As canções que fizeram pra nós
25 de Setembro de 2024, por Evaldo Balbino 1
“Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão / todo artista tem de ir aonde o povo está.” Essas palavras de Milton Nascimento ecoam em minha memória de amante de música. E o brilho diamantino desse agrupamento de vocábulos me diz do que brilha em nós, estes seres fazedores e consumidores de arte. Cada qual de nós é homo ludens – existência que desde os tempos primitivos se perfaz no jogo instaurado nos diversos ritos e com variadas linguagens. Na canção de Milton, o som de “encharcado” reverbera em “chão”, nossa alma cheia de húmus, daquilo que nos compõe. Essa totalidade espiritual e material me tomou por inteiro no show finíssimo de Caetano Veloso e Maria Bethânia no dia 7 de setembro último. Os dois irmãos chegaram até nós no Estádio do Mineirão lotado de gente e de melodia.
Com alegria e alegria, cantamos todos em acompanhamento aos irmãos, numa plateia irmanada sem a necessidade de lenço e documento, multidão desconhecida se roçando ao resvalar da brisa de uma noite suave e de uma lua leve não inteira, mas completa. No seio de uma Belo Horizonte noturna, passamos a ser doces bárbaros às avessas, porque invadidos de alto astral, lindas canções, afoxés, astronaves, aves – tudo num cordão de vozes em coral de festa.
Era gente brilhando e orando ao tempo. Entre o macho céu e a feminina terra, éramos fêmeas e machos simultaneamente. “E em tudo a voz de minha mãe e a minha voz na dela”. A noite bela e boa doendo em mim a saudade de quando minha mãe, antes de virar estrela, cantava cantadeira. Era a presença renovadora entrando pelos sete buracos da minha cabeça. Uma canção pra ela, minha mãe, mineira e seresteira. E na minha memória a minha mãe, ó minha Nossa Senhora, ó minha Mãe Menininha, virou donzela de novo e de novo se casou, com vestido e véu e flor. “Minha flor no cafezal – era a voz da minha mãe Laura entre as vozes de Bethânia e Caetano. E tudo novamente, novidadeiro e sempre eterno: a lembrança nostálgica plantando semente e raiz. Minha mãe me dando ao mundo, me ensinando deveres e direitos mais do que lavrados. Meu pai me avidando amoroso e rígido, me dizendo da dor do mesmo mundo, do seu vinho desnudo e da sua via dolorosa. O meu povo sofrido e alegre, porque a vida é uma senhora ambígua, a vida é uma festa sem hora.
Apaziguado, porque a arte tem esse poder divino, me senti sendo dois rios correndo irmanados para o mar, escorrendo para o encontro final. A água e eu sendo apenas um, doce ou salgado o nosso corpo, não importa. Eu sendo água afro-brasileira, povo resistente, como resistentes foram meus ancestrais paternos, do lado do meu avô em cujo corpo foram morar indígenas e negros. Todos nós sendo filhos de Gandhi, espíritos e matérias na festa da carne, na manifestação de nossa beleza e de nossa alegria na diversidade. Na festa do nosso corpo e do nosso espírito – uma festa inteira e toda –, a vida ao rés do chão parece um céu de estrelas. E o rio correndo, fluminense ou baiano, mineiro ou paulista – sempre artista na arte de viver.
Ouvindo os irmãos cantadores, revivi Iracema e Carmen Miranda, fiz um movimento mental pelo meu país, o de ontem e o de hoje. Perante mim, os marginalizados sob as botas de generais e pelas cidades atuais, indígenas (virão que eu vi) descendo sobre a vida límpida e passarinha. E a fé, mesmo a abalável fé, se dizendo e se gritando aos quatro ventos: pra quem é forte, pra quem é foda, pra que não foge à luta mesmo não usando clava, pra quem não perde o foco – fé, enfim, pra enfrentar esses filha da puta dominadores.
