Retalhos Literários

Meu pai na brisa da tarde

22 de Janeiro de 2025, por Evaldo Balbino 0

O carro sem ar-condicionado, um calor abafadiço, como abafados ficamos com lembranças doídas no peito suportando algo que se sabe e que não se explica. Depois de uma viagem sob mormaço, chuvas intermitentes buscando refrescar o mundo, a estrada sem poeira mas cansativa, cheguei a Resende Costa.

Já dentro da cidade, comprei algumas guloseimas, coisas triviais e maravilhosas, para meu pai e eu lancharmos.

Cheguei à nossa velha casa. Vivenda cansada, outrora cheia de tantas vidas, e agora com seus beirais de recato, janelas dianteiras fechadas, sem minha mãe e minha irmã para abri-las para a rua andarilha. Porém eu sabia que do outro lado do muro, em algum canto da casa ou do quintal, lá estariam o meu pai e o cachorrinho da minha irmã – um pinscher de olhos esbugalhados de tanta alegria. E de fato estavam.

Quem me recebeu foi o cãozinho. Enzo, o seu nome. Alcunha pomposa, de pessoa, se é que se pode dizer que nome humano tenha alguma pompa. A grandeza na verdade está em tudo. E nos nomes que antigamente eram exclusivos dos animais de estimação também sempre residiu e reside o esplendor.

Enzo me recebeu pulando, rodopiando, bem daquele jeito que ele sempre faz e fazia quando minha irmã ainda era viva. “É a menina do exorcista!” – dizia ela rindo, referindo-se brincalhona ao cachorrinho serelepe e enlouquecido.

O barulho do Enzo chamou a atenção do meu pai, que veio na minha direção lá dos fundos do quintal atrás da casa, para me dar um abraço. Para variar, estava com apetrechos nas mãos que não conseguem ficar quietas, que têm sempre que trabalhar para se sentirem existindo. Quase 85 anos o meu velho, e cheios de vida.

Abraço dado, e ele foi cuidando de fazer um café delicioso e tão somente do jeito que ele faz. Lanchamos, colocando a prosa em dia. Porque por telefone – todos os dias falo com ele – a coisa não é do mesmo jeito. Morando a mais de duzentos quilômetros distantes um do outro, somos unha e carne, inseparáveis. Só que falar presencialmente é outra coisa. Não há telefonia nem vídeos nem áudios que substituam a presença em carne e osso.

E o que fazer em relação aos que se foram desta vida concreta, aos que não podemos tocar e abraçar mais? Recorremos a fotos, imagens e à própria memória. Esta inclusive é poderosíssima, mas mesmo assim não nos deixa reter o que fisicamente se nos dava antes. Dirão que os afetos ultrapassam a necessidade da presença física. Sei disso. Mesmo assim somos carentes de corpo e de tudo o que ele nos traz. Precisamos existir concretamente nesta vida.

Depois do café, meu pai foi tomar o seu banho, enquanto fui ajeitando as coisas trazidas da viagem. Tenho um toque terrível: não consigo manusear nada que esteja dentro de malas e de bolsas. Necessito de uma organização em prateleiras, guarda-roupas, aparadores etc.

Quando terminei de ajeitar tudo, fui também tomar o meu banho. Chuveiro com aquecimento solar, sem a eletricidade que nos maquiniza. Cada vez que experimento essa ducha na casa dos meus pais, provo um pouco mais da minha cota de humanidade perto da natureza.

Já no meu quarto, escutei conversas vindas da rua, do lado de fora da casa. Abri a janela, e lá estava o meu pai sentado num banco que levara consigo, tomando a fresca e conversando com quem passava.

Imediatamente peguei de outro banquinho e fui me juntar a ele. A maioria das pessoas, eu não conhecia. 30 anos já morando em Belo Horizonte, a população não parando de crescer, e a nossa memória só reconhecendo as pessoas de antes. Todos nós mais envelhecidos na verdade, porém sempre reconhecíveis uns pelos outros. Na maioria dos diálogos travados ali na rua, eu me colocando mais no lugar do espectador admirando milagres.

