As reais flores virtuais e suas lições
26 de Junho de 2024, por Evaldo Balbino 0
Faz tempo que recebo flores. Elas me chegam quase todo dia desde mais ou menos 2016. Não me lembro do exato momento.
No início, e por um longo período de 5 anos, atravessavam caminhos aéreos por nuvens imensuráveis. Saíam de Santiago do Chile e vinham para Belo Horizonte, por sobre cadeias montanhosas, planícies imensas e planaltos de vertigens.
Santiago, Mendoza, Curitiba, São Paulo... Com leves desvios, mas com destino certeiro, de lá vinham elas por terras chilenas, argentinas e brasileiras. Em algumas vezes passando em Córdoba, noutras em Buenos Aires. Sem esquecer La Plata, é claro! Mais para o norte, Resistencia. Em terras paraguaias raríssimas vezes, na Ciudad del Este. Os passeios por Joinville, Londrina e Campinas não raras vezes também namoravam os céus de Santos. E nessa cidade paulista os seus olhos líquidos de flores se deleitavam com o mar imenso, para depois, em Minas, terem saudade dele.
E aqui em Belo Horizonte, nesta antiga Nossa Senhora da Boa Viagem do Curral del Rey, elas pousavam como pássaros amenos. Um voo amoroso, risco de afeição no ar, e um ancoradouro em meus olhos florais.
Até aí, os voos sobre a Cordilheira dos Andes eram arroubos no vento, os aviões sendo soprados pela ventania fria e aterrorizadora, dando nas pessoas um medo da morte. A cordilheira imensa e gótica, o céu azul ou escuro dependendo da hora, o firmamento sem nuvens ou com elas, as montanhas cobertas de gelo... E elas, as flores, vinham solertes e seguras dentro das nuvens e contemplando rios sem fim.
Maipo, Cachapoal, Tinguiririca, Mataquito, Mendoza, Tunuyán, Desaguadero, Uruguai, Paraná, Rio Grande, Paranapanema, Tietê, Rio das Velhas, Paraopeba – tudo era rio sob as sombras de tantas flores viajando até mim, tudo eram águas claras ou turvas antes de nós mesmos, tudo era caminho da onça porque nesse tudo água se bebia e se matava a sede.
As plantas têm a pia consciência de que precisam de água. E por isso mesmo, mais inteligentes que os humanos, tratam de cuidar do que é vital para elas.
Depois de 2021, as sempre flores continuaram chegando, mas agora dum recanto brasileiro de cujo nome não me lembro. Quem as fotografa é mulher amiga de longa data. E corriqueiramente um “bom-dia” carinhoso e uma flor de jardim. Do jardim de sua mãe que tanto cuida das plantas. Dos jardins de sua cidade que tanto preza pelas flores.
Outro dia mesmo, um buquê de Flor da Fortuna brotando de ramas verdes e me desejando sorte e prosperidade. No dia seguinte, uma delicada Amor-agarradinho almejando proximidade. Noutro dia ainda, uma orquídea roxa de paixão e amor, e eu vendo no roxo suave toda a elegância e a sofisticação da vida, a admiração e o apreço entre pessoas que se querem bem, e em tudo a espiritualidade e os mistérios tão reais como as próprias flores sorrindo para mim na tela do meu celular.
Se me enjoo com tantas flores todos os dias? Não.
Se desdenho delas por virem em fotos digitais? Nada disso.
O gesto carinhoso dessas flores é o aceno da mulher amiga que as envia para mim. Não me incomodam bons-dias, principalmente quando são cumprimentos brotando de seiva viva, verdadeira e duradoura. Sentimento atravessando tempo e espaço para me dizer afeto em plena concretude.
Não me importa o fato de serem fotos digitais o que recebo. De tanto olhar para elas, de tanto mirá-las, contemplá-las e guardá-las inteiras em mim, são no final das contas flores que eu tanto quero. A presença e o perfume, o veludo do tato e o broto no frescor do chão de um jardim, o cheiro de terra no meu nariz sedento de ar e de amar... Não há como não gostar de tanta carícia em mundos tão rudes e poluídos, em mundos tão carentes de um gesto de flor.