No dentro das músicas, nossos ouvidos se expandiram para fora, lançando chuva e areia no Saara, jorrando romãs e iaras no recôncavo do Estádio do Mineirão. Sob o céu belo-horizontino, plantamos nossos pés nas arquibancadas e voamos como águias pelo céu amazônico e romano.
Senti profundamente como a vida e a morte também são irmãs. Senti e sinto. Tomando uma cajuína e recebendo rosa pequenina, cada qual de nós sente roçar no frágil corpo a consolação nossa maninha. E assim nos sentimos amparados, nunca sozinhos. Temos amor leãozinho com sua juba de sol, temos a lembrança que não nos deixa esquecer quem amamos, pois nunca aprendemos a esquecer. E a lindeza de quem amamos é sempre mais que demais, tão demais que nos arrebentamos de amor, que os nossos corações explodem, que nossas bocas ainda se sentem molhadas pelos beijos nunca cessados. Na América do Sul ou no Japão, no Polo Norte ou no Polo Sul, amamos em inglês e em braile, em português e em híndi. Entre piscinas, margarinas, Carolinas e gasolinas, nós nos amamos como vacas profanas e suas divinas tetas. Com nossos quereres tão desconexos e conectados, no mundo múltiplo e vertiginoso, respeitamos nossas lágrimas, porém muito mais nossas risadas.
Sabemos que a vida é mesmo assim: ela se faz de lisuras e de dobras, de suavidades e de asperezas. Aprendemos, no entanto. Aprendemos mais de D(eus), pois ele nos habita e cuida de nós. Está sempre conosco aquele que é, foi e vai; que é o tudo e o nada; que é raso, largo e profundo; que é o início, o fim e o meio – eternamente e de novo. Na multiplicidade que nos atordoa, não andamos à toa, e vamos singrando na terra, no fogo, na água e no ar. Mesmo se não estamos em Deus, ele está em nós. No jogo de viver, a arte de sorrir impera com dentes ridentes, ainda que o mundo diga “não”.
Daí a dança da vida. Esta que arranca e pula, que treme e balança, que ginga e que ora, que pulsa e pulsa em sua veia e na qual queremos mais e mais, almejamos barcos e cais, ambicionamos os faróis e seus sinais. Desejamos ouvir e cantar! Ao som de “Odara” a dor se apaga, o nosso corpo se alegra e declara que o mundo pode ser feliz. O nosso corpo sabe que todas essas canções foram feitas pra nós.
Perdoai-nos!
30 de Agosto de 2024, por Evaldo Balbino 0
Tudo pode ter início com o fechar de olhos. Porém até mesmo os olhos abertos não deixam de meditar no sagrado, porque todos os corpos são atravessados por uma luz invisível. Uma luz que se pode escutar, que se pode sentir como se sente o frio que nos arrepia. Essa luz tem corpo, e o frio que nos causa é quente, fazendo ela acenderem-se os pelos, tornando o nosso corpo mais leve. Quase que levitamos. Acontece uma luta entre essa luz e a lei da gravidade. Se não fôssemos deste plano terrestre, se não existíssemos nesta matéria, levitaríamos por certo.
Há os que consideram tudo isso fenômeno psicológico, criação da fantasia de pessoas fanáticas. Pois digo que não é assim. Se há fanatismos, e eu acredito neles, há aquela comunhão tão profunda, que nossos corpos, nossas mentes e nosso espírito – tudo é uma coisa só, existindo para louvar e para desejar o que se louva.
Na igreja, quer cantando hinos, quer ouvindo testemunhos dos feitos sagrados nesta existência miúda e por isso mesmo imensa, quer ainda orando em silêncio ou em voz alta, o fiel em comunhão é um todo sem divisões. O corpo treme, a voz tem prazer, os sentidos são tocados por algo maior e tão carne deste mundo. A alma tem corpo e o corpo tem alma. O prazer e a dor são confundíveis. O torpor se casa com o fascínio e com a exuberância da existência total.