O ar fresco do fim de tarde, a noite se abeirando, a boca da noite nos dizendo que a vida é breve e boa. Contrapondo-se ao calor do dia, o arejamento agora da rua entardecida. O abanamento dos gestos do escuro iminente seria iluminado pelos postes e pelas bocas e passadas de pessoas vivendo. Viver é tudo, e não há morte que resista a tudo isso.

Entre todos os milagres diante dos meus olhos, o meu pai rindo, contando casos e respirando o ar da graça divina. Vendo-o na calçada, eu via e vejo o homem apaziguado e de mãos dadas com Deus na brisa da tarde.

Dezembro pisca-pisca de 2024

25 de Dezembro de 2024, por Evaldo Balbino 1

Faz tempo que eu não lembrava dezembro. Este mês de compras, trânsito ensandecido e corrido de Belo Horizonte. Não que eu não estivesse atravessando por esse mês nos últimos anos. Fiquei sim meio sedado nos fins de 2022 e 2023. Questões de perdas familiares, luta insana e concentrada em tão pouco tempo. Seis meses de luta e de morte. Três partidas para sempre. Esse número trino, da ordem da Trindade, e outro múltiplo dele. Três partidas deixando atrás de si vazio e saudade. Mãe, irmã e irmão dando adeus à vida, a esta vida que vemos e sentimos diretamente neste plano.

Após os silêncios decretados – e eu aqui depois do silêncio –, passei por dois dezembros. Terminando o ano de 2022, um mês após o terceiro falecimento lá em casa, e todos nós entorpecidos. Terminei o que tinha por fazer aqui na capital e fui direto para ficar ao lado do meu pai, que então passou a viver sozinho na nossa casa no interior. Tenho mais cinco irmãos, porém todos casados e com suas vidas familiares outras constituídas. Fui para ficar com ele, como sempre tenho feito em fins de semana, incluindo-se algumas sextas e segundas que com esses fins de semana se emendam.

Em dezembro de 2023, idem. Envolvido com questões administrativas da universidade, busquei findar os trabalhos, e lá fui ficar com o meu pai. Retornei depois de alguns dias do Natal para passar o Ano Novo na casa de uma amiga. Tudo muito intimista, principalmente a estada com o meu velho.

Desde quando eclodiu a pandemia da Covid-19 no início de 2020 no Brasil, já fui me colocando mais recluso. Isso para uma mania já de reclusão anterior a tudo. Por isso os dezembros caseiros, ainda mais num momento em que quase todos nós buscávamos nos proteger e proteger aos demais. 2020 e 2021 – nem fui para a casa dos meus pais no interior. Já idosos eles, tive receio de por lá aparecer.

Há duas semanas venho passeando pelo trânsito de Belo Horizonte. Estou ainda preso ao meu trabalho (tão cedo não tirarei férias) e existente nesta vida. Não sei se se pode chamar de passeio o que venho vivenciando. Tenho saído de casa por necessidade. E, também por um imperativo, já fui duas vezes a shoppings. Não sou dado a compras, muitos menos em tempos natalinos. Mas desta vez urgiu que eu saísse para comprar algumas coisas: um presente para minha sobrinha-neta, um conjunto de roupa para uma criança residente num abrigo de menores, lembranças para colegas da escola onde trabalho e outras coisas afins. Isso sem falar das idas e vindas entre minha casa e meu trabalho.

Com a grande maioria das escolas já sem aula (exceto a minha, que é do âmbito federal e fez greve), as ruas deveriam estar mais leves, mais descontraídas, menos sufocantes. No entanto, tudo muito louco, insuportável. Carros que não param onde deveriam, setas que não são dadas, pessoas que dirigem como se a rua fosse somente delas, jovens inconsequentes em alta velocidade, engarrafamentos que não se explicam senão pelo excesso de automóveis. E, quando se anda mais um pouquinho, percebe-se que nada está ali adiante para ser um obstáculo. Apenas excesso e excesso sem fim: de carros, de pessoas, de movimentos que, mesmo desbaratados, não deixam de ser apertados. E ainda por cima chuvas – porque as chuvas em Belo Horizonte fecham os horizontes do movimento. Bastam bátegas sem vergonha, fraquinhas de nada, e tudo se convulsiona. Não há Cristo que aguente a situação. Calvários variados continuam a nos atravessar.