Precisamos aprender com as flores. Disso bem sei.
Lava-me agora!
21 de Maio de 2024, por Evaldo Balbino 0
Chove torrencialmente agora em Belo Horizonte. Isso poderia ser o início de uma clássica e tradicional redação. Poderia ser até mesmo uma escrita piegas. Até hoje, porém, ninguém me demonstrou racionalmente quais sãos as características do que se considera piegas ou brega.
Isto aqui poderia ser protocolar composição de escola, mas não é. Chove de fato, como de fato estou aqui escrevendo escondido da chuva. Não que eu tenha que esconder dela que escrevo e que a escrita me é necessária desde sempre. Aliás, não preciso esconder nada da chuva. Ela simplesmente cai, geralmente de modo oblíquo, porque nesta vida as linhas retas são ilusões.
A chuva cai enquanto escrevo estas linhas. Foi ela quem, ao começar a cair, me pediu para escrever. Falei há pouco que ela simplesmente cai. Contudo, sou um sujeito anímico. Entendam bem: anímico e não anêmico. O meu sangue vai bem, graças a Deus! Não é azul. É mesmo vermelho igual ao de todo mundo. De fidalguias e pedigrees não temos nada. Somos meros humanos na existência. E detalhe: debaixo desta chuva ou longe dela, somos uma espécie entre espécies. E mesmo assim quase todos nós nos arvoramos em antropocentristas inevitáveis. Coitados de nós!
Meu estado anímico, ou melhor, meu ser anímico, me faz conversar com a chuva, com esta chuva e com todas as outras. E é com ela que falo, e com você também que agora, neste exato momento, me está lendo. Seja dia, seja noite; esteja frio, esteja quente; faça chuva ou faça sol – não importa. Fato é que escrevo, que escrevemos e lemos.
Há quase quarenta anos – e os desertos se estendem –, compus um dos meus primeiros poemas (ensaios de poesia). E era justamente sobre a chuva que falava esse texto. Não exatamente sobre ela, mas sim sobre uma conversa com ela. Lembro que eu lavrava um diálogo com as águas insensíveis caindo no telhado e dizia enfaticamente: “Vem, chuva! / Vem lavar sem sabão / a minha existência!”. Péssima imagem essa! Mas paciência, pois foi o que escrevi. Graças a Deus que este poema não se concretizou, graças a Deus que ele se perdeu ao longo da minha vida e nunca encontrou lugar em nenhum livro meu!
A despeito de horrível, esteticamente falando, a imagem feita pelo jovem recém-saído da adolescência não era vazia. Tinha lá o seu sentido. O meu desejo era o de me lavar nas águas da chuva, o de tomar banho da água do céu. Não o céu espiritual, mas essa atmosfera acima de mim, tão suja quanto este mundo ou quase. O que eu queria eram as águas que subiram, que ganharam forma e densidade e que naquele momento estavam caindo sobre o telhado da minha casa. Em suma, o que eu queria eram as águas que tinham viajado pelos ares, as águas voadoras. Aquele banho, se concretizado, me daria mais leveza, sem necessidade alguma de interferência química das mãos humanas. Eu queria a chuva, simplesmente ela.
Eu a queria como agora te quero, chuva! Mas agora quero mais fortemente. Te quero do mesmo modo como te vejo pela janela chocando-te com o vidro. Te quero da mesma maneira como te escuto, meus ouvidos abertos ao teu ruído, meus sentidos atentos aos gemidos do vidro e de parte da cidade molhada. Sei que muitos não têm um abrigo, um teto – e isso me machuca. Mas, o que posso fazer neste exato momento, quando o que mais quero é o teu corpo líquido no meu corpo sólido e pesado?
