A Teia do Mundo

Atos de fé

24 de Maio de 2023, por José Antônio 0

O homem nasceu para acreditar. Às vezes nem tem esperança... mas acredita assim mesmo.

Na lotérica, o cara acabou de pagar as suas contas e a moça pergunta atrás do vidro:

– Mais alguma coisa?

Mesmo sabendo que não vai ser sorteado, ele leva um bilhete da loteria ou uma raspadinha. Acredita.

Acredita como muitos também acreditam em diferentes coisas, precisam acreditar. É gente que acredita em horóscopo, gente que acredita em promessas de político, gente que acredita em cartomantes... gente que acredita em fofocas... Uma legião de crentes cuja fé não se explica por si mesma: “Por que acredito nisso? Não sei.”

Homo sapiens... homo ludens... e agora o homo credens

Toda crença se baseia na fé. Por sua vez, a fé demanda atos que a testemunham. Já que somos indivíduos que acreditam, manifestamos sempre os nossos atos de fé.

Um desses atos de fé é a agenda. Escrever na agenda é acreditar que realizaremos algo. Acreditamos tanto que ninguém marca compromisso na agenda escrevendo coisas do tipo: Ir ao jantar de aniversário da Vera... se eu não adoecer. Ou: Fazer a palestra na faculdade... se não cair um raio na minha cabeça. Ou ainda: Comprar sapatos... se eu não for atropelado.

Outro ato de fé é o despertador. Colocar o despertador pra despertar é acreditar piamente que estaremos vivos no dia seguinte.

O crediário também é um ato de fé. Na verdade, é um ato de fé compartilhado entre quem vende e quem compra. A prestação é a crença de que estarei vivo para pagar até a última. Comprar a prazo é acreditar.

E o convite de casamento? Ele também é um ato de fé. Quem convida acredita que os noivos dirão sim, que o padre não vai enfartar, a igreja não vai cair e os convidados estarão vivos para comparecerem.

Na escola, ensinar conjugação verbal no futuro é um ato de fé: eu amarei, tu viajarás, ele trabalhará, nós iremos, vós tereis, eles dirão... Quem garante?

Mais ainda, dizemos frases que são verdadeiras orações de fé:

– Até amanhã!

– Até logo!

– Te ligo na semana que vem.

– Volto logo.

Não sei, caro leitor, se você concorda com a minha crônica. Não sei, leitora querida, se você diria diferente. Podemos marcar uma conversa para falarmos mais sobre isso. Vamos nos encontrar amanhã!

Quer dizer, se...

Zé Errado

26 de Abril de 2023, por José Antônio 0

– Alô?! É o Zé?

– Alô! Sim, é o Zé.

– Oi, Zé! Aqui é a Carol.

– Tudo bem, Carol?

– Espere aí... essa voz não é a do Zé que eu estou procurando. Desculpe, liguei pro Zé errado. Tchau!

Zé errado... Eu sou o Zé Errado.

Se existe o Zé Errado, então existe também o Zé Certo. E quem é ele? Onde ele está? Ele é o meu eu ao contrário ou o meu eu aperfeiçoado?

 Pelo menos, uma coisa eu posso afirmar: o Zé Certo não comete os erros que cometo, certo?

Na escola, sempre me atrapalhei com os números. Errava tanto as contas que era mais do que Zé Errado: era Zé Absurdo. O Zé Certo acertaria todas, certamente.

Sou míope. Um dia, aplaudi emocionado a manobra radical de um avião da Esquadrilha da Fumaça... lá no alto. Errei: era um urubu. O Zé Certo jamais seria bicado pela miopia, com certeza.

E minha relação com o tempo? Sou fiel e assíduo ao atraso. Sempre arrumo umas coisinhas pra fazer na hora em que eu deveria estar fazendo outras coisas. O Zé Errado acaba sempre chegando atrasado. E o Zé Certo? Sempre pontual, certeiro.

Sou o Zé Errado, que muitas vezes acreditou que as madrugadas não amanheciam... e às vezes nem eram madrugadas.

Não conte pra ninguém, mas eu nunca aprendi a assoviar. Nas vezes em que tentei, fiz um biquinho de francês com asma e chiei que nem pneu esvaziando.