Eis este dezembro de 2024. Luzes em casas tantas, luzes nos olhos de quem muito deseja, principalmente ser feliz. Luzes nos faróis de carro entre água e tempo com certa neblina. Mais a poeira que nos atordoa – não falta gás carbônico para respirarmos. Numa fotossíntese às avessas, somos plantas em combustão. E como queimamos feito lamparina em pavio! Somos tomados de esperança. Vestidos da espera do que não se vê, mas daquilo em que se crê. Pois cremos piamente que a vida vale a pena, apesar de tudo.

E assim também eu, planta entre outras plantas no meio deste concreto entre casas e prédios, também sonho e esperanço. No meu prédio e nas portas dos apartamentos dos meus vizinhos, bolinhas de Natal me dizem vida e mais vida, alegre e triste sempre.

O culto à vida

27 de Novembro de 2024, por Evaldo Balbino 1

Um sobrinho de minha mãe faleceu hoje no fim do dia. Notícia que me chegou há pouco, por telefone. As telecomunicações, como todo e qualquer veículo comunicacional desta vida, carregam boas e más notícias. Esta, creio que ruim, me chegou agorinha mesmo. Meu pai me disse, assim que perguntei por ele, por meus irmãos, cunhados e sobrinhos: “Quem faleceu hoje foi o Zezé Tiago, marido da Chica”.

Um pouco mais novo do que minha mãe esse sobrinho, talvez um pouco mais velho – idades que, por fim, regulavam entre si, uma perto da outra.

Lembro que ele estivera presente no dia em que minha mãe se fora. Meus olhos baços de dor, úmidos de agonia, e mesmo assim puderam vê-lo tristonho no velório. Apertos de mão, olhares, condolências verbal e gestualmente distribuídas, e lá estava o sobrinho de minha mãe, ajudando-nos a velar o corpo dela já se despedindo desta vida.

Falei com meu pai algumas palavras usuais, porém verdadeiras. Tipo esta vida passa mesmo, pouco mais de dois anos depois da mãe, a Chica com certeza está triste (ela e os filhos), oremos por todos eles para que tenham força nesse luto...

Do outro lado da linha, a concordância do meu pai. A vida é isso mesmo, meu filho. Tudo passa. “E amanhã vou lá no Ribeirão, no velório. Ele teve no velório dos seus irmãos e da sua mãe. Agora vou lá pagar. Tenho que ir, não tenho?!”

Nas palavras do meu pai, antigas lições que sempre busquei aprender.

Ele vai amanhã ao velório, na zona rural a 14 quilômetros da cidadezinha, mas isso não vai ser por obrigação, não. Nem por costume. Há algo mais nobre do que o dever a ser cumprido, mais importante do que o mero cotidiano, este por si mesmo maravilhoso. Ele vai porque a morte precisa ser cuidada, compartilhada, vivida no coletivo para que não nos sintamos sozinhos, nem nós nem quem morreu. Os velórios são muito importantes. São a demonstração clara de nossa fragilidade e ao mesmo tempo de nossa grandeza.

Fui fazendo brincadeiras tais como o senhor pode ir a pé, é bom que exercita. E ele respondendo que vai fazer isso, apesar de estar com 84 anos e não ter mais condições de andar tão longe. Nós dois rindo do que na vida se nos oferece. E eu lhe falando que, se abusar, suas pernas estão melhores do que a minha. “Afinal, meu sedentarismo perde para o movimento constante do corpo esperto do senhor.”

Conversa vai, conversa vem, e terminei a chamada telefônica feita para ele. O silêncio se instaurou em mim, e me sentei aqui para escrever esta crônica. Imersos nos silêncios, temos sempre o que dizer. Nunca nos calaremos.

E o que dizer aqui? Como explicitar o que se escreve? Já venho dizendo coisas desde o título deste discurso. Venho falando do que acontece todos os dias pelo mundo afora. Morremos. Morre-se.