Se eu pudesse, voltaria neste momento às ruas da minha infância em Resende Costa. Nada aqui de romantizar a minha vida de criança. Mas, garoto, eu tinha mais ímpetos debaixo da chuva, caminhava enxurradas inteiras para depois ouvir gostoso os xingamentos da minha mãe dizendo que eu poderia me constipar. E eu lhe dizendo que nada, mãe! Disso não se adoece. E depois a senhora vindo e me dando leite quente ou chá quente para combater a friagem. Ainda bem que você não tava descalço! A friagem entrando pelo pé é pior. Mal sabia ela que, na verdade, eu caminhara descalço e que somente em casa eu tinha colocado os sapatos. Ou então ela sabia, mas fingia não saber.
Me vieram agora, mais do que nunca, saudades da senhora, mãe. O desejo de ter mãe de novo, sempre renascida, brota desta chuva como brotam flores que trazem vida e felicidade.
O que esta chuva caindo faz é me trazer de volta a senhora, mãe, sempre quente e doce. A senhora para sempre eterna.
Irmão Joaquim
27 de Marco de 2024, por Evaldo Balbino 0
Vindo da Guerra, dela muito nos falava. Compusera as forças brasileiras que lá estiveram na Itália, lutando contra os ânimos fascistas de Hitler e companhia. Não sabia dizer dos meandros políticos da época, de como o Brasil, emborasendo comandado por um regime ditatorial simpático ao modelo fascista (o Estado Novo de Getúlio), acabara se juntando aos Aliados por uma série de motivos geopolíticos. Ele nem sabia sobre questões geopolíticas.
De sangue e suor, no entanto, sabia dizer. De todo o estresse dos homens, ele jovem entre tantos outros jovens e soldados mais velhos. Pracinha tendo que enfrentar o mundo e sua violência. Noites, chuvas, intempéries outras, terrenos íngremes, bombas, choros, gemidos – tudo isso compunha um mosaico em suas narrativas. Diziam que ele tinha esse apego obsessivo pelas histórias de guerra justamente por ter adoecido na própria guerra. De fato, ao que parecia, ficaram-lhe sequelas psicológicas da vida bélica que vivenciara nas terras italianas de meados dos anos de 1940.
Quando o conheci, ele já eraidoso e frequentador assíduo da igreja que eu também frequentava.Era solteiro. Falava que se casaria e que para isso só faltava uma pretendente séria e à sua altura. Ia também, nas manhãs de domingo, às Reuniões de Jovens e Menores da igreja. Recitava conosco trechos da Bíblia, testemunhava diante da igreja os feitos de Deus, pedia hinos de louvores. Quando lembrado por alguém atazanador que ele não era mais jovem, sempre respondia calmamente que era jovem sim, que se casaria e que tinha todo o direito de estar onde quisesse, até mesmo nas reuniões de jovens.
Na verdade (sei disto hoje maisdo que antes), ele estava no lugar adequado: frequentava reuniões de louvores de jovens a Deus, nas quais entre os objetivos estavam o flerte, o namoro e umcasamento certeiro.E isso dentro de uma religiosidade rígida em que os corpos eram vistos como fontes de pecado, mas sem dúvida alguma eram também coisas apetecíveis, sonhosde quase todos.
O irmão Joaquim era desse jeito. Jovem para sempre, apesar de sua memória já falha, e com uma tagarelice de aturdir um cristão. A fala incessante reiterava o já dito intermináveis vezes. Contava sempre e cada vez mais as mesmas histórias. E isso num fio que não se cortava, numa linha dando voltas infindavelmente. Não conseguíamos saber quando terminariam seus testemunhos ou o seu turno de fala num diálogo. Aliás, quando dialogava com alguém, o que se via e se ouvia era mais um monólogo seu.
Quando conversava com a gente, inevitavelmente falava cuspindo e tocavafrequentemente sua mão direita gelada no nosso braço. Não adiantava um afastamento para fugir da cusparada. Ele se achegava mais ainda perto do interlocutor.