Nos rituais, a mente ao mesmo tempo solícita com as coisas deste mundo e de outro. O coração simultaneamente preocupado e bonançoso. Nos ritos, o risco de Deus nos corpos e o riso da vida arranhando a morte. Essa inscrição rasura o que não aceita a vida, o que quer vê-la na ausência de si mesma.
Assim os cultos. Aqueles momentos em que o gado de Deus se reúne e roça os chifres entre si. Todos os corpos sendo a mesma coisa: ausência almejando presença. E todos, todos na experiência, mesmo que fugaz, da plenitude divina e humana.
Sei que existem sim os ciscos nos olhos de todos, mas isso também nos torna mortais merecedores de toda essa glória.
Um vendo no outro a roupa decotada, como se tal vestimenta fosse pecado. A própria ideia de pecado ela mesma, muitas vezes, um equívoco profundo e de longa data na história humana. Aquele outro, alguém pensa, não é crente de verdade. Fulana não fica com um homem só. Coitado daquele senhor, pois bebe muito e não consegue controlar o vício. Aquela, nem se fala: fica o dia todo falando mal dos outros e agora está aqui dando uma de santa. O seu Plínio, só Deus na vida dele, pois não pode ver rabo de saia que endoidece! Viram o filho da beltrana? Pois ele não vem mais na igreja. A Gertrudes pensa que nos engana com esse ar de beata. Aquele menino chora demais da conta e não deixa ninguém ouvir a pregação. Será que o futebol de amanhã vai dar pé? Ah se eu acertar na loteria! Se eu ganhar, vou dar dinheiro aos pobres como Jó ficou pobre feito eu...
Durante todos os cultos, essa miscelânia de pensamentos e sentimentos. Ora mais, ora menos. Às vezes nada. Ou até mesmo tudo. Nas bocas, os louvores; nas mentes, os lavores interminavelmente humanos e falhos e belos. Existir é mesmo tudo isso, graças a Deus!
Existimos e pensamos, julgamos e somos julgados, desejamos e odiamos, adoramos e perjuramos, somos discretos e opiniosos... É justamente por tudo isso que somos perdoados. Não tem como existir o perdão, se não há o que ser perdoado.
É tão bom ser assim! E saber que sempre podemos encontrar em nós um limite, uma falha, uma aresta que é importante existir. O que faríamos se fôssemos autossuficientes? Pobres de nós! Perderíamos a nós mesmos dentro de nós. Louvado seja Deus por isso!
Dom Baiano e suas duas mulheres
31 de Julho de 2024, por Evaldo Balbino 0
Era nobre o Baiano, superior mesmo. No trato com as pessoas, no modo de andar e conversar. Já idoso na verdade, mas creio que o seu andar lento era um modo de respeito. Falava pausadamente. Com simplicidades, porém sempre nos seus paletós engomados, calça e sapato lustroso. Dentes raros na boca que não se fechava, faladora e alegre. Sempre em movimento no contar casos e rir com vontade para o mundo.
Ele vivia com duas mulheres, uma irmã da outra. As duas com o seu único marido. Uma, quieta, calada, raramente vista por mim e muito fechada em si mesma. A outra, alegre, bonachona, expansiva na fala e nos gestos, o corpo todo forte se balançando. Ambas de idade também avançada. E as duas e o marido avançando pela vida.
Poligamia?! Isso não existe para certos mundos, para pessoas que vivem à margem de leis humanas feitas a esmo delas. Se havia papel passado nesse caso? Por certo não. Talvez houvesse um só matrimônio registrado. O outro, paralelo e consentido: pelo menos era o que se sentia no trato que se via entre os três.
Eu brincava bastante com a esposa comunicativa. Ela ia junto ao marido para fazer compras ali onde eu era caixeiro, atendente, repositor de mercadoria em prateleiras, um pouco contador, carregador de sacos para o depósito, levador de botijões de gás para as casas vizinhas, instalador dos botijões perante os olhos de donas de casa receosos de uma explosão.