Antes de tudo, porém, nascemos.

O sobrinho de minha mãe, por exemplo. Minha mãe mesma, antes de tudo. Morreram, mas estão nascendo aqui cada vez que os nomeio. Zezé. Laura. Isso não são apenas dois nomes. Ao escrever essas duas palavras, os seres nomeados voltam a viver. Se pensamos, falamos e escrevemos, não é possível haver o fim de tudo e de todos. O mundo não tem fim.

Bem sei do que é certo. Meu primo dorme agora. Minha mãe deitou-se entre flores no dia 23 de maio de 2022. Estávamos saindo de uma pandemia terrível, e todos nós preocupados com nossos pais, vendo no vírus da Covid-19 os males encarnados, para de repente minha mãe adoecer de outro mal e partir.

O corpo se vai, mas nós permanecemos. Permanecem dona Laura e o Zezé nestas linhas. Sei que permanecem. Por isso o meu amor pela memória, esse processo de reviver, mesmo que de modo diferente, o já vivido. A vida repetida e amada.

Escrever “Laura” e “Zezé” é o mesmo que promover um rito, prestar homenagem, fazer uma cerimônia. Escrever esses nomes é cultivá-los com esmero para florescerem redivivos do fundo do escuro. Escrevendo, somos sacerdotes adorando em êxtase o que não finda: a profunda vida.

Para (não) incomodar

23 de Outubro de 2024, por Evaldo Balbino 0

Nas portas dos quartos de hotel, duas frases numa placa. De um lado: Favor arrumar o quarto. Do outro: Favor não perturbar. Na verdade, são quatro frases, pois um país carece não ser ilha, e mais de uma língua se impõe aos transeuntes das diferentes geografias. Americanizadas, nossas portas de quartos de hotel no Brasil também levam timbre em inglês. Assim, nossos olhos do mesmo modo veem e leem as frases, grafada cada qual num dos lados de outra placa: Please, clean de roon. Please, do not disturb. Português e inglês, diferentes, mas iguais e complementares.

Comumente as encontro, a essas quatro frases. Nunca me acostumo com o tom de fala impositiva delas. Impositiva sim, a despeito das expressões educadas que nelas habitam: favor e please.

Escondido nestas palavras, um desejo de dar ordens num espaço que, não sendo nossa casa, faz-se nosso momentaneamente. Como pedir isto constantemente (arrume, não perturbe, clean, not disturb), se a limpeza constante não se faz necessária?!

Não me atrevo a pedir todo santo dia que camareiros arrumem o aposento em que pouso, sem que haja necessidade. Por acaso limpamos assim nossas próprias casas? Falo aqui dos que não temos empregadas ou empregados domésticos.

Aliás, por falar nessas profissões, vemos em muitas pessoas a mania de dizer “secretária do lar” em vez de “empregada doméstica”. Nessa exagerada preocupação com o “politicamente correto”, acabam por demonstrar, mesmo que sem intenção, um preconceito absurdo. E é justamente no seio desse preconceito é que vemos muitos hóspedes abusando dos serviços dos funcionários que limpam quartos de hotéis, hospedarias, pousadas.

Tenho duas toalhas limpas no quarto, e até agora usei apenas uma, somente uma ou duas vezes: pedir que troquem a toalha usada para quê? Tomei banho apenas uma ou duas vezes no banheiro: limpar o recinto para quê? Se a lixeira do banheiro ou do quarto praticamente não tem quase nada ainda de papel ou qualquer outro lixo, por que é necessário que seja esvaziada se está quase vazia?

Há exagero e abuso quando as nossas mãos apenas dão ordens e nada fazem. Vejo nisso, repito de outra forma, a balda de suserania e vassalagem que atravessa um país já tradicionalmente tomado por sujeições, às quais uns poucos expõem a maioria que, consideram, é subalterna.

Nesse meu afã, entretanto, de não querer explorar ninguém, passei por uma “tragédia” outro dia.

