Broto
26 de Marco de 2025, por Evaldo Balbino 0
Nas mensagens recebidas após o recente falecimento do meu pai, palavras amigas de sentimentos, não à deriva, mas plantadas na terra deste meu corpo carente como faltos são todos os corpos.
E aos remetentes, agora destinatários, remeti meu obrigado imenso pelos carinhos imensuráveis, na convicção de que nossa vida é maravilhosa e de que por isso mesmo ela é passageira. Expedi-lhes a crença (querendo-se inabalável) de que outra maravilha há de erigir-se mais adiante. Enviei-lhes o meu desejo de que vivamos as ausências, mas de que nessa vivência saibamos fazer durarem na memória as presenças dos nossos entes queridos. Aos meus correspondentes, fui dizendo estar em paz graças a Deus; com um vazio sim, mas com a certeza de que a morte também é necessária. De fato, ao longo da vida vamos passando pelas experiências dolorosas, mas todas elas são amainadoras do nosso ser, do nosso fôlego soberbo necessitado de compreender os próprios limites, mormente nesta existência terrena.
Um vazio, a perda. Na memória, porém, os ganhos do que foi e será sempre vida. De nossos poros sentimentais, nascem e renascem sempre os que amamos. Em nós a gema, o centro da vida nos dando origens, travessias e destinos. Na falta, a presença. O intumescimento que se destaca num galho qualquer para formar novos indivíduos, novos fôlegos. Na brotação que nos habita, somos plantas não dormentes, e de nós abotoam-se folhas e flores, abrolhos e arrulhos, arrebentos no beijo do vento, borbulhas e fagulhas, brotaduras, brotamentos e filamentos, gomos, grelos, mudas sonoras, rebentos fortes, refilhos e seus descendentes, renovos sempre antigos e renovadores. Nascemos e renascemos. Nunca se morre.
Meu pai, quase duas semanas antes de ser internado num hospital para não voltar mais a nossa casa, lidava no quintal com feijões vermelhos ainda em palha, todos colhidos na sua faina amorosa de lavrador. Ajudei-o a espalhar pelo chão cimentado afora aquelas palhas promissoras, grávidas de grãos. E ele pegando uma vagem ou outra e me dizendo alegre apesar de doente: “Deus é bom demais! Olha só, meu filho, como Deus é bom! Dum pouquinho de feijão, essa montoeira toda. A natureza é um mistério e é bonita demais!”.
Meu pai assim louvando a Deus, abraçando a natureza de modo poroso, mesmo estando ele doente por obra da mesma natureza e talvez do mesmo Deus, não sei – tudo isso me sendo lição de aceitação da vida.
Meu pai e eu, filho dele. Eu, um rebento seu, uma continuidade sua nesta vida para permanecer aqui falando dos seus gestos, da sua gesta. Eu, ramo da sua linhagem, buscando sempre conhecer seus passos, suas alegrias apesar das coisas ásperas. Eu, frágil, tenro, humílimo, vindo de homem tão forte no viver a vida e suas agruras. Da terra seca, sem vida, sem beleza aparente, a umidade vivificadora do meu pai, os seus olhos pequenos e espertos mirando o que se admira, seu nariz matutando o ar que se respira, o seu propósito de viver amando cada gota da existência. Eu cresci perto do meu pai, esta árvore imensa. E desejo, do fundo da minha precariedade, continuar sua vida: entre palavras e na própria vida mesma.
Foi o meu pai quem me disse, nos derradeiros dias da sua vida ainda consciente (antes, pois, do seu sono no leito de uma unidade de terapia intensiva): “Fica tranquilo, filho! Adoecer e morrer faz parte da vida.”. Faz parte sim, meu pai. E essa sabedoria, bem sei, só pode vir de um homem forte. O senhor sempre foi forte, mesmo me tendo dito num momento de dor aguda, perante a minha fala de que o senhor aguentaria tudo porque era um homem forte: “Já fui forte; não sou mais.”.
Ele, o meu pai eterno, faleceu no Hospital Nossa Senhora das Mercês. E quantos benefícios, favores, graças, obséquios e serviços ofertados a ele eu pude presenciar! Muito bem cuidado pelos profissionais da saúde, esses anjos de carne e osso aqui na terra, essas mãos de Deus entre nós. Meu pai recebeu mercês, todas elas vindas de força sagrada por meio dos instrumentos que o mesmo deus utiliza.
E a maior mercê de todas é a eternidade do meu pai. Para sempre renovado e amado. Para sempre amado.
