Você vai ver só!
26 de Junho de 2024, por José Antônio 0
Dizem que os olhos são as janelas da alma. Eles são mais do que isso. Os olhos são as línguas da alma. Intrometem-se no lugar dos outros sentidos, de outros verbos, de outras expressões. Línguas soltas mesmo.
Falamos vendo.
Não sei qual a sua visão sobre isso, mas eu sempre olhei com curiosidade as coisas do olhar sendo vistas com outros sentidos. E olhe que tem muita coisa interessante!
Igual àquela conversa que um dia vi acontecendo. O cara precisava de um favor do amigo:
– Veja isso pra mim. Preciso até amanhã.
– Vou ver se consigo.
Para o primeiro, ver é resolver. Para o segundo, vou ver é vou tentar. Viu só?
Também tem aquela fala da minha vizinha:
– Não concordo com isso. Onde já se viu?
A razão e o perfeccionismo são olhos. A razão é o olhar clínico. O perfeccionismo é o olho de santo.
E quando aparece um cheiro estranho? A gente logo lasca a pergunta:
– Tá vendo o cheiro?
Ouvimos com os olhos também:
– Olha só que música bonita!
Ou:
– Você não viu a gritaria do povo lá fora?
Ou ainda:
– Veja só como ele está rouco!
Lembro-me de mim garoto ainda e minha mãe me repreendendo por causa de alguma coisa errada que fiz:
– Estou gostando de ver!
E eu via as coisas se complicarem para o meu lado...
Quando você compra algo muito caro, é porque custou os olhos da cara.
Se alguma coisa é do conhecimento de todos, então está tudo a olhos vistos.
Ao aconselhar alguém: “Olho vivo, rapaz! Veja bem o que você vai fazer!”
De repente, você aparece com um carro novo, de encher os olhos; ou compra uma casa na qual você estava de olho havia muito tempo. Ou mostra uma coleção rara, que é a menina dos seus olhos. Quem é que aparece? O olho gordo. Sempre tem aquele que cresce o olho.
Até pra ser demitido a gente vai parar no olho da rua.
E a Silvinha com o Fagundes? Ela toda moderna, com uma visão mais aberta. Ele todo conservador, com uma visão mais fechada. Quando viram, já era tarde. Nenhum dos dois via mais sentido na relação.
É por isso que o bebê chora quando nasce. Quando chega aqui fora, ele logo vê uma voz sibilando perto dele, indo e voltando, que nem olho-de-sogra, alertando que ele vai ter que escapar do mau-olhado e ficar de olho em tudo. Ainda por cima, tudo isso vai acabar um dia, quando, no futuro, ele finalmente fechar os olhos. E a voz diz:
– Você vai ver só!
Aí o bebê chora.
Elvis Presley no mercadinho
21 de Maio de 2024, por José Antônio 0
Sabe aqueles sonhos sem pé nem cabeça? Uma vez eu sonhei que o Dom Pedro I tomava mingau de fubá na minha sala. Também já sonhei com a Rainha Elizabeth cavalgando a mula-sem-cabeça. Semana passada, sonhei que o mecânico do meu carro era um dos Sete Anões.
Pior foi o Leovaldo, meu amigo crivado de grilos: sonhou que a mãe dele estava na cama com o Freud.
Se a arte imita a vida, o sonho também imita. Só que tem de saber imitar, senão fica ridículo. Vira surrealismo sem causa.
Tudo bem que a gente tenha um ídolo. É até aceitável que a gente tenha vontade de ser como o nosso ídolo. Faz parte da tietagem. Porém, está cheio de fãs por aí que saem da tietagem e assumem a colagem. Sabe o que acontece? Passam a se vestir como o ídolo, cortam o cabelo igualzinho ao ídolo, repetem o andar e os gestos, forçam até a voz.
E fazem isso sem levar em conta o contexto.
De repente, você vê celebridades nos lugares mais improváveis.
Ontem o Michael Jackson passou por mim empurrando um carrinho de mão. Só faltou a luvinha branca. Visão absurda invadindo o cotidiano.
Ano passado, fui comprar umas camisas. Adivinhe quem me atendeu: bem na minha frente, com cabelo vermelho e uma porção de penduricalhos nos braços, a Madonna me mostrava diferentes modelos de camisas. Depois que escolhi, a Madonna foi lá pra dentro e preparou um carnê pra mim.
Já vi o John Lennon dirigindo lotação. O beatle estava de gravata, óculos escuros e levava no peito um patuá. Imagine só...