Hospedado num hotel de Aracaju, trabalhando muito e ao mesmo tempo degustando o delicioso e quente litoral sergipano, decidi num dos dias ficar no quarto mesmo. Tomei o café da manhã olhando para a orla, pessoas andando leves sobre a areia. Em seguida voltei para o quarto pensando em trabalhar sob os cuidados de um ar-condicionado amoroso. Deixei dependurada na porta a placa em português (porque sou brasileiro, sim senhor!) com a frase dada à leitura: Favor não perturbar.

Antes da labuta no notebook, tive a necessidade de ir ao banheiro para me entronizar no vaso sanitário e depois tomar um banho. Confiante na placa tão comunicativa e clara, não fechei a porta do banheiro. Eis que, num repente, a porta do quarto se abriu. Vi a sombra de uma pessoa que entrava no aposento.

Pelado como vim ao mundo, levantei-me do vaso, e mais que rapidamente fechei a porta do banheiro com mãos ágeis. Ainda bem que a distância era curta! Do contrário, eu seria flagrado explicitamente na minha nudez, num momento um tanto constrangedor.

“Desculpe, senhor!” – esta era a voz envergonhada da camareira, já dentro do quarto e do lado de fora do banheiro. Envergonhada ela, envergonhado eu.

Não sei exatamente o que os seus olhos viram. Tinha percebido que eu era um homem apenas pelas minhas mãos? Vira mais alguma coisa?

Saiu do quarto repetindo o pedido de desculpa, e isso diante do meu silêncio entronado.

Voltei atônito para o meu trono, e nele fiquei quieto, sobressaltado, com o sentimento de que os perigos dos olhos nos espreitam em momentos tão delicados.

Para não incomodar nenhum funcionário, acabei sendo incomodado, ou melhor, flagrado em cima do vaso. O que deu naquela mulher para não ter lido a placa?

Depois do banho, fui conferir. Lá estava a frase certa rente à porta: Favor não perturbar. Antes eu tivesse colocado em inglês! Assim, talvez, ninguém abriria a porta.

As canções que fizeram pra nós

25 de Setembro de 2024, por Evaldo Balbino 2

“Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão / todo artista tem de ir aonde o povo está.” Essas palavras de Milton Nascimento ecoam em minha memória de amante de música. E o brilho diamantino desse agrupamento de vocábulos me diz do que brilha em nós, estes seres fazedores e consumidores de arte. Cada qual de nós é homo ludens – existência que desde os tempos primitivos se perfaz no jogo instaurado nos diversos ritos e com variadas linguagens. Na canção de Milton, o som de “encharcado” reverbera em “chão”, nossa alma cheia de húmus, daquilo que nos compõe. Essa totalidade espiritual e material me tomou por inteiro no show finíssimo de Caetano Veloso e Maria Bethânia no dia 7 de setembro último. Os dois irmãos chegaram até nós no Estádio do Mineirão lotado de gente e de melodia.

Com alegria e alegria, cantamos todos em acompanhamento aos irmãos, numa plateia irmanada sem a necessidade de lenço e documento, multidão desconhecida se roçando ao resvalar da brisa de uma noite suave e de uma lua leve não inteira, mas completa. No seio de uma Belo Horizonte noturna, passamos a ser doces bárbaros às avessas, porque invadidos de alto astral, lindas canções, afoxés, astronaves, aves – tudo num cordão de vozes em coral de festa.

Era gente brilhando e orando ao tempo. Entre o macho céu e a feminina terra, éramos fêmeas e machos simultaneamente. “E em tudo a voz de minha mãe e a minha voz na dela”. A noite bela e boa doendo em mim a saudade de quando minha mãe, antes de virar estrela, cantava cantadeira. Era a presença renovadora entrando pelos sete buracos da minha cabeça. Uma canção pra ela, minha mãe, mineira e seresteira. E na minha memória a minha mãe, ó minha Nossa Senhora, ó minha Mãe Menininha, virou donzela de novo e de novo se casou, com vestido e véu e flor. “Minha flor no cafezal – era a voz da minha mãe Laura entre as vozes de Bethânia e Caetano. E tudo novamente, novidadeiro e sempre eterno: a lembrança nostálgica plantando semente e raiz. Minha mãe me dando ao mundo, me ensinando deveres e direitos mais do que lavrados. Meu pai me avidando amoroso e rígido, me dizendo da dor do mesmo mundo, do seu vinho desnudo e da sua via dolorosa. O meu povo sofrido e alegre, porque a vida é uma senhora ambígua, a vida é uma festa sem hora.