Uma conversa mineira e universal
25 de Fevereiro de 2025, por Evaldo Balbino 0
Qualquer ato de fé é um movimento íntimo. E uma conversa mineira assim se perfaz. Quando escrevo, estou conversando com os meus e com os demais. E meus textos ganham, assim, o sabor de beira de fogão a lenha, o aroma das cantigas, da oralidade. E tudo isso me salva, pois me dá uma sensação de pertencimento. Pertencer é uma segurança na existência. Digo isso, mesmo sabendo das impossibilidades. Eis, então, que surge o poder da escrita, dessa linguagem poética que erige para mim uma salvação. Enredos e tramas, imagens e fios me conduzem pelos descaminhos da vida.
Nasci e fui criado no interior mineiro, mais especificamente na zona rural do município de Resende Costa/MG – no povoado Ribeirão de Santo Antônio. Fui criado à luz de lamparina, sem eletricidade, à beira de cachoeiras e entre grotas. Não acredito que um sujeito seja fruto do meio – esse pensamento não é científico e é ultrapassado. Mas creio piamente que um indivíduo pode fazer escolhas. E escolhi me apropriar do que, na minha formação, me é caro. Assim minha escrita se produz: escrevo no permeio de cantares, atravessado pelo tom de conversa que, desde pequeno, foi atravessando minha vida como um rio confesso. Nas minhas linhas, crepita o contar de casos e de causos à beira do fogão a lenha ou tomando a fresca no fim de tarde. Daí o caráter narrativo de muitas das minhas crônicas: um contar, um enredar de tradição dum narrador que vive, que experiencia, que sonha o vivido e que conta.
O mineiro, no final das contas, é muito apegado às tradições, à família. Digo do apego bom, daquele que, sem peias e correntes de tradicionalismo, nos dá a sensação de estarmos em casa. Nada na vida é paraíso. Mas essa consciência não me atordoa e não me inibe de construir paisagens no deserto, mesmo que elas sejam frágeis e belos móbiles. Nesta minha roda cabem tios, avós, irmãos, pai e mãe. Escrevo junto ao meu clã. Escrever sobre os meus, e entre eles, me é uma dádiva. Viver o dia a dia é o que temos para fazer. Historio sobre os meus e até mesmo sobre alguns que não conheci pessoalmente, mas a partir do ouvir falar, do que me contaram. Ninguém na existência foge disso. Até mesmo o maior lunático não foge dessa raiz que nos rodeia. Quando pensamos que nossos pés tocam a Lua, na verdade eles estão arraigados na Terra, introjetados nela. Nossos sonhos brotam de nossas vivências.
Imerso na consciência dos móbiles, belos e frágeis, tenho claro que a escrita é representação. Tudo é recorte do meu olhar, discurso que se erige sobre algo, pois o outro e a coisa em si são inalcançáveis ao nosso entendimento. Nem nós mesmos nos alcançamos. Desse modo, recriamos o já criado, discursamos sobre o mundo ao nosso redor e, mais do que tudo, sobre o mundo em constante construção dentro de nós.
Escrevendo, mergulho na poesia. Ela é a água que bebo, a minha estrutura, o meu fundamento. O poético é indubitavelmente religioso. Porque o nível de experiência é sempre o mesmo, o do religare. Do mesmo modo que me religo ao sagrado pelos rituais instituídos nas religiões, assim também a poesia me faz retomar o acesso a Deus. Ler um poema é orar, mesmo que seja um poema subversivo e até mesmo questionador das instituições religiosas. As palavras em estado poético nos colocam em transe, louvam a Deus pelo viés da beleza. Falo aqui da beleza estética. Dessa beleza que, mesmo representando o horrendo, me deixa em êxtase. E como é bom escrever, ler e declamar poesia!
O ato de declamar é uma performance parecida com a oração. Elevar a voz acima do comum, do banal, me torna um ser capaz de tudo o que é maior. Orações são verdadeiros poemas, trabalhados ou improvisados, não importa. Na tradição judaico-cristã, por exemplo, sabemos que os salmos são verdadeiras orações e verdadeiros poemas. A leitura do poema e a sua declamação sempre nos levam ao fora do comum, porque nesse momento não estamos usando a linguagem com o puro objetivo comunicacional; buscamos aí algo mais, o agrupamento das palavras, o casamento e a dissonância dos fonemas, a atração e a repulsão das letras entre si; enfim, um ritmo outro, outra respiração, a que nos pega dos pés à cabeça e nos revela o mundo de modo mais intenso.
Nessa conversa que se perfaz no meu pequeno vasto mundo, o mundo inteiro ressoa no que digo.
