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Brincadeiras na roça

17 de Setembro de 2015, por Evaldo Balbino

Ilustração Elimar do Carmo

O carrinho de boi feito de casca de umbigo de banana. As juntas de boi para puxá-lo eram de sabugo. A primeira Kombi de plástico que o pai me dera, e eu fazendo com enxadão (porque mais estreito) estradazinhas pelo terreiro afora. Água havia aos borbotões. Era só buscá-la no córrego da tia Tuquinha, e tudo estava resolvido: as estradas eram aguadas, e a vegetação poderia crescer cheia de vida para enfeitar os caminhos da kombizinha. Isso não são apenas lembranças. Tudo faz parte da vida que vivíamos no Ribeirão de Santo Antônio. De tanto me lembrar das coisas, nada se perde e tudo é revivido com a mesma avidez do passado.

Nas noites do Ribeirão eram muitas as diversões. Isso até lá pelos inícios da década de 1980. Na falta dessa parafernália que cada vez mais a modernidade urbana vai introduzindo nos mais distantes e ermos lugares do mundo, nós tínhamos um montão de coisas que fazer. Celulares, computadores, shopping-centers, parques de diversão, boates, bares – nada disso tínhamos num lugar em que nem luz elétrica existia. Era um show para a criançada ir até à vila, onde postes escassos de luz anunciavam o contrário da escuridão. Mas no Ribeirão não era sempre tão escuro assim não. Num céu sem estrelas, a lua muitas vezes ajudava a clarear as coisas e as vidas. E como ajudava!

Crianças e adolescentes brincavam de tudo pelas noites da existência rural.

No “passa-anel”, objetos pequenos e desejáveis (como anéis, pedrinhas e moedas de centavos do Cruzeiro) eram dádivas que as mãos cúmplices do passador entregavam às escondidas para algum colega da fileira. "Com quem está o anel?". Essa pergunta ia se repetindo até que um adivinhador, sortudo, tomava posse do que era o desejo de todos.

Na “Alfândega”, ficávamos tempos a fio tentando descobrir as regras inventadas e dizendo coisas a esmo como gato, vaca, mendigo, ratos. Até que por fim o grupo inventor da regra dizia “Isso passa sim”, e as portas se abriam para outros mais colegas se entregarem às invenções.

Numa roda ficávamos cantando “Pai Francisco” e ouvindo as palmas do ceguinho ao centro. O mesmo ceguinho, com suas mãos que não viam, tocava um de nós. Tocava o que seria a vítima a transformar-se, em seu lugar, no próximo cego.

Na batata quente, ficávamos em roda e com o sempre medo sob esta canção repetida: “Batata que passa quente, / batata que já passou, / quem ficar com a batata, / coitadinho se queimou!”.

Na Cabra-cega, o interrogatório seguia acelerado. “Cabra-cega, de onde você veio?”. “Vim lá do moinho.”. “O que você trouxe?”. “Um saco de farinha.”. “Me dá um pouquinho?”. “Não.”. E depois disso, todos saíam correndo. A cabra perseguia os demais, no desespero por deixar a triste sina e repassar o destino da cegueira para algum desavisado que se deixava pegar.

Na brincadeira de estátua, ficávamos todos inertes ouvindo o canto mágico e salvador do líder que escolheria alguém para ser o próximo condutor da brincadeira, o liberto da condição da pedra e agora com o poder de medusa para petrificar os amigos: “Entrei no jardim de flores, / não sei qual escolherei; / aquela que for mais bela, / com ela me abraçarei”.

Assim íamos nos desdobrando no pula-corda; no Seu Lobo; no serra, serra, serrador; no jogo de palitinhos; no jogo da velha; nas cinco Marias; na amarelinha (pulando aqui e acolá); na forca (soletrando e descobrindo letras); na caixinha de surpresas; na pulação da carniça; no carrinho de mão; e no chicotinho queimado com as gritarias de “tá quente”, “tá frio”, “tá esquentando” e “tá pelando”. Cirandávamos, corríamos no pique, buscávamos esconderijos no esconde-esconde, suávamos no pega-bandeira, e mais que tudo gostávamos de brincar de cair no buraco.

Eu gostava era desta última brincadeira. Menino matreiro, sabia bem cair no buraco e pedir um beijo à minha salvadora.

“Caí no buraco!”

“Quem te tira?”

“Meu bem.”

“Seu bem é esse?”

“Não.”

“Seu bem é esse?”

“Não.”

“É esse?”

“Também não.”

“É aquele?”

“É!”

E com os olhos fingidamente vendados, afetando cegueira das bravas, eu pedia do meu bem, sempre uma menina bonita e faceira, um “bico de garrafa”, que traduzido era “um beijo na boca”. Tudo bem que um biquinho de nada, lábios se encostando sem muito movimento, mas para mim isso era uma festa.

 

O difícil mesmo era na hora de tirar a sorte nas brincadeiras. “Uni, dúni, tê, / Salamê minguê, / Um sorvete colorê; / Uni, dúni, tê, / Quem saiu fora foi você!”. E o medo de ser o escolhido, de ter de sair da brincadeira. Mas a vida é assim mesmo. Muita coisa não escolhemos. Nem o tempo que passa é nossa escolha. Ainda bem que temos a memória, para nossa salvação, nesta barca se indo sempre para o futuro.

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