O que explodiam mesmo eram as risadas da Aninha, uma das duas esposas do Baiano. Cabelos crespos guardados por um lenço, este arrebanhado na nuca e amarrado num laço firme. Sempre de blusas longas e calças jeans, uma aliança imensa no dedo anular. Seu corpo era feliz por natureza. Um gingado no andar, um bamboleio de olhos e bocas, de gestos e palavras. Aninha andava como se estivesse dançando. Muitas vezes passava sozinha pelo armazém e conversava com este caixeiro que eu era e ria e me fazia rir, e me alegrava o dia e a vida.
O Baiano nunca passou sozinho por mim, mas sempre acompanhado pela Aninha ou pelas duas esposas. Isso, mensalmente, quando, de posse do seu ordenado de aposentadoria, fazia as compras para a casa de três pessoas. Tinham filhos? Não sei dizer. Só sei que as compras eram fartas.
Açúcar para dar e vender, café para bocas sequiosas, sal de dar gosto na comida, banha de porco empacotada aos montes, caixas de fósforo, muito querosene, mortadela, queijo, sabão em pedra, água sanitária, fumo em rolo, pacotes de fumo Sabiá, retroses, pacotes de farinha de trigo, idem para farinha de mandioca e de milho, pães (não se importavam com o fato de que esses pães ficavam murchos no passar dos dias), fubá a granel, goiabada, doce de leite em barra... E a lista seguia desenvolta a encher caixas de papelão, que eram levadasna carroceria de uma caminhão de leite para um dos povoados do município.
A compra de fora do armazém esperava pelo caminhão, e a prosa gostosa e calma dos três. O garnisé tá batendo no galo índio. Qual dos dois deixar no terreiro, se a gente quer as duas raças? As galinhas gostam dos dois: que se entendam! Tem que encher as lamparinas ainda hoje. Amanhã no jirau o queijo vai secar direito se tiver sol. A roupa no varal vai molhar se chover. E assim continuavam as falas para o meu ouvido amante.
Quando o veículo empoeirado chegava e não tinha outro cliente para atender, eu ajudava o motorista a subir com quase tudo. O marido e as mulheres não tinham força para isso.
Em todo esse processo de compra, eu mais gostava mesmo era do ritual que logo de início o Baiano realizava. Chegava-se a mim, enfiava a mão no bolso da calça e de lá tirava umas notas poucas e graúdas: “Moço, troca pra mim tudo em nota da mais miúda?”. E eu trocava.
Com o bolo de dinheiro na mão, ele ia contando cédula por cédula, o polegar e o indicador deslizando com gosto, de vez em quando o dedo indicador indo à boca para pedir ajuda do cuspe na tarefa de separar os papeizinhos coloridos. Os olhos brilhando de contentamento no contato com o bolo imenso dentro das mãos em concha, mesmo que sendo um salário apenas. E como rendia esse salário! Dom Baiano contava as notas não era para conferir se eu tinha dado o dinheiro certo não. Fazia isso por prazer.
E lá iam os três no caminhão. Levando alegria e vida, e deixando também as duas comigo.
As reais flores virtuais e suas lições
26 de Junho de 2024, por Evaldo Balbino 0
Faz tempo que recebo flores. Elas me chegam quase todo dia desde mais ou menos 2016. Não me lembro do exato momento.
No início, e por um longo período de 5 anos, atravessavam caminhos aéreos por nuvens imensuráveis. Saíam de Santiago do Chile e vinham para Belo Horizonte, por sobre cadeias montanhosas, planícies imensas e planaltos de vertigens.
Santiago, Mendoza, Curitiba, São Paulo... Com leves desvios, mas com destino certeiro, de lá vinham elas por terras chilenas, argentinas e brasileiras. Em algumas vezes passando em Córdoba, noutras em Buenos Aires. Sem esquecer La Plata, é claro! Mais para o norte, Resistencia. Em terras paraguaias raríssimas vezes, na Ciudad del Este. Os passeios por Joinville, Londrina e Campinas não raras vezes também namoravam os céus de Santos. E nessa cidade paulista os seus olhos líquidos de flores se deleitavam com o mar imenso, para depois, em Minas, terem saudade dele.
