Bela negra árvore
27 de Novembro de 2024, por José Antônio 0
Bati à porta da senzala e ninguém atendeu.
A senzala está vazia.
Nas cafuas do silêncio, ouço ao longe atabaques e lamentos, chibatas e gritos. Pelas paredes e no chão batido, ainda vejo danças e fugas, silhuetas e corpos... espectros e sons que se contorcem entre a memória e a dor.
Não é somente a psiquê humana que cria fantasmas e sombras que assustam. A história também sabe fazer isso.
Mas, aos poucos, a história foi cedendo até deixar ver que a história sempre tem outras histórias. Nas lacunas dos registros, o negro foi tecendo suas representações e cultura. Nos silenciamentos dos relatos oficiais, o negro deu voz às suas canções e ritos. Nas tradições que há por aqui, o negro também plantou a tradição da sua raça.
Porém, dizer que todos os grilhões foram rompidos... afirmar que as chibatas não fustigam mais... assumir que as humilhações são injustiças sepultadas...
Sei lá.
Ainda há alguns preconceitos que se vestem de feitor... e o negro ainda é vítima da dolorosa chibata da exclusão. Ainda há alguns grilhões que devem ser quebrados, alguns troncos a serem derrubados.
Alvos de desconfianças alguns são...
Disparidade salarial insulta muitos...
Condições sem condições de moradia desonram inúmeros...
Espaço reduzido na mídia afronta uma raça...
Prisões, massacres, sumiços ferem a vida de vários...
São feridas que ainda sangram no dorso de uma raça que sempre ajudou a levar o Brasil nos ombros. São feridas que reclamam pelo bálsamo da reflexão constante, da justiça sensata e da atitude que muda.
Governo, escola, Igreja, mídia, política, esporte, judiciário, arte são canteiros ricos que têm tudo para fazer com que a árvore forte e bela da alma negra continue viva e respeitada. No aconchego de seus galhos, ramos e flores, cabe todo um povo, toda uma nação, toda uma história, todo um Brasil, que jamais pode desprezar os frutos preciosos dessa árvore.
Fungada no cangote e ciscadas no terreiro
23 de Outubro de 2024, por José Antônio 0
Quando menino, eu escutava atento as histórias da Tia Zenóbia. Lembro-me dela sempre do jeito que nunca deixou de ser: os cabelos puxados para trás e recolhidos num coque, acima da nuca. Os olhos ao mesmo tempo ternos, penetrantes, inquiridores e sádicos. Acho que Tia Zenóbia já nasceu assim. Quando ela veio ao mundo, um desses anjos que vivem nas esquinas recônditas do dia a dia disse a ela: “Vai, tia, ser Zenóbia na vida.” E ela foi.
Depois fiquei sabendo que esse anjo falou coisa parecida com um poeta também terno e sádico. Porém, Tia Zenóbia nunca o viu nem ele a ela, apesar dos dois usarem óculos.
Mas isso é assunto de família e você, leitor, não tem a obrigação de ficar engolindo essas lereias. Eu estava falando das histórias que Tia Zenóbia me contava. Minha filósofa tia começava – ou acabava – as histórias dizendo que aquilo tinha acontecido “no tempo em que os bichos falavam”. E a gente entendia que era há muito... muito tempo atrás.
No tempo em que os bichos falavam... Talvez esse tempo tenha existido mesmo. Homens e bichos convivendo e conversando harmoniosamente. Deve ter havido alguma razão, sei lá, pela qual alguém calou a boca da turma que usa rabo e só o homem ficou falando. O negócio foi tão forte que não escapou ninguém. Apenas os papagaios, araras e cocotas continuaram a arriscar algumas palavras. Mesmo assim, quando o fazem, dizem coisas desconectadas e todo mundo cai na risada. Sinto dó dos psitacídeos...
O homem sente saudade desse confabulismo com os animais. Tanto é que o bicho, vira e mexe, aparece nas nossas falas corriqueiras, como metáforas que saem das gaiolas, jaulas, poleiros e selvas do inconsciente. Já que os bichos não podem mais falar, o homem então resolve a sua nostalgia emprestando dos animais algumas partes.
Comecei a perceber isso quando me falaram que uma certa fulana anda arrastando a asa para o meu lado. Eu quase não percebo tais coisas, pois vivo voando nessas questões. O que não quer dizer que não observo o gado, em cima do muro. De vez em quando, é bom dar uma ciscada, mas nada de deixar o rabo preso.