Houve um episódio muito interessante certa feita. Na saída da igreja após um culto, aproximou-se da irmã Donana, madrasta de minha mãe e à época um pouco mais velha do que ele, para a saudação:
– A paz de Deus, irmã!
– Amém, respondeu ela naturalmente.
– Mas escuta aqui, continuou o Joaquim agora saliente, a senhora é a irmã Donana mesmo?!
Com essa pergunta de assombro, ele fechou mais os olhos para examinar a interlocutora e continuou:
– Pensei que a irmã já tinha morrido...
– Morre você, caco velho! – imediatamente lhe respondeu Donana sem nenhuma comunhão com Deus. Pois agora, nenhuma comunhão sagrada era mais possível diante da afronta.
Perante a falta de jeito do Joaquim e a inopinada cólera de Donana, o que restou a todos do entorno foi rir de cena tão engraçada. O irmão saiu com o rabo entre as pernas, depois de ter cutucado a onça com vara curta. Para ele, sem dúvida, todos envelheciam, menos o seu corpo incansável.
Passados alguns anos, eu já não morava mais em nossa pequena cidade, esse delicioso senhor foi recolhido no lar de idosos com a mediação de um sobrinho seu, também militar, que acorrera à urbe para providenciar a internação do tio. Nessa casa, ele era visitado por alguns poucos membros da igreja que de fato prezavam por uma irmandade para além do pertencimento sanguíneo.
No dia em que o Irmão Joaquim faleceu, seu corpo ficaria sem velório no necrotério até a hora do sepultamento. Meus pais, piedosos, entraram em ação, inclusive encorajados pela minha irmã caçula. A pedido dela, receberam o corpo lá em casa. Na hora derradeira aqui na terra, o nosso irmão não ficou sem lar para ser velado. A irmandade nossa é muito maior do que os laços desta vida.
Cajado às avessas
28 de Fevereiro de 2024, por Evaldo Balbino 0
A igreja lotada. A cidade pequena, e muita gente, muito rebanho precisando de misericórdia.Sussurros de orações quase que no silêncio. Murmúrios de lábios quase fechados. Olhos cerrados: um ou outro aberto na verdade, já que nem todos conseguem comunhão de tal monta. Joelhos dobrados porque todo joelho, disse o profeta Isaías, há de se dobrar perante a santidade três vezes santa de Deus. Na contrição dos fiéis, o desejo profundo de justificação, de salvamento do que na vida nos coloca perdidos. Muito mais do que pecados, o que assola a todos é o sentimento de incompletude que nos torna plenamente incapacitados para suportar as dores. Daí os clamores: no coração, na boca, nos gestos. Em pensamento e palavra, na gestualística prostrada, as petições infindáveis.
O púlpito ainda está vazio. Mas logo alguém se levantará diante de todos. Será levantado, acredita-se. Existe a fé inabalável de que o Espírito Santo conduzirá um representante, um alguém saído de entre todos, porque do meio do povo sai a voz do que clama no deserto, a que proclama mensagens divinas no silêncio duro onde nem flores nascem. Para nascer, sabemos, é necessária a palavra. São necessários os gestossagrados para que o mundo profano aconteça.
Existe a fé. No entanto, nem tudo são flores. Pois que se levantam pastores cheios de si, e não da pomba baixando sobre eles e lhes ditando o que fazer e falar. Principalmente o que falar. Nem tudo, portanto, é voz divina. A humanidade precisa reconhecer que ela própria fabrica monstros, que dela mesma nascem espinhos. Quanta culpa em Deus e no diabo! Quanto dolo atribuído a forças outras, quando em realidade são nossas pequenas e perigosas forças as que, muitas vezes, desencadeiam tormentas, levantam tempestades, semeiam duras semeaduras!
Semear é um gesto. Lançam-se à terra as sementes. Planta-se o que deve nascer. A quantidade de grãopara semear um terreno não acaba nunca. Sempre é bastante para o que se precisa fazer. Olhamos a gleba e vemos a extensão do que será semeado. Por mais impróprio ao cultivo que pareça, o torrão perante nossos olhos é leiva trabalhada com esmero pela existência. Não são aleivosos os braços da vida: suas mãosamainam a todos nós, preparam-nos de algum modo para o que se vai semear.
