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O que é do homem o bicho não come

14 de Julho de 2016, por Evaldo Balbino

Ilustração Elimar do Carmo.

O que é do homem o bicho não come. Assim diz o ditado, popularmente construído e aplicável de modo cruel a muitas situações da vida. E de modo atroz esse provérbio se aplicaria a uma aventura ocorrida na minha infância.

Quando eu ainda nem tinha ouvido falar em reforma agrária, acabei fazendo parte de uma peripécia relacionada a terra alheia, ou de uma reinação como gostava de escrever Monteiro Lobato. Terra alheia sim, porque até hoje não tenho nenhuma, a não ser a que se me promete de modo desavergonhado todos os dias: a de sete palmos verticais e escuros.

Antes dessa terra prometida, sem leite e sem mel, com escuridão e silêncio, vou escrevendo aqui, e vou reconstruindo o que vivi. Nesta rede tecida, colcha de um passado sempre passado a limpo, vou cobrindo minha existência, a nossa existência. Nenhum silêncio pode com essa tessitura.

E na tessitura da vida (real, concreta), eu era pequeno ainda quando fui convidado, com mais alguns amigos, pela vizinha alegre e sorrateira. Fomos convidados para ir à roça do marido dela. Entre um milharal e palhas verdes de feijão de corda, o nosso objetivo era colher melancias de dar gosto na boca. Melancias verdes por fora e vermelhas por dentro. Uma raridade naquelas bandas do Ribeirão.

E fomos os meninos como se vai uma boiada feliz atrás de pastagem certa e fácil.

Estranho foi quando passamos por debaixo da cerca de arame farpado. Indagada sobre o porquê daquilo, se não havia tranqueira ou porteira para uma passagem digna, a nossa vizinha disse levemente e descontraída que era aquele mesmo o caminho. Falou que porteiras e tranqueiras, nenhuma ali havia. Eram perigosas, facilitadoras da entrada de mãos e pernas desonestas. Assim entramos honestamente pela lavoura, numa honestidade sub-reptícia e ingênua.

As palhas de milho balançavam com o pouquinho de vento, roçavam sua textura áspera nos braços da gente, tratando com carícia rude e cheiro bom de milho verde nossos braços espertos.

Os meus braços não paravam. Num embornal, algumas espigas de milho. Haveria nele também espaço para alguns pepinos, que uma salada boa se faria em casa. As melancias eram de outro naipe. Superavam meu tamanho pequeno, e o saco trançadinho que eu levava caberia algumas delas, não muitas. Arrastar todo aquele peso ladeira acima, depois da roça, não seria brincadeira. Mas eu aguentaria carregar tudo aquilo. Afinal, o que se dá não se rejeita. Ainda mais do jeito que era dado, fácil, espontâneo. Melancia era para poucos. E a sorte não recai sobre a gente todos os dias.

Nos movimentos de todos nós, esbarrávamos ora na sombra de um, ora no encalço de outro, de vez em quando na trilha de um terceiro. Meu susto foi quando esbarrei num homem velho, petrificado e fazendo careta diante de mim. Quase gritei, mas estanquei o berro na percepção de aquilo era um espantalho, e dos bravos. Cara feia mesmo, cabelo espetado de palha seca e chapéu carcomido, roupa rasgada sem onde mais botar remendo. Era de espantar a própria sombra. Porém estava parado, e nada poderia fazer comigo, pobre menino atrás de melancias.

Mal mostrei a língua para a sentinela de cara feia, e ouviu-se um grito levado aos quatro ventos. A nossa vizinha exclamava em alto e bom tom: “Corre, gente, que Sô Tonho chegou de carabina!” Como se não bastasse o grito, um estampido ecoou em nossos ouvidos, fazendo doer coração e pernas. E o Sô Tonho foi gritando “Cambada de vagabundo! Larapiada do inferno! Cês num planta e qué cumê, seus fio sem pai!”. Como se não bastassem as palavras, o homem ia berrando e atirando para o alto com a carabina em riste.

Corremos todos, obviamente. Embornais, pepinos, espigas de milho, e até mesmo as melancias. Tudo foi caindo e descendo morro abaixo. As melancias, nem se fala! Desciam rolando pelo terreno com a ajuda de todos os santos. Em apuros, nossa gula teve de ceder a tudo. Como diria o gato do mato lá na fábula: “antes morrer magro no mato, do que gordo no papo do gato!”. Ao passar debaixo da cerca de arame farpado, numa pose de relâmpago, ainda tive minha camisa rasgada. Era o homem gritando lá atrás, e a gente levantando poeira pelo caminho.

Nem posseiro, nem latifundiário, fui bicho assustado sim naquele dia. E até hoje sei que, sob os domínios do medo, muita coragem se tem. Coragem não para comer o que é do homem (ainda mais se for um homem armado), mas para se fugir com todas as forças possíveis. E não há cerca de arame farpado que segure um bicho acuado em fuga.

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