade”... “Se eu chegar atrasado ao cinema, eu dou cem reais para aquela outra instituição”... Tive que parar com isso, claro. Eu estava me transformando no Benfeitor da Pindaíba, gastando mais dinheiro pra pagar minhas promessas do que pra pagar minhas contas.

Essa minha fidelidade ao atraso vem de longe. Um dia, minha mãe me contou que o meu parto foi com fórceps. Devo ter me atrasado pra sair e então me puxaram pra fora. Se eu fosse soldado, a guerra ideal pra mim seria a Guerra dos Cem Anos, pois eu teria uma boa margem pra chegar ainda a tempo.

Fui atrás do meu amigo Marcus Vinicius de Andrade Peixoto pra conversar com ele sobre o meu problema com o atraso. Marcus Vinicius de Andrade Peixoto é meu amigo filósofo, pesquisador dos ecos abstratos das síncopes do Olodum nas incursões existencialistas de Kierkegaard. Está desenvolvendo, no momento, um artigo onde ele defende a influência do rebolado da música axé nas ataxias do pensamento ocidental.

Marcus Vinicius de Andrade Peixoto me recebeu com aquele seu jeito calmo e mais parado do que ponto final. Nem notou que cheguei atrasado.

Depois que lhe falei do meu problema, meu amigo fechou os olhos e começou a pronunciar vagarosamente as suas frases no fluxo da preguiça:

– Não se queixe de você sempre chegar atrasado. Há uma grande vantagem nisso.

– Vantagem? Qual?

– Como você só chega atrasado, você morrerá atrasado. Vai viver ainda uns minutos a mais.