Hoje, entretanto, nem Deus nem o diabo prepararam o chão. A existência, porém, fica tranquila diante do que nela também é muito comum. Levanta-se um homem engravatado. Roupa de estirpe, de sangue azul, mandada comprar em alguma butique para poucos. Seus sapatos lustrosos valem ouro. Seu anel no dedo, ao lado da aliança de um suposto bom marido, brilha doutoralmente diante da igreja. É um juiz o que se levanta, título anular bem ali na cara das pessoas simples, boca feita para discursos solenes e serpentinos.
Ele se levanta e diz que se levantou porque Deus o quis. Toma da palavra como se toma um vinho especular no qual nossas faces se veem e se contemplam amorosamente. Para depois embriagarem-se em si mesmas.
Ele se levanta e, acredita, vê no povo o anseio dele mesmo. Imagina-se o modelo, coloca sua vida como exemplo para o que deve ser seguido. Não sei se esse pregador leu alguma vez certas palavras do Imperador da Língua Portuguesa, o padre Antônio Vieira. Se não leu no padre português, viu certamente no Evangelho: o pregador deve pregar e fazer o que prega, deve ser arquétipo para os ouvintes, luz para o mundo que o rodeia.
Exigência muita para um mero homem. Também ele filho de Adão, pertencente à mesma prole historicamente perdida no labirinto vital e caminhando para os confins sem clareza.
O pregador levantado – ou que se levantou – prega com palavras precisas e claras – água diante dos seus olhos. A sua pregação fala de pecados e da necessária ausência desses mesmos pecados em vidas tão impuras como são as de todos os que habitam esta terra doente. A base para sustentar sua admoestação é o sucesso de sua biografiacomo resultado de uma entrega plena e imaculada a Deus. Sua diplomação, a família que o respeita, o cargo de juiz que conquistou em primeiríssimo lugar nacionalmente considerado, os louros que vêm sendo colhidos dia a dia.
Enquanto ele fala, o rebanho todo ouve e geme. As palavras do pregador são letras mortas diante das vidas carentes de pão outro – o que não se oferta do altar.
Pra dizer que falei das flores
25 de Janeiro de 2024, por Evaldo Balbino 0
Todo mundo já ouviu falar em ferrinho de dentista, aquele instrumentozinho que vai em cada canto da boca e que faz doer até a nossa alma. Esta alma medrosa por demais! Há pessoas que também são ferrinhos de dentista, que trazem consigo algum espiritozinho errante, sem eira nem beira, ao qual nada mais resta senão cutucar a gente. Aliás, há pessoas que são a própria encarnação verdadeira, cuspida e escarrada, desse espírito.
Pois bem. Faz algum tempo, de alguns meses para cá, que venho “enfrentando” esse espírito encarnado. É muito fel vindo de uma pessoa só. Infelizmente existem essas coisas. E o que nos resta é ter piedade, pois, no caso em questão (creio nisto piamente como vejo a luz do dia), trata-se de alguém malicioso que, parece, sente prazer em maltratar as pessoas. Seu rosto é carranca irremediável. Temos aí alguém que existe para ferir o outro, não olhando hora nem “desora”. Na verdade, pra uma pessoa assim não existe tempo inadequado pra falar ou dizer as coisas. Qualquer momento é a pura deflagração de farpas, de olhos enviesados, de cara sombria e gestos duros. Pura falta de amor! Sem remédio.
Outro dia mesmo (variações do mesmo tema), esse alguém, sob anonimato (mas eu sei da máscara e do rosto que ela cobre), comentou sobre uma crônica minha: “Quanto culto ao existencialismo enquanto milhares são impunemente assassinados na Palestina. Como escreveu Brecht: ‘que tempos são esses em que falar de flores é quase um crime pois implica calar-se diante de tantos horrores’”.