Apaziguado, porque a arte tem esse poder divino, me senti sendo dois rios correndo irmanados para o mar, escorrendo para o encontro final. A água e eu sendo apenas um, doce ou salgado o nosso corpo, não importa. Eu sendo água afro-brasileira, povo resistente, como resistentes foram meus ancestrais paternos, do lado do meu avô em cujo corpo foram morar indígenas e negros. Todos nós sendo filhos de Gandhi, espíritos e matérias na festa da carne, na manifestação de nossa beleza e de nossa alegria na diversidade. Na festa do nosso corpo e do nosso espírito – uma festa inteira e toda –, a vida ao rés do chão parece um céu de estrelas. E o rio correndo, fluminense ou baiano, mineiro ou paulista – sempre artista na arte de viver.

Ouvindo os irmãos cantadores, revivi Iracema e Carmen Miranda, fiz um movimento mental pelo meu país, o de ontem e o de hoje. Perante mim, os marginalizados sob as botas de generais e pelas cidades atuais, indígenas (virão que eu vi) descendo sobre a vida límpida e passarinha. E a fé, mesmo a abalável fé, se dizendo e se gritando aos quatro ventos: pra quem é forte, pra quem é foda, pra que não foge à luta mesmo não usando clava, pra quem não perde o foco – fé, enfim, pra enfrentar esses filha da puta dominadores.

No dentro das músicas, nossos ouvidos se expandiram para fora, lançando chuva e areia no Saara, jorrando romãs e iaras no recôncavo do Estádio do Mineirão. Sob o céu belo-horizontino, plantamos nossos pés nas arquibancadas e voamos como águias pelo céu amazônico e romano.

Senti profundamente como a vida e a morte também são irmãs. Senti e sinto. Tomando uma cajuína e recebendo rosa pequenina, cada qual de nós sente roçar no frágil corpo a consolação nossa maninha. E assim nos sentimos amparados, nunca sozinhos. Temos amor leãozinho com sua juba de sol, temos a lembrança que não nos deixa esquecer quem amamos, pois nunca aprendemos a esquecer. E a lindeza de quem amamos é sempre mais que demais, tão demais que nos arrebentamos de amor, que os nossos corações explodem, que nossas bocas ainda se sentem molhadas pelos beijos nunca cessados. Na América do Sul ou no Japão, no Polo Norte ou no Polo Sul, amamos em inglês e em braile, em português e em híndi. Entre piscinas, margarinas, Carolinas e gasolinas, nós nos amamos como vacas profanas e suas divinas tetas. Com nossos quereres tão desconexos e conectados, no mundo múltiplo e vertiginoso, respeitamos nossas lágrimas, porém muito mais nossas risadas.

Sabemos que a vida é mesmo assim: ela se faz de lisuras e de dobras, de suavidades e de asperezas. Aprendemos, no entanto. Aprendemos mais de D(eus), pois ele nos habita e cuida de nós. Está sempre conosco aquele que é, foi e vai; que é o tudo e o nada; que é raso, largo e profundo; que é o início, o fim e o meio – eternamente e de novo. Na multiplicidade que nos atordoa, não andamos à toa, e vamos singrando na terra, no fogo, na água e no ar. Mesmo se não estamos em Deus, ele está em nós. No jogo de viver, a arte de sorrir impera com dentes ridentes, ainda que o mundo diga “não”.

Daí a dança da vida. Esta que arranca e pula, que treme e balança, que ginga e que ora, que pulsa e pulsa em sua veia e na qual queremos mais e mais, almejamos barcos e cais, ambicionamos os faróis e seus sinais. Desejamos ouvir e cantar! Ao som de “Odara” a dor se apaga, o nosso corpo se alegra e declara que o mundo pode ser feliz. O nosso corpo sabe que todas essas canções foram feitas pra nós.