Meu pai na brisa da tarde
22 de Janeiro de 2025, por Evaldo Balbino 0
O carro sem ar-condicionado, um calor abafadiço, como abafados ficamos com lembranças doídas no peito suportando algo que se sabe e que não se explica. Depois de uma viagem sob mormaço, chuvas intermitentes buscando refrescar o mundo, a estrada sem poeira mas cansativa, cheguei a Resende Costa.
Já dentro da cidade, comprei algumas guloseimas, coisas triviais e maravilhosas, para meu pai e eu lancharmos.
Cheguei à nossa velha casa. Vivenda cansada, outrora cheia de tantas vidas, e agora com seus beirais de recato, janelas dianteiras fechadas, sem minha mãe e minha irmã para abri-las para a rua andarilha. Porém eu sabia que do outro lado do muro, em algum canto da casa ou do quintal, lá estariam o meu pai e o cachorrinho da minha irmã – um pinscher de olhos esbugalhados de tanta alegria. E de fato estavam.
Quem me recebeu foi o cãozinho. Enzo, o seu nome. Alcunha pomposa, de pessoa, se é que se pode dizer que nome humano tenha alguma pompa. A grandeza na verdade está em tudo. E nos nomes que antigamente eram exclusivos dos animais de estimação também sempre residiu e reside o esplendor.
Enzo me recebeu pulando, rodopiando, bem daquele jeito que ele sempre faz e fazia quando minha irmã ainda era viva. “É a menina do exorcista!” – dizia ela rindo, referindo-se brincalhona ao cachorrinho serelepe e enlouquecido.
O barulho do Enzo chamou a atenção do meu pai, que veio na minha direção lá dos fundos do quintal atrás da casa, para me dar um abraço. Para variar, estava com apetrechos nas mãos que não conseguem ficar quietas, que têm sempre que trabalhar para se sentirem existindo. Quase 85 anos o meu velho, e cheios de vida.
Abraço dado, e ele foi cuidando de fazer um café delicioso e tão somente do jeito que ele faz. Lanchamos, colocando a prosa em dia. Porque por telefone – todos os dias falo com ele – a coisa não é do mesmo jeito. Morando a mais de duzentos quilômetros distantes um do outro, somos unha e carne, inseparáveis. Só que falar presencialmente é outra coisa. Não há telefonia nem vídeos nem áudios que substituam a presença em carne e osso.
E o que fazer em relação aos que se foram desta vida concreta, aos que não podemos tocar e abraçar mais? Recorremos a fotos, imagens e à própria memória. Esta inclusive é poderosíssima, mas mesmo assim não nos deixa reter o que fisicamente se nos dava antes. Dirão que os afetos ultrapassam a necessidade da presença física. Sei disso. Mesmo assim somos carentes de corpo e de tudo o que ele nos traz. Precisamos existir concretamente nesta vida.
Depois do café, meu pai foi tomar o seu banho, enquanto fui ajeitando as coisas trazidas da viagem. Tenho um toque terrível: não consigo manusear nada que esteja dentro de malas e de bolsas. Necessito de uma organização em prateleiras, guarda-roupas, aparadores etc.
Quando terminei de ajeitar tudo, fui também tomar o meu banho. Chuveiro com aquecimento solar, sem a eletricidade que nos maquiniza. Cada vez que experimento essa ducha na casa dos meus pais, provo um pouco mais da minha cota de humanidade perto da natureza.
Já no meu quarto, escutei conversas vindas da rua, do lado de fora da casa. Abri a janela, e lá estava o meu pai sentado num banco que levara consigo, tomando a fresca e conversando com quem passava.
Imediatamente peguei de outro banquinho e fui me juntar a ele. A maioria das pessoas, eu não conhecia. 30 anos já morando em Belo Horizonte, a população não parando de crescer, e a nossa memória só reconhecendo as pessoas de antes. Todos nós mais envelhecidos na verdade, porém sempre reconhecíveis uns pelos outros. Na maioria dos diálogos travados ali na rua, eu me colocando mais no lugar do espectador admirando milagres.
O ar fresco do fim de tarde, a noite se abeirando, a boca da noite nos dizendo que a vida é breve e boa. Contrapondo-se ao calor do dia, o arejamento agora da rua entardecida. O abanamento dos gestos do escuro iminente seria iluminado pelos postes e pelas bocas e passadas de pessoas vivendo. Viver é tudo, e não há morte que resista a tudo isso.