Tem uns que ficam de galho em galho, fuçando em tudo... acabam levando coices e patadas. Depois ficam amuados. Culpa deles, que não percebem a cachorrada que fazem. Um conhecido meu resolveu dar uma pulada de cerca e foi botar chifre na mulher. Quis experimentar uma outra fungada no cangote. A patroa ficou desconfiada e, fareja daqui, rumina as ideias dali... pois ela fisgou o boi ladrão. Ele tentou enterrar a carniça, mas teve que ouvir: “Tire as patas de cima de mim!” E ele foi embora, derrotado. Pegou as coisas e caçou outro rumo. Nem um pio!
Por outro lado, tem coisa mais chata do que ficar num ambiente que não é o seu? Leovaldo, meu amigo cultivador de grilos existenciais, foi a uma festa em que o único conhecido dele por ali era o espelho. Conversava com os outros, mas o assunto empacava. Era um estranho no ninho. Aquela indiferença toda o desancou e Leovaldo viu que era um sapo fora da lagoa. Foi cantar em outro terreiro.
O ser humano... pobre criatura... Pasta para sobreviver, enfia o bico em tudo para ver se pesca algum sentido que o faça exímio. Uns até pensam que encontram e se empavonam. Pobre ex-símio!
Meu pai sempre dizia que todo mundo é caveira. Filho de peixe, peixinho é. Também penso assim. Pra que presunção? Os animais não falam. No entanto, começamos e terminamos na boca deles: nascemos no bico da cegonha e acabamos roídos pelos vermes.
Os feios são felizes
25 de Setembro de 2024, por José Antônio 0
Existem aquelas pessoas que são prejudicadas e vivem alegres, achando que estão bem. É o caso de Dom Quixote, por exemplo: racha o crânio contra moinhos de vento pensando que são gigantes, é ridicularizado por aldeãs que ele julga serem elegantes damas, perde alguns dentes achando que rebanhos são exércitos e até vê formosura em quem ele escolheu para Dulcineia. Apesar disso, ele se sentia adequado ao seu viver.
Por outro lado, há aquelas pessoas que são felizes, mas não sabem que são. E vivem reclamando da sorte. É o caso dos feios. Na verdade, o feio é feliz. E vou além: o feio é mais feliz do que o bonito.
O bonito não tem paz, pois é cheio de inimigos: o tempo, a idade, os invejosos, o outro bonito... Já o feio não tem essas preocupações. Se o tempo passa, se ele fica mais velho... que diferença faz?
O feio não tem nada a perder. Quanto aos invejosos, quem tem inveja de feio? Além disso, um feio jamais é inimigo de outro feio; são até solidários, como se fossem os únicos que falassem o mesmo idioma numa nação estrangeira.
O bonito sempre se artificializa. Quando vai tirar retrato, estufa-se como um pavão, pois tem que sustentar a beleza. O feio não. Quando tira retrato, ele se naturaliza, isto é, apenas olha para a câmera e espera o click. Enquanto o bonito corre ansioso para ver a foto, e muitas vezes se frustra com o resultado dela, o feio nem olha para o que está lá. Suas expectativas são sempre tranquilas.
Para o bonito, o espelho é sempre uma ameaça; para o feio, o espelho ou é confirmação ou é esperança. Enquanto que, para o bonito, o elogio é uma cobrança de sempre estar belo, para o feio o elogio é um alerta de sempre ser humilde. Se ninguém nota o bonito, suas angústias o devoram; se o feio não é notado, ele até agradece.
Até mesmo no campo econômico o bonito sai prejudicado: cabeleireiros, manicures, shampoos, cremes, pastas e demais produtos de beleza. Por sua vez, a feiura é econômica: não existem produtos de feiura e nem é preciso gastar com profissionais pagos para tornarem feia uma pessoa.
Ai dos bonitos!... Estão condenados a uma tarefa de Sísifo: não podem jamais parar de rolar sua beleza; caso contrário, a beleza os esmaga.
Felizes os feios, pois cada dia lhes basta.
Bem que Mateus, ao escrever o quinto capítulo de seu evangelho, enquanto Cristo pregava o Sermão da Montanha, poderia ter dado ouvidos ao cochicho daquele feio agachadinho e atento ao seu lado, ouvindo o Divino Mestre:
– Bem-aventurados os que nada esperam, pois jamais serão decepcionados!
Questão de ordem
30 de Agosto de 2024, por José Antônio 0
Precisamos da falta de sentido para que o sentido não falte. Pode parecer que essa frase não tenha sentido... mas é o que tenho sentido.
Primeiro a vaguidão... Depois a organização.