Você se lembra daquela cantora alemã, uma doidona chamada Nina Hagen? Até hoje eu não sei se ela cantava fazendo careta ou fazia careta cantando. Pois a Nina Hagen tem uma padaria na pracinha onde moro. Um dia, ela me explicou como é que a rosquinha de canjica era feita. Puro show.
Ser igual ao ídolo... Ninguém é igual. Qualquer igual é mera tentativa. Cada um pode ser grande no seu próprio terreiro. Não dá certo um boi num aquário. Nem dá certo um cowboy dirigindo moto-táxi.
O non sense soltou sua fumacinha quando fui comprar frutas. Lá no mercadinho, eis que me atende o Elvis Presley. Costeleta, topete, camisa aberta no peito e voz empostada. O cara andava com o corpo mole, balançando os ombros. Parecia que queria se coçar, mas as mãos estavam amarradas. Assoviava o famoso Tutti Frutti. Pegou as laranjas, as bananas, os limões, o abacaxi e colocou tudo numa sacolinha de plástico, numa gesticulação que parecia caratê. Detalhe: o Elvis Presley do mercadinho era baixinho.
Sonhar não custa nada, já disse alguém. Sei lá, às vezes custa sim. Uma coisa é você sonhar pra você mesmo. Outra coisa é você tirar a roupa do seu sonho e mostrá-lo nu a todo mundo. Ninguém quer saber coisa alguma das suas taras.
O sonho e o absurdo são gêmeos. Talvez dois lados de uma mesma moeda. Ou ainda, sonho e absurdo são o mesmo lado da mesma moeda. O outro lado é mistério.
Unhas pintadas
24 de Abril de 2024, por José Antônio 0
A mulher pinta as unhas. Ou pinta as garras? Como felinas cromáticas, sabem arranhar colorido. Cravam cores e matizes na pele vulnerável da vítima masculina. Então a corrente sanguínea vira esmalte.
E as tonalidades? E os nomes para as tonalidades? Covardia para os meus pobres bastonetes.
Foi num jantar que reparei quando ela erguia suavemente a taça de vinho até os lábios:
– Bonito o esmalte!
– Nunca fui santa...
– Hein?
– É a cor do esmalte: “Nunca fui santa”.
Outra noite, no concerto sinfônico. Ela se virou para mim... e falou baixinho e insinuante:
– Beijo roubado...
A ocasião fez o ladrão. Ela ficou brava:
– O que é isso? Ficou maluco? Estamos num concerto. Tem plateia aqui. Onde já se viu? Beijar...
– Mas você disse...
– “Beijo roubado” é o nome do esmalte.
Afundei-me na cadeira, mais vermelho que nariz de palhaço... que, por sinal, também é nome de esmalte.
Musas fiandeiras do coração do homem...
Mãos ágeis... mãos sagazes... mãos ternas... mãos sádicas...
Mãos esmaltadas.
As Mãos de Eurídice roubaram o pobre Gumercindo Tavares com o esmalte “Desejo”. Depois, Eurídice pintou as unhas com o “Destino dos sonhos”. E o roubado Gumercindo abandonou a família para enricar uma aventureira. Quando o Gumercindo acordou, já era tarde. Suas próprias unhas já estavam roídas e ele afundado na miséria. Eurídice, com o esmalte “Saia justa”, assim também deixou o homem. O final da história foi esmaltado com “Ponta de ira”: a acetona amargurada de Gumercindo arrancou a tinta viva da amante.
Ariadne, com unhas do esmalte “Avista”, deixou o fio para Teseu avistá-lo e sair do labirinto. Penélope, com o esmalte “Deitar na rede”, passou anos tecendo e destecendo a mesma coisa todos os dias à espera de Ulisses.
A malfadada Eva, com o esmalte “Causei”, fez jus à cor da unha. Vai ver que não viu que a serpente usava o esmalte “Malícia”...
Unhas coloridas... São belas. São perigosas. Sabem traçar possibilidades nos riscos. Sempre que a unha pintada coça o meu desejo, eu me entrego aos arranhões da “Garota Verão” e... “Deixa beijar”!
A mulher pinta as unhas, as garras e as guerras.
E vencem.
Conversa de cacófonos
27 de Marco de 2024, por José Antônio 0
– Que tempo! Como tá tu?
– Tô bem. Mas andei passando por cada uma...
– O que foi, amigo? Conta pro Juca aqui.
– Vou falar de maneira franca, Juca.
– Pode meter o pé na jaca, Brito.
– Lembra do meu tio Rodolfo Massa?