E aqui em Belo Horizonte, nesta antiga Nossa Senhora da Boa Viagem do Curral del Rey, elas pousavam como pássaros amenos. Um voo amoroso, risco de afeição no ar, e um ancoradouro em meus olhos florais.
Até aí, os voos sobre a Cordilheira dos Andes eram arroubos no vento, os aviões sendo soprados pela ventania fria e aterrorizadora, dando nas pessoas um medo da morte. A cordilheira imensa e gótica, o céu azul ou escuro dependendo da hora, o firmamento sem nuvens ou com elas, as montanhas cobertas de gelo... E elas, as flores, vinham solertes e seguras dentro das nuvens e contemplando rios sem fim.
Maipo, Cachapoal, Tinguiririca, Mataquito, Mendoza, Tunuyán, Desaguadero, Uruguai, Paraná, Rio Grande, Paranapanema, Tietê, Rio das Velhas, Paraopeba – tudo era rio sob as sombras de tantas flores viajando até mim, tudo eram águas claras ou turvas antes de nós mesmos, tudo era caminho da onça porque nesse tudo água se bebia e se matava a sede.
As plantas têm a pia consciência de que precisam de água. E por isso mesmo, mais inteligentes que os humanos, tratam de cuidar do que é vital para elas.
Depois de 2021, as sempre flores continuaram chegando, mas agora dum recanto brasileiro de cujo nome não me lembro. Quem as fotografa é mulher amiga de longa data. E corriqueiramente um “bom-dia” carinhoso e uma flor de jardim. Do jardim de sua mãe que tanto cuida das plantas. Dos jardins de sua cidade que tanto preza pelas flores.
Outro dia mesmo, um buquê de Flor da Fortuna brotando de ramas verdes e me desejando sorte e prosperidade. No dia seguinte, uma delicada Amor-agarradinho almejando proximidade. Noutro dia ainda, uma orquídea roxa de paixão e amor, e eu vendo no roxo suave toda a elegância e a sofisticação da vida, a admiração e o apreço entre pessoas que se querem bem, e em tudo a espiritualidade e os mistérios tão reais como as próprias flores sorrindo para mim na tela do meu celular.
Se me enjoo com tantas flores todos os dias? Não.
Se desdenho delas por virem em fotos digitais? Nada disso.
O gesto carinhoso dessas flores é o aceno da mulher amiga que as envia para mim. Não me incomodam bons-dias, principalmente quando são cumprimentos brotando de seiva viva, verdadeira e duradoura. Sentimento atravessando tempo e espaço para me dizer afeto em plena concretude.
Não me importa o fato de serem fotos digitais o que recebo. De tanto olhar para elas, de tanto mirá-las, contemplá-las e guardá-las inteiras em mim, são no final das contas flores que eu tanto quero. A presença e o perfume, o veludo do tato e o broto no frescor do chão de um jardim, o cheiro de terra no meu nariz sedento de ar e de amar... Não há como não gostar de tanta carícia em mundos tão rudes e poluídos, em mundos tão carentes de um gesto de flor.
Precisamos aprender com as flores. Disso bem sei.
Lava-me agora!
21 de Maio de 2024, por Evaldo Balbino 0
Chove torrencialmente agora em Belo Horizonte. Isso poderia ser o início de uma clássica e tradicional redação. Poderia ser até mesmo uma escrita piegas. Até hoje, porém, ninguém me demonstrou racionalmente quais sãos as características do que se considera piegas ou brega.
Isto aqui poderia ser protocolar composição de escola, mas não é. Chove de fato, como de fato estou aqui escrevendo escondido da chuva. Não que eu tenha que esconder dela que escrevo e que a escrita me é necessária desde sempre. Aliás, não preciso esconder nada da chuva. Ela simplesmente cai, geralmente de modo oblíquo, porque nesta vida as linhas retas são ilusões.