 Coisas do Zé Errado.

Enquanto isso, o Zé Certo fica na dele, acertando todas. E ainda é ventríloquo da minha consciência. É alter ego idealizado, perfeição distante, completude que virá depois do meu fim.

Já que não sou o Zé Certo, contento-me em ser simplesmente um certo Zé. Cheio de erros, é verdade.

Zé Errado porque vivo... e é impossível viver sem tropeçar.

Zé Errante porque amo... e é impossível amar sem sentir saudade do porto.

Zé Errata porque escrevo... e é impossível escrever sem voltar pra fazer de novo.

E o Zé Certo?

O Zé Certo, na certa, é uma transformação e não um encontro. Por mais que o procurem, ninguém o encontrará pronto.

Nem a Carol.

Amor corpóreo

29 de Marco de 2023, por José Antônio 0

Traçam o amor como um rio: seguro de seu curso, jamais parado, desaguando na infinitude do oceano... Pintam o amor como uma flor: singelo, efêmero, nobre, natural... Versificam o amor como contradição: dor sem doer, contentamento sem contentamento, eterno enquanto não acaba...

Meu traço é torto e não sei pintar. O que me resta é escrever sobre o amor. Devo a meu corpo o ofício de escrever. Meu corpo, companheiro inseparável... confidente tão íntimo que assume em seus órgãos, músculos e glândulas os mais recônditos sentimentos da minha alma.

E é assim, ó minha amada, que vou dizer do amor: juntando palavras e corpo, pois é desse jeito que o amor se declara.

Meu corpo fala de amor em todas as suas fibras. Amo-te, ó minha amada, com unhas e dentes. E grito com a força dos pulmões um verso que sussurra ao pé de teu ouvido. Amo-te a ponto de te comer com os olhos e fazer ouvidos de mercador ao não do instante.

Amada minha, só de pensar em tua distância, meu queixo bate e minha solidão fala teu nome pelos cotovelos. Por isso, não te afastes do meu amanhecer. Osso de meus ossos, tu és costela cúmplice de tantos paraísos, frutos, expulsões e perdões.

Meu coração é testa de ferro do meu dia a dia. Vive arranhado e arranhando. Sempre com o cabelo em pé e a pulga atrás da orelha. Mas dou de ombros... o que se há de fazer? Meu coração tem costas largas e um rei na barriga. Jamais deixa se aquietar, incomoda o esqueleto e me leva a pescoçar teus movimentos, ó amada.

E quando estás assim, corpo vivo em minha mão leve, meu sangue ferve à flor da pele; são borbulhas de uma ousadia que transforma o momento em tudo, a palavra em literatura... e faz das tripas coração para sempre abrigar teu corpo e tua alma em minha alma e meu corpo.

É assim, minha amada, que meu corpo se faz amor.

Vitrine

01 de Marco de 2023, por José Antônio 0

A vitrine foi feita para a mulher.

Homem não fica encarando mostruários. Ele passa direto e vai lá dentro da loja comprar o que ele quer. A vitrine é medusa que seduz apenas olhos femininos.

Tanto é que as roupas e os sapatos à mostra são femininos. O manequim masculino se reduz a um tímido boneco sem graça que ninguém olha, nem mesmo os homens.

Mas com a mulher é diferente: ela precisa flertar com o produto que está atrás do vidro. Às vezes, nem compra. Porém, o ato de parar e ficar olhando ela não dispensa.

Tem mulher que para na vitrine, olha demoradamente o produto, entra na loja, vê a coisa de perto, agradece a atendente... e não leva nada. Pior: no dia seguinte, para de novo em frente à mesma vitrine e ainda traz uma amiga para ficar olhando com ela.

É só andar pela rua que você verá mulher que para mais em vitrine do que cachorro em poste. Não sei o que passa na cabeça de uma mulher quando ela está em frente à vitrine. “Quero comprar”.

Mas isso é óbvio demais.

Passam outras coisas, coisas além – muito além! – na cabeça dela enquanto está ali. Olhos fixos, pescoço rígido, algumas ainda balbuciam alguns sussurros enquanto namoram o vidro.