– Dono daquele time de futebol que nunca ganha?
– Esse mesmo. Ele me pediu uma mão pra melhorar a equipe.
– Você aceita cada!...
– A primeira coisa que fiz foi ensinar ao time o nosso hino.
– Não percebi cheiro de bola aí.
– Calma! A bola só rolou depois das instruções e do cooper. Só jogaram os com o cooper feito.
– E a moçada marca gol?
– Vencemos os jogos do campeonato. Todos os jogadores marcaram cinco gols... cinco cada um.
– Beleza! Seu tio Rodolfo deu algum dinheiro pra você?
– Nem toca nisso. Mandou procurar ele em casa. Fui. Topei dando com o nariz na porta.
– Pô, rapaz, o cara fugiu?
– Vez passada eu voltei lá. Falaram que virou vaqueiro lá pros lados do Pantanal. Agora ele toca gado.
– Lute por seus direitos, meu amigo! Você investiu tempo lá. Isso é uma situação que se disputa.
– Tempo tá lá, né? Muito tempo.
– Já que tinha de ser assim...
– Tenho uma má sorte.
– Não ponha a culpa nela. Um dia, uma fada ainda aparece em sua vida. De repente, uma herança: e você fica como herdeiro.
– Essa fada... nunca sei quando virá.
– Mudando de assunto, ouvi pela dona Clotilde, sua mãe, que você tá caçando.
– Pois é, tô voltando do mato agora. Pato tinha, mas só peguei pacu.
– Uma minha curiosidade: papel azul... papel creme... Que papel azul é esse aí? Você usa para guardar o quê.
– É pacu sujo.
– Sei, tá. E o creme?
– É pacu assado. Assei no mato. É bom não misturar os pacus.
– Bem, vou-me já.
– Eu também. Foi bom bater papo contigo.
– Já ia me esquecendo. Minha filha fez quinze anos. Tá uma gata bela. Fiz uma festa linda para a Noemi Joana.
– Parabéns! Quero ver o álbum dela.
– Até logo! Um dia acho você de novo.
– Até lá vou esperar.
Fui no Itororó
28 de Fevereiro de 2024, por José Antônio 0
Fui no Itororó beber água, não achei... achei foi a saudade que no Itororó chorei. E a fonte a chorar, xuá... xuágua... E a fonte a chorar, xuê, xuespinho... Oh, morena, moreninha linda do meu bem querer, entra nessa roda para não morrer sozinha.
Aproveita, minha morena, que uma noite não é nada. Se não amar agora, vai chorar de madrugada. Abre a janela e deixa o luar entrar para te dizer os desejos prateados de uma noite sem manhã. Vai, coração, tu aprendeste a voar. Ensinei-te a namorar, mas quiseste apaixonar. Vai, coração, tu não me ensinaste a bater. Apanho calado de teu ritmo de carne sangrada.
Fui no Itororó beber água, não achei... achei foi a vontade que no Itororó cresceu. Vontade de ser anjo barroco, sorriso maroto e olhar santo. Pureza e luxúria, talvez o amor se mostrando nu. Amor ousado e limpo. E a fonte a chorar, xuá, xuasa... E a fonte a chorar, xuê... xuetéreo... Oh, morena, moreninha linda do meu bem querer, entra nessa fonte e serás só minha.
Acordei de madrugada, com uma briga debaixo de minha sacada. O cravo gritava ferido e a rosa chorava sem pétalas. Chegou um beija-flor e me disse que o amor é assim mesmo: quando escreve torto, o absurdo se ajeita... quando escreve certo, as linhas ficam tortas. Olhei para baixo e no meu jardim já não havia mais cravos nem rosas.
Fui no Itororó beber água, não achei... achei foi o amor que no Itororó plantei. Nasceu saudade, floriu vontade, frutificou vida. Dentro dela, uma coisinha que um dia irá para debaixo da terra semear lembranças nas distrações do nada. E a fonte a chorar, xuá, xuarte... e a fonte a chorar, xuê, xuespuma... Oh, morena, moreninha linda do meu bem querer, não precisas mais entrar na roda nem na fonte. Dá-me tua mão e gira o mundo ao redor de meu poema. Quero tomar um pileque de espasmo e acordar com ressaca de plenitude.
Samba-lêlê tá doente? Não, samba-lelê foi pra festa. Meu coração é que está com a veia enfaixada, sem poder levantar. Um dia, ele ainda vai de novo no Itororó beber água. E vai achar a morena e dançar com ela na barra da saia.