A chuva cai enquanto escrevo estas linhas. Foi ela quem, ao começar a cair, me pediu para escrever. Falei há pouco que ela simplesmente cai. Contudo, sou um sujeito anímico. Entendam bem: anímico e não anêmico. O meu sangue vai bem, graças a Deus! Não é azul. É mesmo vermelho igual ao de todo mundo. De fidalguias e pedigrees não temos nada. Somos meros humanos na existência. E detalhe: debaixo desta chuva ou longe dela, somos uma espécie entre espécies. E mesmo assim quase todos nós nos arvoramos em antropocentristas inevitáveis. Coitados de nós!
Meu estado anímico, ou melhor, meu ser anímico, me faz conversar com a chuva, com esta chuva e com todas as outras. E é com ela que falo, e com você também que agora, neste exato momento, me está lendo. Seja dia, seja noite; esteja frio, esteja quente; faça chuva ou faça sol – não importa. Fato é que escrevo, que escrevemos e lemos.
Há quase quarenta anos – e os desertos se estendem –, compus um dos meus primeiros poemas (ensaios de poesia). E era justamente sobre a chuva que falava esse texto. Não exatamente sobre ela, mas sim sobre uma conversa com ela. Lembro que eu lavrava um diálogo com as águas insensíveis caindo no telhado e dizia enfaticamente: “Vem, chuva! / Vem lavar sem sabão / a minha existência!”. Péssima imagem essa! Mas paciência, pois foi o que escrevi. Graças a Deus que este poema não se concretizou, graças a Deus que ele se perdeu ao longo da minha vida e nunca encontrou lugar em nenhum livro meu!
A despeito de horrível, esteticamente falando, a imagem feita pelo jovem recém-saído da adolescência não era vazia. Tinha lá o seu sentido. O meu desejo era o de me lavar nas águas da chuva, o de tomar banho da água do céu. Não o céu espiritual, mas essa atmosfera acima de mim, tão suja quanto este mundo ou quase. O que eu queria eram as águas que subiram, que ganharam forma e densidade e que naquele momento estavam caindo sobre o telhado da minha casa. Em suma, o que eu queria eram as águas que tinham viajado pelos ares, as águas voadoras. Aquele banho, se concretizado, me daria mais leveza, sem necessidade alguma de interferência química das mãos humanas. Eu queria a chuva, simplesmente ela.
Eu a queria como agora te quero, chuva! Mas agora quero mais fortemente. Te quero do mesmo modo como te vejo pela janela chocando-te com o vidro. Te quero da mesma maneira como te escuto, meus ouvidos abertos ao teu ruído, meus sentidos atentos aos gemidos do vidro e de parte da cidade molhada. Sei que muitos não têm um abrigo, um teto – e isso me machuca. Mas, o que posso fazer neste exato momento, quando o que mais quero é o teu corpo líquido no meu corpo sólido e pesado?
Se eu pudesse, voltaria neste momento às ruas da minha infância em Resende Costa. Nada aqui de romantizar a minha vida de criança. Mas, garoto, eu tinha mais ímpetos debaixo da chuva, caminhava enxurradas inteiras para depois ouvir gostoso os xingamentos da minha mãe dizendo que eu poderia me constipar. E eu lhe dizendo que nada, mãe! Disso não se adoece. E depois a senhora vindo e me dando leite quente ou chá quente para combater a friagem. Ainda bem que você não tava descalço! A friagem entrando pelo pé é pior. Mal sabia ela que, na verdade, eu caminhara descalço e que somente em casa eu tinha colocado os sapatos. Ou então ela sabia, mas fingia não saber.
Me vieram agora, mais do que nunca, saudades da senhora, mãe. O desejo de ter mãe de novo, sempre renascida, brota desta chuva como brotam flores que trazem vida e felicidade.
O que esta chuva caindo faz é me trazer de volta a senhora, mãe, sempre quente e doce. A senhora para sempre eterna.