Eu não responderia a esse comentário. Primeiramente porque sou fã da liberdade de expressão. Segundamente, porque acredito que cada qual pensa do modo como quer pensar. Terceiramente, porque não acho bonito isto de dizer e contradizer e revidar etc. e tal... (isto quando se trata de um debate que não é debate, de uma discussão nascida da malícia e sem fundamento).
No entanto, bora eu dizer o que se faz necessário. Causam-me alarme falas soltas, sem contexto, com uso abusivo de conceitos complexos e com citações malfeitas, sem cuidado mesmo com as fontes. Tudo em nome de uma oposição pela mera oposição. Vazia, como se vê.
Nem vou discutir aqui o equívoco do uso da expressão “existencialismo”. Se Kierkegaard e Sartre lessem o comentário transcrito, ficariam espantados agora, com seus ossos em pó revirando-se no além, pois perceberiam de imediato que quem escreveu tal afirmação desconhece que o existencialismo é justamente uma reação humanista contra toda e qualquer forma de alienação.
E o que dizer da alma combativa e dos restos mortais, também em pó, de Bertolt Brecht?! Estão se contorcendo do mesmo modo.
A citação feita pelo ferrinho de dentista é extraída do belíssimo poema de Brecht, assinado pelo autor em 1937-1938, “An die Nachgeborenen”. A extração, contudo, não é muito feliz. Eita-ferrinho-de-dentista mais desengonçado!!! Não sei de que tradução vem. Apenas pude ver que tal tradução passeia pela internet ao deus dará, também sem eira nem beira como o ferrinho de dentista de que venho falando. Um ferrinho catando a esmo o que fala.
O título “An die Nachgeborenen” pode ser traduzido em “Para aqueles nascidos depois”. Ou melhor ainda, na belíssima tradução de Paulo César de Souza saída no Brasil em 1986: “Aos que vão nascer”. Ou ainda, para mais um exemplo de beleza e cuidado, temos esta versão de André Vallias, dada a lume no Brasil em 2019: “Aos pósteros”.
Bertolt escreveu este texto às vésperas da Segunda Guerra Mundial. O autor sentiu na própria pele as forças nazistas e a repressão de Hitler sobre o seu país e o mundo. Tornou-se um sujeito diaspórico, fazendo teatro e poesia revolucionários na forma e no conteúdo. Os tempos de que fala o poeta são os carregados antecedentes da II Grande Guerra, mas os versos podem, é claro, falar de qualquer época de guerra, de genocídio etc.
Eu só gostaria, porém, de entender de onde o comentarista ferrinho de dentista extraiu as tais flores que ele menciona. O verso alemão de Brecht é “Ein Gespräch über Bäumefast ein Verbrechen ist”, assim posto em português: “Uma conversa sobre árvores é quase um crime”. Tudo bem que o comentarista da minha crônica e o tradutor tão incógnito quanto ele tenham querido usar metonimicamente “flores” por “árvores” e também buscar uma rima com “horrores”, palavra registrada no comentário em tela. Além disso, diria o comentarista, continuamos no mundo da flora para dizer da alienação: flores e árvores, puro afastamento da realidade. Vale dizer aqui que, no original alemão, Brecht escreveu “Untaten”, que são “delitos”, “crimes”. Posso concordar com o ilustre comentarista sem rosto e dizer também “horrores”. Mas daí dizer flores por questão de rima, já prefiro não concordar.
Tenho problema com flores?! Muito pelo contrário. E sei que falar delas é também dizer da nossa existência. Existimos, estamos no mundo, atuamos nele, pensamos sobre ele e sobre nossas ações no seu seio plácido ou conturbado, triste ou alegre. Denunciamos o que é urgente.
Quem foi mesmo que disse que o meu existencialismo está fora do tempo?! Ah, o tal comentarista sem nome. Pois, pois, claro que obscuro é esse comentador. Deixemo-lo em paz, pois!