Entre todos os milagres diante dos meus olhos, o meu pai rindo, contando casos e respirando o ar da graça divina. Vendo-o na calçada, eu via e vejo o homem apaziguado e de mãos dadas com Deus na brisa da tarde.
Dezembro pisca-pisca de 2024
25 de Dezembro de 2024, por Evaldo Balbino 1
Faz tempo que eu não lembrava dezembro. Este mês de compras, trânsito ensandecido e corrido de Belo Horizonte. Não que eu não estivesse atravessando por esse mês nos últimos anos. Fiquei sim meio sedado nos fins de 2022 e 2023. Questões de perdas familiares, luta insana e concentrada em tão pouco tempo. Seis meses de luta e de morte. Três partidas para sempre. Esse número trino, da ordem da Trindade, e outro múltiplo dele. Três partidas deixando atrás de si vazio e saudade. Mãe, irmã e irmão dando adeus à vida, a esta vida que vemos e sentimos diretamente neste plano.
Após os silêncios decretados – e eu aqui depois do silêncio –, passei por dois dezembros. Terminando o ano de 2022, um mês após o terceiro falecimento lá em casa, e todos nós entorpecidos. Terminei o que tinha por fazer aqui na capital e fui direto para ficar ao lado do meu pai, que então passou a viver sozinho na nossa casa no interior. Tenho mais cinco irmãos, porém todos casados e com suas vidas familiares outras constituídas. Fui para ficar com ele, como sempre tenho feito em fins de semana, incluindo-se algumas sextas e segundas que com esses fins de semana se emendam.
Em dezembro de 2023, idem. Envolvido com questões administrativas da universidade, busquei findar os trabalhos, e lá fui ficar com o meu pai. Retornei depois de alguns dias do Natal para passar o Ano Novo na casa de uma amiga. Tudo muito intimista, principalmente a estada com o meu velho.
Desde quando eclodiu a pandemia da Covid-19 no início de 2020 no Brasil, já fui me colocando mais recluso. Isso para uma mania já de reclusão anterior a tudo. Por isso os dezembros caseiros, ainda mais num momento em que quase todos nós buscávamos nos proteger e proteger aos demais. 2020 e 2021 – nem fui para a casa dos meus pais no interior. Já idosos eles, tive receio de por lá aparecer.
Há duas semanas venho passeando pelo trânsito de Belo Horizonte. Estou ainda preso ao meu trabalho (tão cedo não tirarei férias) e existente nesta vida. Não sei se se pode chamar de passeio o que venho vivenciando. Tenho saído de casa por necessidade. E, também por um imperativo, já fui duas vezes a shoppings. Não sou dado a compras, muitos menos em tempos natalinos. Mas desta vez urgiu que eu saísse para comprar algumas coisas: um presente para minha sobrinha-neta, um conjunto de roupa para uma criança residente num abrigo de menores, lembranças para colegas da escola onde trabalho e outras coisas afins. Isso sem falar das idas e vindas entre minha casa e meu trabalho.
Com a grande maioria das escolas já sem aula (exceto a minha, que é do âmbito federal e fez greve), as ruas deveriam estar mais leves, mais descontraídas, menos sufocantes. No entanto, tudo muito louco, insuportável. Carros que não param onde deveriam, setas que não são dadas, pessoas que dirigem como se a rua fosse somente delas, jovens inconsequentes em alta velocidade, engarrafamentos que não se explicam senão pelo excesso de automóveis. E, quando se anda mais um pouquinho, percebe-se que nada está ali adiante para ser um obstáculo. Apenas excesso e excesso sem fim: de carros, de pessoas, de movimentos que, mesmo desbaratados, não deixam de ser apertados. E ainda por cima chuvas – porque as chuvas em Belo Horizonte fecham os horizontes do movimento. Bastam bátegas sem vergonha, fraquinhas de nada, e tudo se convulsiona. Não há Cristo que aguente a situação. Calvários variados continuam a nos atravessar.
Eis este dezembro de 2024. Luzes em casas tantas, luzes nos olhos de quem muito deseja, principalmente ser feliz. Luzes nos faróis de carro entre água e tempo com certa neblina. Mais a poeira que nos atordoa – não falta gás carbônico para respirarmos. Numa fotossíntese às avessas, somos plantas em combustão. E como queimamos feito lamparina em pavio! Somos tomados de esperança. Vestidos da espera do que não se vê, mas daquilo em que se crê. Pois cremos piamente que a vida vale a pena, apesar de tudo.
E assim também eu, planta entre outras plantas no meio deste concreto entre casas e prédios, também sonho e esperanço. No meu prédio e nas portas dos apartamentos dos meus vizinhos, bolinhas de Natal me dizem vida e mais vida, alegre e triste sempre.