É assim na mitologia maori, lá na Nova Zelândia. O deus Rangi e a deusa Papa viviam deitados havia milhões de anos num estreito abraço, no interior da escuridão. Rangi é o Pai Céu e Papa, a Mãe Terra. Dessa união, surgiram filhos. E todo mundo tendo que viver naquele espaço apertado e escuro. Até que a falta de sentido se impôs: Rangi e Papa foram separados, aparecendo então o céu e a terra. Aí tudo ficou organizado.
Na mitologia egípcia, no começo nada existia, exceto um caos nebuloso, do qual nasceu o deus Amun. De sua linhagem, surgiram Osíris e Ísis. Após algumas brigas com morte, a ordem passou a ser mantida pela deusa Maat. Antes o caos... Depois a ordem.
Nas tribos sioux e lakota, dos Estados Unidos, a mitologia diz que, antes da existência do mundo, Wakan Tanka jazia em um vácuo escuro e nebuloso. Dessa entidade, nasceu Inyan e demais deuses, estabelecendo-se a ordem do céu, da terra, do dia e da noite.
Para a mitologia grega, o início de tudo era uma divindade chamada Caos. Sem comentários...
Já para a mitologia africana, tudo começou com Oxalá e Odudua vivendo apertados dentro de uma grande cabaça. O espaço era pequeno demais para os dois deuses. Isso foi um dos motivos para a discórdia entre eles. Claro que a falta de sentido se instaurou e os dois se separaram. Foi assim que Céu e Terra se formaram. E tudo ficou em ordem.
Cá comigo, ando observando algumas coisas que a gente diz. Na verdade, elas escondem um certo caos dentro delas, uma certa falta de sentido... justamente para fazerem sentido. Acho que esse negócio de sair do caos para conseguir a ordem, que sempre acontece nas mitologias, também existe na linguagem.
Ontem eu ouvi um diálogo que parecia estar dentro de um caos nebuloso, pedindo ordem:
– E aí? Como você está? Melhorou?
– Pois, é... vou indo.
Comecei a pensar: vou indo... tem jeito de ir sem estar indo?
E quando você fala que o sujeito é semianalfabeto? Isso é grave, pois ele não chega a ser analfabeto... é menos do que analfabeto, pois é semi!
Sempre que alguém nos dá uma ajuda, o que a gente diz?
– Falou, cara! Valeu!
Falou o quê?
Dizemos essas expressões sem perceber a falta de sentido dentro delas. São ovos caóticos. Tenho medo de romper a casca deles e, então, nascer um sentido com penugem de avesso.
Como aquela vez em que, conversando com meu filho ainda pequeno, disse a ele que eu precisava trocar as lentes dos meus óculos, pois elas já estavam ficando fracas. O meu filho respondeu, numa lógica que arrebentou a minha mitologia oftalmológica:
– Não, pai! As lentes estão boas, elas estão a mesma coisa. Os seus olhos é que estão ficando fracos.
E do caos veio a ordem.
Da arte de ser cínico com voz e cuspe
31 de Julho de 2024, por José Antônio 0
Você acredita na palavra “impreterivelmente”? E na palavra “transparência”? Por acaso, você leva fé na palavra “neutralidade”? E na palavra “imparcial”? Você acredita na expressão “atitudes desinteressadas”? Você acredita em “partido político”? O que você me diz da expressão “eficaz contra a queda de cabelos”?
Tem gente que acredita nestes diálogos:
– Estou incomodando?
– De modo algum.
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– Já estou com essa idade.
– Parece que você tem menos.
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– O quê? Vocês se beijando?
– Calma, amor, não é nada do que você está pensando.
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– Assistindo novela?
– Estava passando aqui na sala e resolvi dar uma olhadinha, só por curiosidade.
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– E o seu regime?
– Amanhã eu começo.
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E as frases? Existe um montão delas que me despertam o mais fervoroso ceticismo:
. Minha vida pessoal é uma coisa e minha vida profissional é outra. Não misturo as coisas.
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. Apareça lá em casa um dia desses. Vai ser um prazer.
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. À venda nas melhores lojas do ramo.
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. Esta é a sua chance de ficar rico.
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. Pode emprestar que eu devolvo.
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. Não vendemos fiado.
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. Eu fumo pra passar o tempo. Quando quiser, eu paro.
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. Ele deu uma saidinha, mas não vai demorar.
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. Pode confiar, não conto pra ninguém.
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. Essa é a pura verdade, sem tirar nem pôr.
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. Hoje não, amor. Tô com dor de cabeça.
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. Comigo é diferente.
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. Meu filho é um gênio.
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. Minha filha é uma das únicas moças que ainda prestam.
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. É rapidinho.
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. Pode levar. Essa roupa é a sua cara.