Ontem eu tive uma oportunidade de saber alguma coisa disso tudo. Parei ao lado de uma mulher que estava estacada em frente a uma vitrine. Cheguei aos poucos, nem olhei pra ela. Fixei meus olhos numa camisa masculina, mas observando minha parceira de vitrine. Ela olhava, olhava, olhava de novo... andava de um lado para o outro... sempre olhando.

Foi aí que ela notou que o vidro dava reflexo e que o reflexo era formidável para a sua vaidade. Ela então parou de namorar a vitrine e ela mesma se colocou na vitrine. A mulher, pelo reflexo do vidro, admirava-se a si mesma, fazendo poses, olhando-se de lado, mexendo nos cabelos...

Acabou vendo que eu assistia àquela cena toda. No ridículo do flagrante, ela se aprumou de repente e, antes de ir embora, ainda me lançou um sorriso sem graça.

Fui embora entendendo um pouquinho mais do íntimo feminino. Esse íntimo também se coloca numa vitrine, mas somente se revela quando a gente percebe o que ele reflete.

E aí, fica mais fácil conquistar o que esse íntimo oferece... sem precisar forçar a vitrine.

Vida nova

26 de Janeiro de 2023, por José Antônio 0

Mensagens, abraços... tudo desejando que no Ano Novo os meus sonhos se realizem. Confesso que andei falando isso para algumas pessoas também. Nada de mais em esperar alegrias. Porém, esperar essas coisas somente no último dia do ano é de menos.

E vem toda aquela coisa de certas pessoas ficarem deprimidas nas festas de fim de ano. Fica lá o cara com a taça de champanhe na mão, chorando e abraçando quem aparecer na frente, todo de branco. Típico deprê do fantasminha beberrão.

Essa tristeza, pelo que venho pesquisando em meus arquivos de cotidianidade nas mais cretinas enciclopédias do empirismo, aparece porque o indivíduo assume o seguinte lema no réveillon: Eu TENHO que ser feliz no ano que está começando.

Ano Novo, vida nova!

... mas é agora que você assume isso? No último dia do ano que está acabando? Você teve 364 dias inteirinhos para construir realizações. E aposta na alegria somente no último minuto do último dia?

Não são fogos iluminando o céu que vão trazer a felicidade... Pirotecnia das ilusões coloridas...

Não são beijos na boca que vão buscar a alegria. Ósculos fugidios nos lábios da euforia...

Não são bebedeiras que vão instaurar a tranquilidade. Pobre paz afogada no porre...

Não são pulinhos nas ondas à meia-noite que vão garantir os bons ventos do Ano Novo. Ao final das ondas, o naufrágio das expectativas...

Não são sementes de romã que vão fazer germinar a fartura no ano que começa. O estômago não é terra fértil para esse tipo de plantio...

No réveillon, muitos dos candidatos à felicidade olham para o Ano Velho como se estivessem se livrando de um fardo pesado e inútil: “Xô, Ano Velho! Vá embora, Ano Velho!”

Se mandam o Ano Velho para o lixo é porque nada dele serviu.

Se o ano que passou tivesse sido um espaço e um tempo de construção da alegria, da paz, da saúde e da fartura, então os fogos de artifício, os beijos na boca, os brindes, os pulinhos nas ondas e as sementes de romã seriam consequências felizes de uma consciência tranquila, e não um salto no abismo sádico das esperanças sem raiz.

E não cantaríamos “Adeus, Ano Velho”... e sim “Obrigado, Ano Velho... Feliz Ano Novo!”

Nada de especial no ano que começa. Os dias continuarão com as mesmas horas, a mídia continuará com as mesmas estratégias, alegrias aparecerão, lágrimas rolarão... O que deve ser especial, arrebatador, emocionante e alegre é o meu entusiasmo comigo mesmo, o meu compromisso de sempre fazer de mim uma edição renovada e revisada de acordo com as novas regras do acordo existencial. Esse tipo de comprometimento tem que ser todos os dias.

O réveillon nos lembra essas coisas, porém jamais vai garanti-las.

Cabe-nos escolher: a euforia do momento ou a alegria para além do momento.