O culto à vida
27 de Novembro de 2024, por Evaldo Balbino 1
Um sobrinho de minha mãe faleceu hoje no fim do dia. Notícia que me chegou há pouco, por telefone. As telecomunicações, como todo e qualquer veículo comunicacional desta vida, carregam boas e más notícias. Esta, creio que ruim, me chegou agorinha mesmo. Meu pai me disse, assim que perguntei por ele, por meus irmãos, cunhados e sobrinhos: “Quem faleceu hoje foi o Zezé Tiago, marido da Chica”.
Um pouco mais novo do que minha mãe esse sobrinho, talvez um pouco mais velho – idades que, por fim, regulavam entre si, uma perto da outra.
Lembro que ele estivera presente no dia em que minha mãe se fora. Meus olhos baços de dor, úmidos de agonia, e mesmo assim puderam vê-lo tristonho no velório. Apertos de mão, olhares, condolências verbal e gestualmente distribuídas, e lá estava o sobrinho de minha mãe, ajudando-nos a velar o corpo dela já se despedindo desta vida.
Falei com meu pai algumas palavras usuais, porém verdadeiras. Tipo esta vida passa mesmo, pouco mais de dois anos depois da mãe, a Chica com certeza está triste (ela e os filhos), oremos por todos eles para que tenham força nesse luto...
Do outro lado da linha, a concordância do meu pai. A vida é isso mesmo, meu filho. Tudo passa. “E amanhã vou lá no Ribeirão, no velório. Ele teve no velório dos seus irmãos e da sua mãe. Agora vou lá pagar. Tenho que ir, não tenho?!”
Nas palavras do meu pai, antigas lições que sempre busquei aprender.
Ele vai amanhã ao velório, na zona rural a 14 quilômetros da cidadezinha, mas isso não vai ser por obrigação, não. Nem por costume. Há algo mais nobre do que o dever a ser cumprido, mais importante do que o mero cotidiano, este por si mesmo maravilhoso. Ele vai porque a morte precisa ser cuidada, compartilhada, vivida no coletivo para que não nos sintamos sozinhos, nem nós nem quem morreu. Os velórios são muito importantes. São a demonstração clara de nossa fragilidade e ao mesmo tempo de nossa grandeza.
Fui fazendo brincadeiras tais como o senhor pode ir a pé, é bom que exercita. E ele respondendo que vai fazer isso, apesar de estar com 84 anos e não ter mais condições de andar tão longe. Nós dois rindo do que na vida se nos oferece. E eu lhe falando que, se abusar, suas pernas estão melhores do que a minha. “Afinal, meu sedentarismo perde para o movimento constante do corpo esperto do senhor.”
Conversa vai, conversa vem, e terminei a chamada telefônica feita para ele. O silêncio se instaurou em mim, e me sentei aqui para escrever esta crônica. Imersos nos silêncios, temos sempre o que dizer. Nunca nos calaremos.
E o que dizer aqui? Como explicitar o que se escreve? Já venho dizendo coisas desde o título deste discurso. Venho falando do que acontece todos os dias pelo mundo afora. Morremos. Morre-se.
Antes de tudo, porém, nascemos.
O sobrinho de minha mãe, por exemplo. Minha mãe mesma, antes de tudo. Morreram, mas estão nascendo aqui cada vez que os nomeio. Zezé. Laura. Isso não são apenas dois nomes. Ao escrever essas duas palavras, os seres nomeados voltam a viver. Se pensamos, falamos e escrevemos, não é possível haver o fim de tudo e de todos. O mundo não tem fim.
Bem sei do que é certo. Meu primo dorme agora. Minha mãe deitou-se entre flores no dia 23 de maio de 2022. Estávamos saindo de uma pandemia terrível, e todos nós preocupados com nossos pais, vendo no vírus da Covid-19 os males encarnados, para de repente minha mãe adoecer de outro mal e partir.
O corpo se vai, mas nós permanecemos. Permanecem dona Laura e o Zezé nestas linhas. Sei que permanecem. Por isso o meu amor pela memória, esse processo de reviver, mesmo que de modo diferente, o já vivido. A vida repetida e amada.
Escrever “Laura” e “Zezé” é o mesmo que promover um rito, prestar homenagem, fazer uma cerimônia. Escrever esses nomes é cultivá-los com esmero para florescerem redivivos do fundo do escuro. Escrevendo, somos sacerdotes adorando em êxtase o que não finda: a profunda vida.